João Batista Natali
da Reportagem Local
Praga
era um movimentado centro musical, em 1787, quando Wolfgang
Amadeus Mozart (1756-1791) estreou sua ópera ''Don Giovanni''.
A
cidade tinha apenas 80 mil habitantes. Viena, onde o mesmo
Mozart estreara no ano anterior ''As Bodas de Fígaro'',
era a capital do império dos Habsburgo e tinha uma população
de 206 mil austríacos.
Qualquer
bom compêndio de história demográfica trará curiosidades
como essas. Mas, provavelmente, nenhum deles associará
ao compositor de Salzburgo tantas informações contextualizantes
quanto ''Mozart, um Compêndio'', organizado pelo musicólogo
e historiador inglês H.C. Robbins Landon e que reúne verbetes
de 24 excelentes colaboradores.
O
livro, com 562 páginas, foi traduzido pela Jorge Zahar
e lançado na mesma coleção em que já apareceram obras,
com o mesmo formato, sobre Wagner e Beethoven. É uma maneira
atraente e moderna de se praticar a historiografia musical.
Há obviamente a biografia do compositor, mas sem o psicologismo
ou as pieguices que tendem a valorizar o estereótipo do
gênio incompreendido. Há também informações econômicas
e políticas, sem no entanto fazer da música o suposto
''reflexo'' dessas determinantes.
No
caso de Mozart, os editores correm um calculado risco
ao trazerem um biografado que há bem pouco tempo _em 1991,
bicentenário de sua morte_ foi objeto de uma bela enxurrada
editorial. Conseguem, no entanto, fornecer uma referência
obrigatória para especialistas ou curiosos de Mozart e
contemporâneos. Falemos de dinheiro. Um empregado doméstico
ganhava por ano, em Viena, de 10 a 30 florins. Quando
em Salzburgo (até 1781), Mozart ganhava 450 florins como
''konzertmeister'' do conde-arcebispo Jerônimo Colloredo.
Era quase a metade do que o mesmo governante pagava ao
castrado Ceccarelli. O maior salário artístico da Áustria,
no entanto, era talvez pago em Viena à soprano Nancy Storace
(4.500 florins). Mozart produzia sob encomenda. Ao deixar
Salzburgo, deixou também de ser um assalariado da nobreza.
O ensaio dedicado a suas finanças pessoais conclui que,
em seus dez últimos anos, ele levantou anualmente de 2
mil a 6 mil florins. É uma quantia elevada para que, mesmo
perdulário, ele tenha morrido _conforme a mitologia_ em
estado de indigência.
Não
foi de maneira alguma verdade.
Outro
mito, este bem mais desacreditado, diz respeito a suas
relações com Antonio Salieri (1750-1825). O livro revela
que em outubro de 1791 ele e a amante assistiram, como
convidados de Mozart, no Theater auf der Wieden, à estréia
de ''A Flauta Mágica''. Salieri se comoveu às lágrimas.
Abraçou Mozart e lhe disse nunca ter escutado música tão
bela. Salieri foi professor de Beethoven e Schubert.
Se
a posteridade não reconheceu em sua música a qualidade
encontrada na de Mozart, não quer dizer que ele, invejoso,
tenha envenenado o rival. Essa bobagem, retomada em ''Amadeus''
(1984), filme de Milos Forman, já foi desmontada pelo
próprio historiador Robbins Landon, com seu ''1791 - O
Último Ano de Mozart'' (1988) ''Mozart, Um Compêndio''
não leva o leitor a perder tempo com essa e outras fantasias,
embora mencione que Mozart, provavelmente um paranóico,
julgasse ao fim da vida estar envenenado, e Salieri, já
esclerosado, dissesse ter assassinado o amigo. Mozart
morreu por volta de 1h da segunda-feira, 5 de dezembro
de 1791.
John
Stone, encarregado desse verbete no ''Compêndio'', é cauteloso
no diagnóstico. Menciona todas as hipóteses, que vão de
uma febre inflamatória de origem reumática à síndrome
Henock-Schoenlein, responsável pela insuficiência e em
seguida pelo colapso renal. É uma inconclusão semelhante
à de outra das boas biografias recentes do compositor:
''The Mozart Myths: A Critical Reassessment'', de William
Stafford, publicada em pela Stanford University Press.
Livro:
Mozart, um Compêndio
Organizador:
H.C. Robbins Landon
Editora:
Jorge Zahar
CRONOLOGIA
.
1756 - Nascimento de Johan Chrysostom Wolfgang Theophilus
Mozart, ou Wolfgang Amadeus Mozart
.
1761 - Decora e executa em meia hora a primeira peça para
piano
.
1762 - Com sua irmã, apresenta-se para a imperatriz Maria
Teresa, da Áustria
.
1764 - Na Inglaterra, conhece Johann Christian Bach, que
o influencia. Publica em Paris suas primeiras sonatas
para piano e violino
.
1768 - Compõe sua primeira ópera, ''La Finta Semplice''
.
1772 - Contratado como músico do arcebispo de Salzburgo,
de quem se tornaria mais tarde organista
.
1778 - Conhece a família Weber, apaixona-se por Aloisia,
irmã mais velha de Constanze, com quem se casaria
.
1781 - Desliga-se em Viena da comitiva do arcebispo de
Salzburgo e passa a trabalhar por conta própria
.
1782 - Ópera ''O Rapto do Serralho'' estréia e é bem acolhida
em Viena
.
1784 - Mozart e a mulher se mudam para um luxuoso apartamento
em Domgasse
.
1785 - O compositor entra para a maçonaria
.
1786 - Estréia de ''As Bodas de Fígaro'', em Viena
.
1787 - Estréia de ''Don Giovanni'', em Praga
.
1790 - Estréia de ''Cosi fan Tutte'', em Viena
.
1791 - Estréia de ''A Clemência de Tito'' e de ''A Flauta
Mágica''. Morte de Mozart, a 5 de dezembro
COMPOSITOR
VIROU 'MERCADORIA' E FONTE DE RENDA PARA A FAMÍLIA
da
Reportagem Local
O
homem se tornou racionalmente curioso no século 18. Apaixonou-se
pelas ciências. Queria saber qual era o parentesco entre
os humanos e os bichos e, entre os humanos, quais os extremos
(genialidade ou bestialidade) entre os quais se acomodava
a imagem de quem era ''normal''. Leopold Mozart (1719-1787)
tinha uma ligeira noção dessas coisas. Sabia que a genialidade
era um fator valorizado e de fácil escoamento no mercado.
Se associada à precocidade, seria ainda melhor. É assim
que Wolfgang Amadeus Mozart surge como uma mercadoria
que seu pai, misto de empresário e músico, faz desfilar
pela Europa como fonte de renda familiar. Aos seis anos,
Mozart toca para o eleitor Maximiliano José 3º, em Munique,
e para a imperatriz Maria Teresa, em Viena. Aos sete anos,
toca para Luís 15, na França. Aos oito, já compõe sinfonias.
O investimento de Leopold no filho e a primazia dele sobre
a irmã, Nannerl, transparece num episódio de 1767. A família
Mozart está em Viena. Hospeda-se num apartamento onde
alguns dos filhos do proprietário contraíram varíola.
Leopold procura um novo alojamento. Não encontra nenhum
em que possa acomodar a todos. Deixa a mulher e a filha
no apartamento infectado e se muda com Wolfgang para um
outro local de menor risco. Já adulto, Mozart passa a
depender cada vez menos do pai, mas não consegue conviver
com as dificuldades cotidianas, intransponíveis para alguém
libertado de uma forte tutela. Seria essa uma das causas
de sua vida financeira desregrada, da inabilidade em negociar
preços ou se manter à tona num mercado cada vez mais competitivo.
Viena considerou Mozart, aos 26 anos, um de seus melhores
pianistas. Aos 36, era visto apenas como um entre os bons
compositores da periferia da corte.
FRASES
''Agora
lhe dou uma notícia que você provavelmente já recebeu,
isto é, que o ímpio arquipatife Voltaire, por assim dizer,
caiu morto como um cão _como um animal_ foi essa a sua
recompensa!'' Carta de Paris a Leopold Mozart, de 3 de
julho de 1778.
''Minha
querida mulherzinha, tenho muitos pedidos a lhe fazer:
(...) por favor, comporte-se de modo a levar em consideração
a sua e a minha honra, mas também considere as aparências.''
Carta a Constanze Mozart, de 16 de abril de 1789.
''(Constanze)
não possui inteligência, mas bom senso suficiente para
lhe permitir cumprir seus deveres de esposa e mãe.'' Carta
a Leopold Mozart, de 15 dezembro de 1781.
''As
pessoas acham impossível amar uma moça pobre sem ter intenções
abjetas.'' Carta a Leopold Mozart, de 22 de fevereiro
de 1778.
''Minha
única diversão é o teatro. Quisera que você pudesse assistir
a uma tragédia aqui: não conheço nenhum outro teatro em
que todos os gêneros sejam excelentemente interpretados.''
Carta a sua irmã, Nannerl, de 4 de julho de 1981.
''Digo-lhe
diante de Deus, como um homem honesto, que seu filho é
o maior compositor que conheço pessoalmente e de nome...''
De Joseph Haydn a Leopold Mozart, de fevereiro de 1785.
Extraído
do livro "O Combate de Mozart com os Reis Magos", de Martin
Scorsese. .