'COMPÊNDIO' DESFAZ MITOS SOBRE MOZART

Publicado na Folha de S.Paulo, quinta-feira, 16 de janeiro de 1997


João Batista Natali

da Reportagem Local


Praga era um movimentado centro musical, em 1787, quando Wolfgang Amadeus Mozart (1756-1791) estreou sua ópera ''Don Giovanni''. A cidade tinha apenas 80 mil habitantes. Viena, onde o mesmo Mozart estreara no ano anterior ''As Bodas de Fígaro'', era a capital do império dos Habsburgo e tinha uma população de 206 mil austríacos.

Qualquer bom compêndio de história demográfica trará curiosidades como essas. Mas, provavelmente, nenhum deles associará ao compositor de Salzburgo tantas informações contextualizantes quanto ''Mozart, um Compêndio'', organizado pelo musicólogo e historiador inglês H.C. Robbins Landon e que reúne verbetes de 24 excelentes colaboradores.

O livro, com 562 páginas, foi traduzido pela Jorge Zahar e lançado na mesma coleção em que já apareceram obras, com o mesmo formato, sobre Wagner e Beethoven. É uma maneira atraente e moderna de se praticar a historiografia musical. Há obviamente a biografia do compositor, mas sem o psicologismo ou as pieguices que tendem a valorizar o estereótipo do gênio incompreendido. Há também informações econômicas e políticas, sem no entanto fazer da música o suposto ''reflexo'' dessas determinantes.

No caso de Mozart, os editores correm um calculado risco ao trazerem um biografado que há bem pouco tempo _em 1991, bicentenário de sua morte_ foi objeto de uma bela enxurrada editorial. Conseguem, no entanto, fornecer uma referência obrigatória para especialistas ou curiosos de Mozart e contemporâneos. Falemos de dinheiro. Um empregado doméstico ganhava por ano, em Viena, de 10 a 30 florins. Quando em Salzburgo (até 1781), Mozart ganhava 450 florins como ''konzertmeister'' do conde-arcebispo Jerônimo Colloredo. Era quase a metade do que o mesmo governante pagava ao castrado Ceccarelli. O maior salário artístico da Áustria, no entanto, era talvez pago em Viena à soprano Nancy Storace (4.500 florins). Mozart produzia sob encomenda. Ao deixar Salzburgo, deixou também de ser um assalariado da nobreza. O ensaio dedicado a suas finanças pessoais conclui que, em seus dez últimos anos, ele levantou anualmente de 2 mil a 6 mil florins. É uma quantia elevada para que, mesmo perdulário, ele tenha morrido _conforme a mitologia_ em estado de indigência.

Não foi de maneira alguma verdade.

Outro mito, este bem mais desacreditado, diz respeito a suas relações com Antonio Salieri (1750-1825). O livro revela que em outubro de 1791 ele e a amante assistiram, como convidados de Mozart, no Theater auf der Wieden, à estréia de ''A Flauta Mágica''. Salieri se comoveu às lágrimas. Abraçou Mozart e lhe disse nunca ter escutado música tão bela. Salieri foi professor de Beethoven e Schubert.

Se a posteridade não reconheceu em sua música a qualidade encontrada na de Mozart, não quer dizer que ele, invejoso, tenha envenenado o rival. Essa bobagem, retomada em ''Amadeus'' (1984), filme de Milos Forman, já foi desmontada pelo próprio historiador Robbins Landon, com seu ''1791 - O Último Ano de Mozart'' (1988) ''Mozart, Um Compêndio'' não leva o leitor a perder tempo com essa e outras fantasias, embora mencione que Mozart, provavelmente um paranóico, julgasse ao fim da vida estar envenenado, e Salieri, já esclerosado, dissesse ter assassinado o amigo. Mozart morreu por volta de 1h da segunda-feira, 5 de dezembro de 1791.

John Stone, encarregado desse verbete no ''Compêndio'', é cauteloso no diagnóstico. Menciona todas as hipóteses, que vão de uma febre inflamatória de origem reumática à síndrome Henock-Schoenlein, responsável pela insuficiência e em seguida pelo colapso renal. É uma inconclusão semelhante à de outra das boas biografias recentes do compositor: ''The Mozart Myths: A Critical Reassessment'', de William Stafford, publicada em pela Stanford University Press.

Livro: Mozart, um Compêndio

Organizador: H.C. Robbins Landon

Editora: Jorge Zahar

 

CRONOLOGIA

. 1756 - Nascimento de Johan Chrysostom Wolfgang Theophilus Mozart, ou Wolfgang Amadeus Mozart

. 1761 - Decora e executa em meia hora a primeira peça para piano

. 1762 - Com sua irmã, apresenta-se para a imperatriz Maria Teresa, da Áustria

. 1764 - Na Inglaterra, conhece Johann Christian Bach, que o influencia. Publica em Paris suas primeiras sonatas para piano e violino

. 1768 - Compõe sua primeira ópera, ''La Finta Semplice''

. 1772 - Contratado como músico do arcebispo de Salzburgo, de quem se tornaria mais tarde organista

. 1778 - Conhece a família Weber, apaixona-se por Aloisia, irmã mais velha de Constanze, com quem se casaria

. 1781 - Desliga-se em Viena da comitiva do arcebispo de Salzburgo e passa a trabalhar por conta própria

. 1782 - Ópera ''O Rapto do Serralho'' estréia e é bem acolhida em Viena

. 1784 - Mozart e a mulher se mudam para um luxuoso apartamento em Domgasse

. 1785 - O compositor entra para a maçonaria

. 1786 - Estréia de ''As Bodas de Fígaro'', em Viena

. 1787 - Estréia de ''Don Giovanni'', em Praga

. 1790 - Estréia de ''Cosi fan Tutte'', em Viena

. 1791 - Estréia de ''A Clemência de Tito'' e de ''A Flauta Mágica''. Morte de Mozart, a 5 de dezembro

COMPOSITOR VIROU 'MERCADORIA' E FONTE DE RENDA PARA A FAMÍLIA

da Reportagem Local

O homem se tornou racionalmente curioso no século 18. Apaixonou-se pelas ciências. Queria saber qual era o parentesco entre os humanos e os bichos e, entre os humanos, quais os extremos (genialidade ou bestialidade) entre os quais se acomodava a imagem de quem era ''normal''. Leopold Mozart (1719-1787) tinha uma ligeira noção dessas coisas. Sabia que a genialidade era um fator valorizado e de fácil escoamento no mercado. Se associada à precocidade, seria ainda melhor. É assim que Wolfgang Amadeus Mozart surge como uma mercadoria que seu pai, misto de empresário e músico, faz desfilar pela Europa como fonte de renda familiar. Aos seis anos, Mozart toca para o eleitor Maximiliano José 3º, em Munique, e para a imperatriz Maria Teresa, em Viena. Aos sete anos, toca para Luís 15, na França. Aos oito, já compõe sinfonias. O investimento de Leopold no filho e a primazia dele sobre a irmã, Nannerl, transparece num episódio de 1767. A família Mozart está em Viena. Hospeda-se num apartamento onde alguns dos filhos do proprietário contraíram varíola. Leopold procura um novo alojamento. Não encontra nenhum em que possa acomodar a todos. Deixa a mulher e a filha no apartamento infectado e se muda com Wolfgang para um outro local de menor risco. Já adulto, Mozart passa a depender cada vez menos do pai, mas não consegue conviver com as dificuldades cotidianas, intransponíveis para alguém libertado de uma forte tutela. Seria essa uma das causas de sua vida financeira desregrada, da inabilidade em negociar preços ou se manter à tona num mercado cada vez mais competitivo. Viena considerou Mozart, aos 26 anos, um de seus melhores pianistas. Aos 36, era visto apenas como um entre os bons compositores da periferia da corte.

FRASES

''Agora lhe dou uma notícia que você provavelmente já recebeu, isto é, que o ímpio arquipatife Voltaire, por assim dizer, caiu morto como um cão _como um animal_ foi essa a sua recompensa!'' Carta de Paris a Leopold Mozart, de 3 de julho de 1778.

''Minha querida mulherzinha, tenho muitos pedidos a lhe fazer: (...) por favor, comporte-se de modo a levar em consideração a sua e a minha honra, mas também considere as aparências.'' Carta a Constanze Mozart, de 16 de abril de 1789.

''(Constanze) não possui inteligência, mas bom senso suficiente para lhe permitir cumprir seus deveres de esposa e mãe.'' Carta a Leopold Mozart, de 15 dezembro de 1781.

''As pessoas acham impossível amar uma moça pobre sem ter intenções abjetas.'' Carta a Leopold Mozart, de 22 de fevereiro de 1778.

''Minha única diversão é o teatro. Quisera que você pudesse assistir a uma tragédia aqui: não conheço nenhum outro teatro em que todos os gêneros sejam excelentemente interpretados.'' Carta a sua irmã, Nannerl, de 4 de julho de 1981.

''Digo-lhe diante de Deus, como um homem honesto, que seu filho é o maior compositor que conheço pessoalmente e de nome...'' De Joseph Haydn a Leopold Mozart, de fevereiro de 1785.

Extraído do livro "O Combate de Mozart com os Reis Magos", de Martin Scorsese. .


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