BIOGRAFIA ATESTA A MARCA INDIVIDUAL DE COCO CHANEL

"Chanel: Seu Estilo e Sua Vida", recém-lançado no Brasil, conta detalhes da estilista

Publicado na Folha de S.Paulo, sexta-feira, 21 de janeiro de 2000

Tarcísio D'Almeida
especial para a Folha

O mundo da moda tem personalidades que servem como marcadores e divisores históricos. Entre elas, podemos citar, Coco Chanel, além de Paul Poiret (com sua costura que libertou a mulher do espartilho), Christian Dior (e o seu "new look", após a Segunda Guerra Mundial), ou mesmo Diana Vreeland (a sacerdotisa do jornalismo de moda que reinou durante décadas na "Vogue" e na "Harper's Bazaar" norte-americanas).
Essas e tantas outras personalidades que criaram o que entendemos, hoje, por mundo fashion permeiam a biografia "Chanel: Seu Estilo e Sua Vida", da escritora Janet Wallach, recém-lançada no Brasil pela editora Mandarim. Trata-se da terceira obra biográfica traduzida no país. As outras duas, "Chanel" (Martins Fontes), de Axel Madsen, e "Coco Chanel" (Rocco), de Marcel Haedrich, foram editadas, respectivamente, em 92 e 88.
Wallach consegue traçar no seu livro um perfil histórico e iconográfico resultante de um vasto período de pesquisas em arquivos e bibliotecas, que nos faz lembrar o empenho de outra biógrafa de Chanel, Edmonde Charles-Roux, com seus três livros. A seção de Special Collections do Fashion Institute of Technology e o Costume Institute do Metropolitan Museum of Art, além da Parsons School of Design, todos em Nova York, são alguns desses centros de investigação.
Na França, a autora consultou, além da própria Maison Chanel, o Musée de la Mode & du Textile, em Paris. Dividido em 11 capítulos e de leitura rápida e agradável, o livro traça todo o perfil e acontecimentos da vida de Mademoiselle Chanel (como era chamada).
A autora investiga o seu surgimento como criadora do primeiro império de moda no mundo, quebrando o estilo e estética de Paul Poiret até a sua consagração, isolamento (com o momento histórico em que se aliou a um espião alemão na Segunda Guerra) e retorno, no final dos anos 50, ao cenário da moda. O livro de Wallach é um modelo de biografia pictórica com apuração dos fatos históricos.
Dona de um estilo jornalístico e descritivo, Wallach traz à tona, antes de mais nada, um livro que chega ao leitor como um frenesi sobre a vida social de transição do século 19 para o 20. Aliás, Chanel foi o maior exemplo dessa transição. Foi uma mulher de fases, mas sobretudo uma visionária que antecipou idéias e estilos de comportamento do século 20.
Chanel (ou Coco Chanel, como ficou conhecida após ter sido apelidada por seu pai e quando se apresentava num cabaré onde cantava a música intitulada "Quem Viu Coco") tornou-se, então, ícone de expressão do estilo único e universal da moda nesse século. Sua visão de moda ultrapassava as barreiras vigentes na época. Sempre teve preocupações de fazer ligações entre a publicidade (coisa nova na época) e o que propiciasse conforto.
Vida
Nascida na cidade de Saumur, no interior da França do século 19 (mais precisamente em 19 de agosto de 1883), Chanel conseguiu fazer de tudo um pouco. Da garota que aprendeu a costurar no internato à mulher balconista na loja de lingeries e enxovais Saint-Marie, em Moulins, até a mulher que conseguiu seu segundo emprego remendando fardas de oficiais da guarnição da cidade, Chanel construiu uma marca: seu sucesso e ambição eram homônimos, tinham o seu próprio nome.
Com o jérsei, seu tecido predileto, trouxe ao mundo sua criação máxima: o tailleur, em suas várias e marcantes versões. Lançou estilo e personalidade, que se entrelaçaram em todas as suas criações. Antecipou-se, contudo, e lançou o que hoje é um dos carros-chefes das maisons de moda em todo o mundo: o perfume, seu Chanel Nº 5 se transformou em sua marca etérea.
Chanel realmente se tornou um modelo para as mulheres. Wallach relata que "quando dois escritores norte-americanos publicaram um livro sobre Paris, aconselharam as leitoras solteiras a correr para a rua Cambon (lugar onde ficava seu ateliê)".
Chanel era metodicamente detalhista, funcional e profissional com seu estilo. "Como um escultor cinzelando sua criação, ela estava sempre aperfeiçoando o que criava, sempre aparando aqui ou ali", escreve Wallach, "o segredo de seu sucesso, Chanel sabia, era a adequação da roupa ao corpo".
Para a estilista italiana Miuccia Prada, "Chanel era um gênio. É difícil dizer exatamente por quê, mas tem a ver com o fato de que ela queria ser sempre diferente e independente".
Chanel morreu aos 86 anos, em 11 de janeiro de 1971, na sua suíte chiquérrima no hotel Ritz. Antes disso, ela ainda testemunhou o que hoje é apenas endossado por Karl Lagerfeld: seu sucesso ao consolidar um estilo ímpar na moda. Seu perfume, seu tailleur, sua bolsa a tiracolo com corrente dourada traduzem o brasão em que as duas letras "c" (de Coco Chanel) trazem elegância e liberdade à mulher. Em 1975, a loja Neiman Marcus lhe ofereceu o prêmio de estilista mais importante dos últimos 50 anos.
Chanel, muito antes do lançamento de "O Segundo Sexo", a bíblia feminista de Simone de Beauvoir, antecipou a liberação da mulher com sua moda simples, mas de alfaiataria bem cortada e elegante. Chanel tornou-se "um exemplo da nova mulher", escreve Wallach, "vivia abertamente com um homem que amava, sem ser casada, e tinha independência financeira como empresária de sucesso".
Lançou seu famoso vestidinho preto, que se tornou peça básica e foi descrito pela "Vogue" americana, em 1926, como o Ford (carro famoso na época) da moda, notando o sucesso em que ele se transformaria durante décadas. Chanel confirmou seu êxito na Exposition des Arts Décoratifs, em Paris, no mesmo período.
O escritor Victor Margueritte, no seu escandaloso romance "La Garçonne" (de 1922), delineou essa mulher moderna como "uma jovem com modos de menino, cabelo cortado curto, corpo magro e reto, roupas simples, tendência para ser independente e um ar quase arrogante".
Pronto. Estava fundamentado a ligação da obra com o que Chanel fazia: o livro passa a impressão de ter tido Chanel como seu modelo inspirador. George Bernard Shaw a definia como "a maravilha da moda mundial".
Foi notícia nas já famosas "Vogue" e "Harper's Bazaar", até hoje referências no jornalismo de moda. Seu estilo "fazia da simplicidade uma simplicidade bastante cara a idéia fundamental da moda da época", escreveram os editores da "Harper's".
Moda e arte
Outros setores marcados pela forte e marcante presença de Chanel foram os das artes cênicas, da dança e da literatura. Chanel estabeleceu (ou melhor, cultivou) amizades estratégicas com personalidades que frequentavam seu famoso ateliê na rua Cambon, em Paris. Os pintores Pablo Picasso e Salvador Dalí, o escritor Jean Cocteau, os poetas Claude Debussy e Pierre Reverdy, os bailarinos Nijinsky e Serge Lifar, o compositor Igor Stravinsky e Sergei Diaghilev foram algumas das personalidades que associaram o nome de Chanel ao momento modernista, vivenciado nas primeiras décadas do século 20. Para Wallach, "sua arte minimalista em relação à moda que criava não estava muito longe das idéias da arte abstrata".
Desenhou os figurinos da peça "Antígona" (de Sófocles), "Édipo Rei" e "Os Cavaleiros da Távola Redonda", todas adaptadas por Jean Cocteau; da ópera-balé "Le Train Bleu", para a Ballets Russes, de Diaghilev.
Para o cinema, fez o figurino de divas como Ina Claire (em "Cortesãs Modernas"), Gloria Swanson (em "Tonight or Never") e Greta Garbo. O cineasta Jean Renoir também teve o talento de Chanel no figurino de seu filme, "A Regra do Jogo". E também com Salvador Dalí, no Ballet Bacchanales.
Em 1969, Chanel foi enredo de um musical na Broadway, Coco foi interpretada por Katherine Hepburn, que se vestiu como a estilista. No Brasil, ela também foi tema da peça "Mademoiselle", em 1996, escrita por Maria Adelaide Amaral e estrelada por Fernanda Montenegro.
O documentário do cineasta norte-americano George Katzender, realizado em 1980, registra também a vida da estilista.

Tarcísio D'Almeida é conselheiro editorial da Sociedade Brasileira de Estudos em Moda. Entre seus trabalhos estão, estudos para a USP (Universidade de São Paulo) sobre semiótica da moda, contribuições para os jornais Folha de S.Paulo, "Jornal da Tarde", "O Globo" e "Valor Econômico" e a revista "Vogue".


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