A ROUPA COMO PRESERVATIVO
Estudiosa
da história da moda, Valerie Steele fala do glamour exagerado
da roupa no Brasil e de como o vestuário está reproduzindo
as barreiras sexuais deste fim de século
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Publicado
na Folha de S.Paulo,
domingo, 29 de outubro de 2000
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Caderno
Mais!
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Tarcísio
D'Almeida
especial para a Folha
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Valerie Steele, 45, é um sucesso e uma autoridade no meio intelectual
quando o assunto é história da moda. Contrária
a todos os movimentos acadêmicos que ainda mantêm certa
ressalva a temas como esse, Valerie a escolheu para seu projeto de
carreira, que já registra uma produção bastante
expressiva, com oito livros publicados ("Fetiche - Moda, Sexo
e Poder" saiu em português pela editora Rocco), curadoria
de exposições no museu do afamado Fashion Institute
de Technology, em Nova York e, o mais ambicioso de seus projetos,
a revista "Fashion Theory - The Journal of Dress, Body &
Culture", primeira publicação no mundo que reflete
teoricamente sobre a moda.
Orientada em sua tese de mestrado (Universidade Yale, EUA, 1985) pelo
historiador Peter Gay, a pesquisadora fala a seguir à Folha
sobre o tema que estuda há pelo menos 20 anos.
Pode-se dizer que a criação da moda no Ocidente se
dá por volta do século 14, no interior das sociedades
aristocráticas? O aparecimento do fetiche é dessa mesma
época?
Há exemplos de fetiches de milhares de anos atrás, no
Império Romano e na China imperial, mas começamos a
ver realmente moda fetichista a partir do século 18, quando
se iniciam as formações dos grandes núcleos urbanos,
inclusive com o início do comércio de moda, além
do registro de poemas relatando a beleza de pés e de sapatos.
Foi no século 18 que começamos a ver fetichismo de pés
e sapatos em lugares como Paris, característicos do crescimento
da moda como um fenômeno da massa urbana que começa a
surgir.
O sonho é uma espécie de "pré-fetiche"?
Sim, com certeza. Um fetiche, como diz o psiquiatra Robert Stoller,
é o símbolo de toda uma história, como um objeto
e uma fantasia, é aquilo que está por trás da
realidade de um determinado objeto, podendo simbolizar, digamos, uma
simples mulher ou uma ardente mulher, calçando botas de salto
alto e caminhando em sua direção, deixando homens e
mulheres excitados ao ver as botas. Os sonhos, obviamente, podem ser
uma expressão da fantasia, e você pode ter fantasias
encantadoras e outras que fazem com que você cumpra com seus
rituais.
Qual a relação entre fetiche e erotismo?
Erotismo tem muito a ver com fantasia e com aquilo que as pessoas
julgam ser eroticamente atraente. O que é um tanto diferente
do fetichismo é que este tem uma característica de obsessão
e se concentra num determinado objeto, seja parte do corpo, seja peça
de roupa ou qualquer outro objeto ou ritual, ao passo que o erotismo,
de modo geral, tende a ser mais difuso e sempre haverá muitas
coisas e não uma só que podem excitar na pessoa-objeto.
A sra. acredita que, além de sacrificar o antigo conceito
de elegância, em moda, o fetiche impõe atualmente seus
ditames ao próprio corpo?
O fetichismo, com certeza, exige um tipo de apresentação
ritualística e até mesmo uma certa elegância,
que está mais ligada aos ideais culturais de status e feminilidade.
Tende a ser mais relacionado não a um modelo mais primitivo,
mas a um modelo ritualístico de comportamento, de modo que
o cerne do fetichismo _quer as coisas ocorram uma, duas, três
vezes exatamente da mesma maneira_ seria diferente de um namorico
comum, no qual você não sabe exatamente para onde as
coisas estão caminhando, o que é parte de seu encanto.
Como se dá a questão do "novo" no fetichismo?
Segue a mesma lógica da moda?
Um dos paradoxos da moda fetichista é que a moda trata de novidades
e adora novidades, mudanças e variações, ao passo
que o fetichismo tende a ser altamente repetitivo, com as mesmas coisas
acontecendo das mesmas maneiras. Daí haver uma certa contradição
nos termos. A roupa fetichista seria a mesma nos anos 20, 30, 40,
50, 60, ao passo que a moda está sempre mudando e, especialmente,
a moda pós-moderna, que é quase uma espécie de
pastiche, tomando coisas de diferentes áreas, inclusive de
coisas do fetichismo, embora com objetivos muito diferentes daquelas
roupas do fetichismo tradicional.
O ciborgue é um provável novo fetiche para o século
21?
Sim. Não poderia ter havido fetichismo com a borracha
antes da invenção das roupas emborrachadas. Portanto
também com a invenção das novas tecnologias computadorizadas
começa a existir um crescente interesse na idéia de
sexo virtual e uma idéia _uma espécie de fetiche virtual
nascente_ entre humanos e máquinas, e essa parece ser uma fantasia
sexual que se espalha cada vez mais e que não passa de mais
um fetichismo sexual de larga disseminação. Tem a vantagem
de ser algo que você pode realizar sozinho, na tela do computador,
e você pode manipulá-lo do jeito que quiser _de modo
que, sim, realmente, penso que a fantasia ciborgue é um tipo
de sexo virtual ou a próxima onda da moda fetichista e do fetichismo.
A sra. fala na roupa fetichista como uma forma de segurança
sexual, como o látex da camisinha, e isso é uma característica
das últimas décadas, sobretudo na "geração
X". Há relação entre segurança na
prática fetichista com o isolamento do indivíduo?
Bem, eu realmente acredito que a experiência da sexualidade
é diferente no tempo e no espaço. O fetichismo e outros
tipos de atitudes teatrais, agindo fora das fantasias sexuais, estão
se tornando mais importantes à medida que a troca de fluidos
corporais está cada vez mais perigosa. Portanto as roupas fetichistas
são, muitas vezes, aquilo que é fisicamente revelador,
são muito justas e modeladas ao corpo, brilhantes e com aspecto
molhado e lubrificado para excitação sexual, mas são,
também, um tipo de barreira: a moda como preservativo, de certo
modo.
Moda e fetiche são dois fenômenos ocidentais, modernos
e, por excelência, libertários? A sra. acredita que a
moda fetichista e a publicidade devem ser vistas como faces da exclusão
social?
Esses fenômenos não são exclusivos da cultura
ocidental ou hodierna: vemos exemplos nas culturas não-ocidentais
e pré-modernas. O tipo de conexão entre as imagens da
publicidade e fetichismo é, acredito, não uma relação
de causa e efeito, ou seja, a propaganda não é a causa
de um dado fetiche. Mas, muito além disso, a publicidade reflete
algo existente numa cultura, uma vez que você nunca irá
vender algo sendo ingênuo a ponto de usar um método ineficaz
de vendas ao tentar induzir um fetiche numa cultura, sabendo que é
muito mais rápido e eficiente vender mercadorias usando um
fetiche já existente.
Atualmente o homem conhece mais seus dilemas ou a fragmentação
da pós-modernidade o dispersou?
Quando se olha uma cultura, qualquer pensamento pode penetrar
a cultura em geral, e mesmo os conceitos mais básicos, como
a idéia de discurso, não são algo que tenha significado
para a maioria das pessoas. Assim toda a crescente complexidade de
teorizar sobre pós-modernismo circunscreve-se aos meios intelectuais.
As pessoas comuns ainda pensam em sexo e em corpo, basicamente, da
mesma forma como pensavam há centenas de anos.
Além dos acessórios, a idade, o tipo físico
e o estilo são itens característicos na simbologia da
moda fetichista?
O foco obsessivo sobre as características particulares
de um objeto de fetiche pode ser relacionado a itens do vestuário
ou tipo de corpo ou partes do corpo, de modo que se pode dizer que
uma pessoa seria atraída apenas por roupas emborrachadas ou
pretas ou por uma roupa de borracha preta ou uma roupa de borracha
preta com aspecto molhado e que tenha sido cortada a faca.
Todos esses tipos muito explícitos de critérios existem
entre os fetichistas, de modo que todos somos místicos em algum
grau, o que é o primeiro degrau do fetichismo porque não
somos atraídos da mesma forma por qualquer pessoa que passe
na rua, podemos ser gays, podemos ser heterossexuais, podemos preferir
negros ou negras ou louros ou louras. Todos têm escolhas, mas
quando se vai ficando mais específico, pode-se apenas desejar
um tipo específico e, então, ser atraído por
um tipo, como se, ao se insistir sobre sexualidade ou comportamento
sexual, fosse necessário seguir um padrão determinado.
A sra. conhece alguma coisa sobre moda brasileira?
Sendo o Brasil tão grande e complexo, não se pode
falar em uma moda brasileira, o que seria mais familiar para os Estados
Unidos e Europa. Evidentemente a moda do Brasil é mais do que
Carnaval e Carmen Miranda, é mais do que fantasia, biquíni
etc. Existe, é claro, muita coisa ligada a estereótipos.
Assim, as características visuais parecem estar relacionadas
à moda e à cultura brasileiras. Mas, além disso,
há uma ampla gama de estilistas, como Lino Villaventura, que
é muito exótica e me lembra designers como Paul Poiret,
com seu orientalismo e seu tipo delicado de acabamento artesanal.
Por outro lado, também posso ver elementos brasileiros, por
exemplo, no tratamento de algumas decorações, algo de
látex, como em Alexandre Herchcovitch, que também fez
seu látex sair das roupas de Carnaval. Então, vocês
têm alguém, como Frankie Amauri, com todo o dourado hollywoodiano,
o tipo da coisa que vende muito bem em Los Angeles, pois ele tem algo
que diz respeito a coisas que interessam a outros povos e a outro
tipo de cultura do corpo, cultura de mídia e sociedades.
Agora, algumas das grandes marcas, como M. Officer e a espanhola Zara,
têm coisas que se encontram em toda parte. Algumas dessas empresas
são como o tipo de moda que segue a onda, e a tendência
é a mesma que há em todo o mundo. Os sapatos são
o maior produto de moda do Brasil, como na Itália. E, como
os sapatos italianos, os brasileiros são muito sexy, femininos
e coloridos. É difícil saber se um tema verdadeiramente
brasileiro é parte mercadológica apenas para ser exportada
pelos fabricantes brasileiros. Parece existir uma feminilidade e glamour
exagerados, de certa forma, na moda brasileira.
No Brasil, a senhora comprou alguma peça de estilistas brasileiros?
Sim, comprei um monte de sapatos na rua. Os sapatos são
muito sexy, muito atuais e baratos. Queria comprar algumas peças
de Lino Villaventura, mas o dinheiro não deu porque são
muito caras.
Os anos 80 foram dominados pelos japoneses, os 90 pelos belgas.
Qual será o próximo país a dominar a moda?
Bem, uma área da qual pouco se tem ouvido falar e da qual
se pode esperar alguma coisa é a América Latina. Penso
que está todo o mundo falando que este é o momento da
moda no Brasil. Mas o que me parece é que se trata de um micromomento,
porque Gisele Bündchen é a modelo da hora. Mas é
perfeitamente possível que ela possa causar um impacto, um
impacto latino, na moda porque há o sex appeal da consciência
do corpo, há infra-estrutura de confecção e uma
sofisticada cultura de design. Acho que é uma questão
de tentar levar aos olhos do mundo o que evidentemente é difícil;
como é difícil quebrar barreiras nos mercados norte-americano,
francês e italiano, é também difícil a
luta na arena da mídia.
Tarcísio D'Almeida é conselheiro editorial
da Sociedade Brasileira de Estudos em Moda. Entre seus trabalhos estão,
estudos para a USP (Universidade de São Paulo) sobre semiótica
da moda, contribuições para os jornais Folha de S.Paulo,
"Jornal da Tarde", "O Globo" e "Valor Econômico"
e a revista "Vogue".
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