TRÊS
CONTOS DE MOACYR SCLIAR
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Publicado
na Folha de S.Paulo,
sábado, 20 de maio de 1989.
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NÃO PENSA NISTO, JORGE
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MOACYR SCLIAR
Estou
ficando velho, Zilda. Velho e fraco. Sinto que não vou durar muito.
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Não pensa nisto, Jorge. Pensa nas coisas boas da vida.
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Estas dores no estômago. Para mim isto é câncer. O médico diz
que não, mas acho que ele está me enganando. Para mim é câncer,
Zilda.
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Não pensa nisto, Jorge. Pensa nos momentos que vivemos juntos.
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Eu sei que é câncer, Zilda. Já vi muita gente morrer dessa doença.
É uma morte horrível, Zilda. A gente vai se consumindo aos poucos.
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Não pensa nisto, Jorge. Pensa no teu trabalho. Pensa nos teus
colegas, no chefe que gosta tanto de ti.
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Primeiro a gente emagrece. Já estou emagrecendo. Perdi cinco quilos
neste ano. Aliás, como passou ligeiro este ano. Como passam ligeiro
os anos. Como passam ligeiro os dias, as horas. Quando a gente
vê, já é noite. Quando a gente vê, terminou o mês. Quando a gente
vê, acabou a vida.
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Não pensa nisto, Jorge. Pensa na tua turma do bolão, gente alegre,
divertida.
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Logo terei de me hospitalizar. E no hospital a gente vai ligeirinho,
Zilda. Acho que é por causa do desamparo. O desamparo é horrível.
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Não pensa nisto, Jorge. Pensa nos teus filhos. Pensa na Rosa Helena,
no Zé. Pensa no Marquinhos.
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Tenho medo de morrer, Zilda. Me envergonho disso, afinal, já vivi
tanto, mas a verdade é que tenho medo de morrer. A morte é o fim,
Zilda. Para mim é o fim. Não acredito na vida após túmulo. Acho
que na tumba acaba tudo. A carne se desprende dos ossos, os cabelos
caem, fica a caveira à mostra. Isto é a morte, Zilda. Isto é que
é a morte.
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Não pensa nisto, Jorge. Pensa na tua horta. Pensa nas galinhas,
Jorge. Pensa numa galinha chocando os ovos, Jorge.
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Uma galinha com câncer, Zilda?
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Por que não, Jorge, por que não.
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MINUTO DE SILÊNCIO
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O
rei morreu, e o governo decretou: no dia seguinte ao do enterro,
às dez horas da manhã, toda a população deveria guardar um minuto
de silêncio. Assim foi feito, e à hora aprazada um pesado silêncio
caiu sobre todo o país.
As
pessoas que estavam na rua viam outras pessoas, absolutamente imóveis,
em silêncio. Supostamente deveriam estar pensando no monarca falecido,
e, de fato, muitos pensavam nele; na verdade quase todos, a exceção
sendo representada por um professor de matemática que tão logo ficou
em silêncio, pôs-se a fazer cálculos e descobriu que a soma dos
minutos de silêncio de vinte e seis milhões e oitocentos mil cidadãos
equivalia a cinquenta anos, exatamente a idade que tinha o rei ao
falecer. Uma vida se perdeu, pensou o professor, outra vida se está
perdendo agora, no silêncio. E logo depois: não está se perdendo,
não inteiramente, pois algo descobri - o que será?
Nesse
momento, na maternidade, sua mulher dava a luz a uma criança que,
portadora de múltiplas lesões congênitas, não resistiu: viveu apenas
um minuto. O tempo suficiente para que a mãe a batizasse com o nome
do saudoso rei.
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NO MUNDO DAS LETRAS
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Vem
à livraria nas horas de maior movimento, mas isso, já se sabe, é
de propósito: facilita-lhe o trabalho.
Rouba
livros. Faz isso há muitos anos, desde a infância, praticamente.
Começou roubando um texto escolar que precisava para o colégio:
foi tão fácil que gostou; e passou a roubar romances de aventura,
livros de ficção científica, textos sobre arte, política, ciência,
economia. Aperfeiçoou tanto a técnica que chegava a furtar quatro,
cinco livros de uma vez. Roubou livros em todas as cidades por onde
passou. Em Londres, uma vez, quase o pegaram; um incidente que recorda
com divertida emoção.
No
início, lia os livros que roubava. Depois, a leitura deixou de lhe
interessar. A coisa era roubar por roubar, por amor à arte; dava
os livros de presente ou simplesmente os jogava fora. Mas cada vez
tinha menos tempo para ir às livrarias; os negócios o absorviam
demais. Além disso, não podia, como empresário, correr o risco de
um flagrante. Um problema - que ele resolveu como resolve todos
os problemas, com argúcia, com arrojo, com imaginação.
Zás!
Acabou de surrupiar um. Nada de espetacular nessa operação: simplesmente
pegou um pequeno livro e o enfiou no bolso. Olha para os lados;
aparentemente ninguém notou nada. Cumprimenta-me e se vai.
Um
minuto depois retorna. Como é que me saí, pergunta, não sem ansiedade.
Perfeito, respondo, e ele sorri, agradecido. O que me deixa satisfeito;
elogiá-lo é não apenas um ato de compaixão, é também uma medida
de prudência. Afinal, ele é o dono da livraria.
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QUEM É O ESCRITOR
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Moacyr
Scliar nasceu em Porto Alegre, em 37. Médico sanitarista, estreou
na literatura com o livro "Histórias de Médico em Formação", em
62. Em 72 publicou sua primeira novela, 'A Guerra do Bom Fim", a
convite da editora.
Ex-diretor
do Departamento de Saúde Pública da Secretaria da Saúde e do Meio
Ambiente do Rio Grande do Sul, Scliar escreve nas horas vagas. Sua
obra é vasta e também inclui estudos sobre a condição judaica, um
de seus temas favoritos. Tendo feito de judeus os personagens centrais
de alguns de seus livros, escreveu "A Condição Judaica - das Tábuas
da Lei à Mesa da Cozinha", publicado em 85.
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