A DESELEGANTE UNIFORMIDADE DA MODA

Publicado na Folha da Manhã, quinta-feira, 9 de janeiro de 1930

Neste texto foi mantida a grafia original

Contam que o anno passado, durante as provas do concurso internacional de belleza realisado na Europa, o maior obstaculo que o julgamento dos juizes precisou vencer foi a uniformidade dos typos femininos, pois todos obedeciam a um unico padrão, vestiam-se todos de accordo com o ultimo figurino de Paris: cabellos curtos e ondulados, a mesma "maquillage" e sobre a cutis que mal se percebia a mesma densa camada de pó de arroz e crême. Francezas, italianas, inglezas, russas allemãs, hespanholas, austriacas, representantes de todas as raças desfilaram perante a comissão julgadora, que se viu, aliás, obrigada a confessar que o concurso, por effeito da mesma moda a que se mostravam tão submissas as concorrentes, perdera seu caracter de prova internacional... Vestidas, penteadas e pintadas pelo mesmo figurino, aquellas moças procedentes de regiões que tanto differem uma das outras pela raça, pelo clima e pelas tradições, perdiam o typo natural e todas se pareciam. Se tivesse havido engano na distribuição das faixas, e "Miss França" apparecesse com a faixa de "Miss Italia", esta com a de "Miss Russia", e a da Russia com a faixa de "Miss Ingleza", esse engano passaria despercebido de todos, da propria commissão julgadora e até dos patricios das candidatas ao titulo de "Miss Europa"...
A culpa desta despersonalização recahiu logo sobre os hombros dos costureiros, porque no fim de contas são elles que organisam os padrões que, espalhados pelo mundo inteiro, vão servir a todas as mulheres, sem distincção de raças. Mesmo a mulher turca está hoje vencida pela tyramnia da moda. A intimidade das mulheres, o habito de vestil-as e a pratica do officio déram ao costureiro grandes conhecimentos da psyché feminina, cujo defeito principal sabem elles que é a imitação. Poucas são as mulheres que procuram vestir-se em conformidade com o seu typo, seus gostos e suas tendencias; querem todas vestir-se como as "outras"... A mulher italiana sentir-se-ia diminuida se a franceza se vestisse melhor do que ella. E o que se diz da franceza e da italiana póde ser dito egualmente das restantes.
A moda é uma espécie de "tic" collectivo. Encontro esta definição, que me parece bastante exacta, em uma conferencia da sra. Lucie Délarue-Mardrus sobre a "Arte de se vestir e se aformosear". E é ainda essa erudita pagina de exegése da elegancia (se me posso exprimir assim) que ha de me fornecer materia de confirmação á verdade enunciada pouco acima, quando eu digo que as mulheres não se vestem para si, vestem-se para as outras... A sra. Delarue-Mardrus refere a seguinte anecdota: Duas mulheres odiavam-se cordialmente, por motivo de antiga rivalidade, quanto á posse de um coração que acabou afinal por não pertencer a nenhuma das duas. A rivalidade, porém, sobreviveu, e, com ella, o odio. Muitos annos mais tarde, quando já nem se lembravam do ponto da discordia, uma dellas recebeu a noticia de que a outra tinha morrido. A pessoa que isto lhe informou estava certa de que havia dado noticia bastante agradavel. Qual não foi, emtanto, o seu assombro, ao perceber que o rosto da amiga se contrahia num rictus de amargura profunda, quasi de desespero...
- Que é isso? A senhora sente-se mal?
- E como não me hei de sentir mal - exclamou a que se conservara fiel ao odio antigo - se eu me "vestia" só por causa da que morreu?...
Não cabem, evidentemente, nos limites destas linhas mais amplas considerações sobre problema tão complexo. Ficam para outra opportunidade. O que posso de antemão garantir é que se esboça, neste instante, no mundo inteiro, intensa campanha a favor da cultura da personalidade na "toilette" e no penteado. O ideal perseguido é o seguinte: conseguir que as mulheres se vistam sem se preoccuparem com o que vestem as outras! Absurdo? Mas o absurdo não foi sempre, porventura, factor de exito para mulheres e modas?


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