A MORAL NA MODA: A HISTORIA DAS MEIAS
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Publicado
na Folha de S.Paulo, sexta-feira, 13 de setembro de 1974
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A noiva
do rei Felipe IV da Espanha encontrava-se em viagem para Madri, Era
uma viagem cansativa e havia constantes paradas, pois cada cidade
queria festejar a viajante e preparar uma recepção brilhante
à futura rainha. Mais uma vez o cortejo parou. Segundo o cerimonial
espanhol, vieram os cumprimentos. Depois entregaram à princesa
um presente de casamento - uma caixinha dourada assentada numa almofada
de veludo.
Curiosa, a noiva abriu a caixa, fitou-a e deixou-a cair como se estivesse
queimando. Parecia querer desmaiar. O seu séquito acorreu e
o marechal da Corte lançou um olhar rápido para o terrível
presente. No estojo dourado estava, nada mais, nada menos, um par
de meias de seda. Era incrível! Apanhou a caixa e devolveu-a.
"Uma rainha não tem pernas!", disse ele friamente.
Assim era naquele tempo. A observação do marechal da
Corte espanhola, que hoje parece cômica, significava que era
o cúmulo do atrevimento pensar na existência das pernas
de uma mulher, e ainda mais quando essa mulher era uma rainha.
A moda de saias para as mulheres era até o chão. As
saias mal deixavam ver a ponta dos pés. O que era permitido
aos homens - mostrar as pernas - era vedado às mulheres. Era
de muito mau gosto falar das pernas; quanto às meias, nem sequer
se devia pensar em tal coisa.
Os governantes daquela cidade queriam oferecer qualquer coisa preciosa,
um presente digno de rainha. E ao mesmo tempo era um artigo de que
se podiam orgulhar, porque se tratava de uma perfeição
de manufatura da sua cidade. Por isso escolheram as meias de seda,
que representavam naquele tempo um artigo muito raro, um luxo.
Talvez até a pobre princesa tivesse apreciado muito as meias
de seda mas, como foram oferecidas de forma tão direta e em
público, não lhe restava outra solução
senão ficar chocada, ainda que intimamente isso a aborrecesse.
Afinal de contas, oficialmente ela não tinha pernas.
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Quem
fez as primeiras meias? |
Trezentos anos decorreram entre o espanto do presente das meias à
noiva do rei e os grandes anúncios de meias de hoje. Uma longa
distância não só na moda, mas também nos
limites do que é permitido.
Igualmente grande é a distância que vai desde as meias
da Idade Média até as de náilon. Pertence às
curiosidades da história da moda ver o longo caminho que percorreram
as meias.
Quem fez as primeiras meias? Não se sabe. A tecelagem era uma
arte já conhecida no século XV, conforme o provam achados
daquele tempo. Mas depois caiu no esquecimento, e só se impôs
definitivamente no século XVI.
Não foi por acaso que as meias reapareceram na Espanha. A moda
espanhola, que dava o tom da moda européia entre 1550 e 1650,
sobretudo a masculina, tinha necessidade de criar meias que não
enrugassem nas pernas.
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A
moda ordenava: encher! |
Os homens espanhóis mostravam as pernas. Usavam calças
que chegavam apenas até o meio das coxas, e essas calças
eram cheias até ficarem redondas. Igualmente cheio era o gibão
que combinava com as calças.
Esta toalete da moda espanhola era completada por uma capa curta e
por um barrete ou um chapéu de meia altura e de abas estreitas.
A cor dominante era o preto, mas neste fundo sombrio brilhavam as
pérolas, os diamantes e os bordados a ouro. Gostava-se de fazer
ostentação da riqueza, e essa riqueza chegava constantemente
em barcos carregados. Vinham de países da longinqua América,
que Cortez, Pizarro e outros conquistadores submeteram à Coroa
espanhola.
Mas a moda espanhola era sobretudo rígida. Sem rugas nem pregas,
ela envolvia os corpos e criava formas geométricas, encobrindo
as formas naturais.
As gargantilhas apareceram e cresceram também por esta altura,
e uma outra invenção espanhola foi o espartilho.
À princípio destinava-se apenas ao abdômen e era
de tecido rijo. Quando as damas não conseguiam apertar-se suficientemente
com ele, começaram a prender-lhe fitas de aço. A diferença
para os espartilhos de hoje consiste no fato de as cintas espanholas
não servirem para modelar o corpo feminino. Pelo contrário
- o peito ficava absolutamente achatado e não se podia ver
formas nenhuma. Assim o exigia o ideal de beleza daquela época.
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Jarreteira
ou liga? |
A fama
dos hábeis tecelões espanhóis em breve ultrapassou
as fronteiras do país. A princípio estas preciosidades
eram apenas usadas pelos homens e entre eles apenas pelos membros
das classes mais elevadas.
Em 1547 o rei Henrique VIII, da Inglaterra, recebeu um par de meias
de seda espanholas e ficou encantado com elas. Quando morreu, deixou
oito pares, um sinal de "luxo" inaudito.
Foi um inglês, quarenta anos depois, quem inventou a primeira
máquina de fazer meias. Chamava-se William Lee, e quem julgar
que ele conseguiu uma fortuna com a sua invenção está
enganado. A idéia não foi bem aceita por seus contemporâneos
e o inventor morreu pobre e amargurado.
Não demorou muito tempo para que a França iniciasse
a tecelagem mecânica de meias. As duas espécies de vestes
para as pernas, meias e calças, desenvolveram-se separadamente.
Não havia dúvidas de que a moda do futuro exigiria uma
vestimenta para as pernas.
No tempo em que a mais célebre ordem inglesa, a Ordem da Jarreteira,
apareceu, isto ainda não estava bem esclarecido.
A história do nascimento desta condecoração é
a seguinte: durante um baile na Corte inglesa, a condessa de Salisbury,
favorita do rei Eduardo III, teve o azar de perder a liga de veludo
azul com a qual prendia as meias. Ali estava a liga no chão,
todos os olhares estavam postos nela e a pobre condessa estava tão
horrorizada que não se atrevia a apanhá-la.
O próprio rei salvou a situação. Ele pegou a
liga e prendeu-a em sua perna, por baixo do joelho. Honni soit qui
mal y penso - Maldito seja quem nisso põe malícia -,
disse ele.
Aquilo que a condessa de Salisbury perdeu é o que nós,
hoje, chamamos uma liga. Todavia, a ordem que o rei instituiu por
ocasião deste incidente chamou-se Jarreteira.
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Meias
de seda, o cúmulo da frivolidade |
Por volta
de 1700 havia em Berlim 32 fábricas de meias. Comparando-se
esta quantidade com o número de habitantes, vê-se que
apenas dois terços da população poderia ter,
por ano, um par de meias.
Mas o tempo das meias de tecido estava ultrapassado. Em todas as casas
se tricotavam meias para o enxoval das jovens casadouras. Ainda no
tempo de nossas bisavós era assim.
Os costumes de decência vigentes sobretudo nas pequenas cidades
viam nas meias mais finas um indício de abandono moral de parte
de quem as usava. Meias floridas eram consideradas como "suspeitas",
enquanto o uso de meias de seda era o cúmulo da frivolidade.
Quem se atrevia a usá-las era evitada pelas burguesias como
a personificação do próprio pecado.
Na França não se era tão rigoroso assim. Ali
as meias de seda se impuseram rapidamente. E foi em Paris que surgiu
a dança que se tornou célebre - o can-can -, em que
as dançarinas usavam meias pretas, de rede. Uma sensação!
Um escândalo! E um êxito mundial.
Em Paris surgiram também as meias de seda azuis, com as quais
Madame Polignac apareceu uma vez para tomar chá na casa de
lady Montague. As damas presentes ficaram encantadas e encomendaram
meias azuis. Tratava-se de um grupo que não falava muito de
literatura, mas sim de "idéias revolucionárias"
- as mulheres eram tão inteligentes como os homens, desde que
lhes permitissem acesso aos estudos científicos. Eram idéias
que naquele tempo se consideravam impróprias para o sexo feminino.
As opiniões do círculo à volta de lady Montague
já eram mal interpretadas pelo restante da sociedade, e agora
aquelas damas apareciam de meias azuis! Daí o nome de "basbleu"
às pretensas revolucionárias.
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Saias
curtas: uma obra do diabo |
Hoje nos parece inofensivo aquilo que antigamente incendiava os ânimos
e provocava crises nervosas. Quem acha indecorosas as saias curtas?
Entretanto, o comprimido das saias foi uma das modificações
mais arrojadas da história da moda.
Nos Estados Unidos, até os políticos se ocuparam com
esta inovação, da qual se receava as piores consequências.
Uma lei promulgada no Estado de Utah, previa severas penas em dinheiro
e até prisão para as mulheres que se atrevessem a mostrar
mais de sete centímetros de perna, a contar do tornozelo.
Mas, apesar de todas as contrariedades, a saia continuou a subir cada
vez mais. Em uma universidade da Flórida apareceu um manifesto
assinado por um grupo de professores: "As saias curtas são
uma obra do diabo que quer transformar em caos e aniquilar a geração
presente e futura".
Estava-se no centro da luta pelas pernas das mulheres. Mas elas continuaram
a ficar à vista, e mesmo as maiores adversárias acabaram
por aderir a ela.
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