ATRÁS DOS OCULOS ESCUROS

Publicado na Folha da Manhã, domingo, 14 de agosto de 1949

Neste texto foi mantida a grafia original

A moda, que é incerta e variavel nas suas manifestações, nos apresenta o uso de oculos escuros como um dos seus ultimos caprichos.
Quem quer que saia à rua pode observar que, de tão comum, tal uso já se vai convertendo em abuso. A intensidade da luz solar nem sempre se presta a justificá-lo, pois à noite, ou em dias palidos, ou no interior de edificios, nos é dado encontrar pessoas de olhos vedados por vidros da côr de gordura de caranguejo. É certo que muita gente se utiliza de lentes coloridas, sob prescrição, ou por algum defeito nos orgãos visuais. Há, porem, o lado subjetivo que pode ser apontado como a maior causa dessa utilização.

Dissimulação

Há os que desejam ocultar a irritação que a bebida alcoolica lhes produz nos olhos; os que procuram esconder as olheiras, os batedores de carteira que querem observar, sem que ninguem os observe; os professores que almejam surpreender alunos em plena "cola"; e há tambem as pessoas borboleteadoras que se interessam em ver quantas outras procuram espreitar-lhes para dentro da alma. A todas essas finalidades se têm prestado os oculos escuros. Não é, pois, de admirar que a venda de tais lentes tenha aumentado de 25%, sucessivamente, de 1942 a esta parte, conforme nos informou uma das maiores opticas desta capital. Muita coisa ainda se poderia expor, mas demos a palavra a autoridades em assuntos a que, direta ou indiretamente, se liga o uso de oculos escuros. Seja a primeira a de um sociologo, prof. Florestan Fernandes:

Fala o sociologo Florestan Fernandes

"Do ponto de vista sociologico, o uso dos oculos escuros pode ser encarado como fenomeno social, desde que o seu incremento se ligue a flutuações da moda. Em São Paulo, não foi feita nenhuma pesquisa a tal respeito. É evidente que ditos oculos se tornaram um adorno, principalmente feminino. Em tal sentido facilmente se verifica a utilização deles, sem causa aparente de deficiencias visuais: são usados oculos vistosos e seus portadores o fazem de forma inadequada (à noite, à sombra, dentro de cinemas, teatros, etc.). Pode-se observar além disso uma interessante mudança na avaliação dos oculos escuros: ainda há poucos anos se atribuia alguma doença às pessoas que dêles usavam. Eram, portanto, simbolo de anormalidade organica. Agora, porem, já não se consideram desse modo, pois adquiriram um valor estetico, pelo menos para algumas camadas da população, de acordo com as flutuações da moda.
"Isto é o que no momento posso dizer com referencia aos oculos escuros."

Uso perigoso

Cremos que a todos interessa o modo de ver de um tecnico, por isso achamos de todo valiosa a palavra do oftalmologista prof. Ciro de Resende.
- Pode qualquer pessoa usar oculos escuros, sem prescrição do oculista? Perguntamos.
- "Absolutamente não pode. Se bem que se permita o uso de lentes coloridas a pessoas que sentem demasiado a luminosidade dos ambientes, é preciso submeterem-se previamente ao exame dos olhos por oftalmologistas, portanto podem necessitar, alem dos vidros coloridos, de lentes corretoras de um vicio de refração (miopia, hipermetropia e astigmatismo). O que se nos afigura mais grave ainda é que, deixando de verificar a existencia ou não de determinadas molestias em começo, as teriam agravadas e aceleradas com o uso de lentes escuras."
- A quem cabe descobrir a sensação de horror à luz de que muitas pessoas se queixam: ao oculista ou ao paciente?
- "A primeira queixa parte evidentemente do paciente; todavia, não há duvida alguma de que cabe ao medico a verificação e a interpretação da fotofobia, pois ela representa um sintoma ligado a varias afecções oculares que muitas vezes nada têm que ver com o uso de oculos escuros. O horror à luz pode ser sintoma de conjuntivites, queratites, uvrites, etc. Condenamos o uso empirico, porque existem vidros bons e vidros maus."
- Quando e onde se pode utilizar de lentes coloridas?
- "Em tese o vidro colorido requer sempre um esforço visual maior do seu portador e, evidentemente, não deve ser usado à noite, nem em dias sombrios. Atualmente as lentes coloridas dão uma media exata da quantidade de luz para absorver. Da luz solar, os raios mais prejudiciais são aqueles de grande e pequeno comprimento de onda em relação ao espectro visivel, isto é, os raios infravermelhos e ultravioletas."
- Como explicar v. s. o maior uso de oculos escuros modernamente?
- "O habito generalizado de uma vida mais intensa à beira das praias, as excursões às montanhas, o automobilismo e, quanto ao uso pelo sexo feminino, inegavelmente tambem a influencia da moda, fazem com que o emprego deles se expanda. Como acentuei, desde que haja um previo exame ocular, não vejo nenhum inconveniente nesse uso", concluiu o entrevistado.
Depois dessa exposição tecnica, vamos dar a palavra ao prof. Flaminio Favero, medico-legista:

Simulação e embuste

"No curso superior, tive um colega de turma, que, para dormir em aulas que ele achava enfadonhas, arranjava um ritual complicado: sentava-se em cadeira perto da parede, abria sobre os joelhos um caderno de notas, empunhava o lapis para simular que registrava os ensinos ouvidos e enganchava no nariz uns oculos escuros. E dormia assim beatificamente. Às vezes pescava uns peixes pesados demais e sua cabeça dava arrancos denunciadores. Mas em breve a situação se normalizava e o sono prosseguia em forma.
"Fiquei assim com a idéia de que oculos escuros em geral significam simulação, dissimulação, embuste, "fita". E trouxe pela vida fora essa idéia evidentemente nem sempre certa, porque há oculos escuros que se usam por indicação de feições especiais de trabalho, visando proteger os olhos contra a intensidade da luz. É o que acontece com operarios que trabalham com maçarico, por exemplo. Outras vezes há prescrição medica para pessoas hipersensiveis se protegerem contra a luz, ou então em casos de certas afecções oculares agudas que tanta irritação causam.
"Mas terão essas justificativas todos os oculos escuros que vemos por aí, até em dias de pequena luminosidade, à tarde e mesmo à noite? Não haverá nisso alguma sedução da moda, que determina ser chic esconder os olhos atrás de vidros foscos?

As "janelas da alma"

"É claro que não me abalançarei a afirmar que assim alguns querem mudar os traços fisionomicos, com propositos pouco razoaveis, ou pôr-se em condições de bem observa olhos estranhos sem permitir que os seus sejam vistos. E a possibilidade é facil. Antigamente as casas tinham rotulas que permitiam ao habitante delas ver a rua sem ser visto. Hoje as venezianas ainda facilitam em parte esse desejo. Será que alguns não usam oculos escuros com a intenção de esconder "as janelas da alma", sem lhes tirarem a capacidade de observação? Esse aspecto psicologico do uso de tais lentes é digno de ser estudado. Tambem o é a deformação fisionomica determinada pelos oculos esfumaçados.
"Nós, os medicos, quando queremos, na publicação de trabalhos ilustrados com o rosto de pacientes, documentar algum ensino, costumamos fazer uns traços a tinta nanquim nos olhos, de modo que impeçam a identificação da pessoa examinada. Os oculos escuros desempenham a mesma tarefa. È comum ver as dificuldades que encontramos para reconhecer um amigo portador desses oculos.
"O assunto interessa assim, e bem de perto, à medicina legal", finalizou.
Por ultimo falou-nos um psicologo, Miguel Rizzo:

A palavra de um psicologo

Segundo alguns psicologos, todas as facetas da vida, desde as resoluções dificeis em que a vontade entra em luta aberta contra os instintos, até os cacoetes que parecem completamente inexpressivos, refletem sempre caracteristicos da personalidade, os quais embora não estejam evidentes podem todavia ser descobertos e analisados pela psicologia profunda.
"Aceita essa doutrina, podemos admitir que o uso de oculos escuros representa traço psicologico diferenciado de individuo para individuo. É evidente, porem, que tal apreciação não se faz no escasso tempo de uma entrevista. Entretanto é possível dizer alguma coisa a respeito do uso desses oculos. Casos há em que significa proteção contra a intensidade da luz. Já tive de fazer, de canoa, uma viagem que durou cerca de cinco horas, em dia muito luminoso. O reflexo dos raios solares, nas aguas, de certa altura da viagem em diante castigaram-me de tal modo os olhos que lamentei não ter tido a lembrança de levar oculos escuros.

O disfarce de defeitos

"Outra utilidade está nisto: os oculos escuros escondem algum defeito que, exposto, tornaria a fisionomia defeituosa. Oculto ou disfarçado esse defeito, o portador dele sentir-se-á mais à vontade no trato social.
"Mas ao lado dos beneficios que prestam os oculos escuros, há a simulação que talvez seja o caso mais explorado. Certo dia, ouvindo bater à porta, saí à janela para atender. Vi um menino com o rosto voltado exatamente para a porta. Perto dele havia outra pessoa. Essa, vendo-me ao longe, disse ao pequeno: "Já não precisa bater, estão atendendo." Chegando à porta, tive grande surpresa: o homem que me vira de tão longe pedia esmola, dizendo-se cego. E estava de oculos escuros. Se não fosse esse recurso condenavel, perceber-se-ia logo, como tive depois ocasião de verificar, que os olhos desse "cego" precisavam mesmo de ser ocultados, porque nada havia neles que revelasse molestia da vista.
"Resumindo, posso afirmar que em muitos casos, o uso de oculos escuros é perfeitamente justificavel, mas em outros revela defeitos morais que facilmente podem ser descobertos mesmo por pêssoas que não saibam usar dos metodos de psicanalise. O assunto comportaria mais apreciações, mas imagino que já satisfiz, em parte ao menos a curiosidade do reporter e por isso paro aqui."
Desse modo o psicologo Miguel Rizzo pôs fim à série de entrevistas que promovemos a respeito do uso das lentes escuras, tão em voga em nossos dias.


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