MOACYR
SCLIAR
As
dificuldades que o Brasil e outros países atravessam em seu balanço
de pagamentos mostram até que ponto a economia mundial depende
hoje do sistema financeiro, vale dizer, dos bancos. A taxa de
juros passou a ser o termostato pelo qual as atividades econômicas
são reguladas (ou desreguladas), aquecidas ou esfriadas; a taxa
de juros reflete-se na queda da produção, no desemprego - e em
última análise acaba afetando a vida de todas as pessoas. Quem
pode tira proveito dos juros altos, emprestando ou especulando.
Quem não pode olha com inveja e angústia esta situação. Mas mesmo
estes reconhecem a respeitabilidade do capital financeiro, que
se traduz, entre outras coisas, na imponência dos bancos e na
importância que é dada às opiniões dos banqueiros. Poucos hão
de lembrar que nem sempre foi assim; que houve tempos em que dinheiro
e usura eram coisas olhadas com nojo e desprezo (o fato de os
cofrinhos infantis terem muitas vezes a forma de um porco deve
ser resíduo dessa época). O auge deste horror ao dinheiro ocorreu
na Idade Média, como resultado da convergência dos interesses
de duas classes poderosas. De um lado, o clero. Como assinala
Henri Pirenne, em sua "História da Idade Média": "A concepção
de mundo da Igreja adaptava-se admiravelmente às condições econômicas
de uma época em que a terra era a única base da ordem social.
A terra tinha sido dada por Deus aos homens para que dela pudessem
viver, visando à salvação eterna. O objetivo do trabalho não era
a riqueza, mas sim a manutenção de cada qual na posição social
em que havia nascido, até o advento da vida eterna. A renúncia
do monge era o ideal que a sociedade deveria almejar. Buscar a
riqueza era cair no pecado da avareza. A pobreza era uma determinação
divina, mas competia aos ricos aliviá-la pela caridade. Emprestar
a juros - a usura - era uma abominação". A outra classe que abominava
o dinheiro - e o trabalho - era a nobreza. De fato, os cavaleiros
medievais não tinham outra ocupação do que festas, torneios e
expedições militares - já que a subsistência lhes era garantida
pelo trabalho dos servos.
Mesmo
nesta economia rudimentar, contudo, o dinheiro era necessário.
Afinal o luxo - os finos tecidos, as jóias, as especiarias - tinha
seu preço, como o tinham as expedições militares, inclusive -
e principalmente - as Cruzadas. A sociedade feudal resolveu o
impasse de uma maneira engenhosa. Atribuiu o papel de usurário
a um elemento marginal na sociedade, um elemento que pouco podia
esperar da vida na terra e muito menos da vida eterna: o judeu.
Criou-se assim a figura típica e caricatural do usurário de olhinhos
brilhantes, nariz adunco e dedos em garra, um estereótipo que
de tal forma se impôs que historiadores sob outros aspectos respeitáveis,
como Werner Sombart, foram levados a crer que a usura constituía
um atributo específico da chamada "raça judaica". Que não haja
nada semelhante à categoria biológica de raça nos judeus em nada
perturbou tais historiadores, como em nada perturbou os nazistas;
o que era efeito passou a ser considerado causa e assim a lenda
da predisposição judaica à usura manteve a mesma consistência
que tinha à época da Idade Média. As relações entre usurários
e senhores feudais era uma relação de mútua safadeza, uma sinistra
simbiose entre a astúcia do fraco e a prepotência do forte. Relegados
a este papel abominado e abominável, os judeus tiravam dele o
maior proveito que podiam, cobrando escorchantes taxas de juros
(mesmo essas taxas exageradas, contudo, não chegavam aos níveis
de hoje, atingindo 86 por cento no máximo...). Os senhores feudais
toleravam, enquanto queriam, esta situação, e, na Inglaterra,
os reis dela tiravam proveito, porque todos os empréstimos contraídos
com os judeus eram registrados no "saccarium judaeorum" e gravados
com uma taxa de 10 por cento em proveito do tesouro real (cf.
Abraham Leon, "Concepção Materialista da Questão Judaica", Global,
1981, p. 82). Quando os nobres não podiam pagar, ou quando precisavam
de muito dinheiro de uma vez só, faziam o que faz um garoto quando
necessita do dinheiro de seu cofrinho: destrói o porco. Os massacres
de judeus, com sua consequente "queima de arquivo", eram a solução.
Em 1189, os judeus são assassinados em Londres, Lincoln e Standord;
em 1190, a nobreza destrói o "saccarium judaeorum" de York, queimando
solenemente os títulos das dívidas; os judeus, situados num castelo,
se suicidam em massa... Em 1290 toda a população judaica da Inglaterra
foi expulsa e seus bens confiscados. O mesmo aconteceu depois
na França e na Espanha, neste último país numa data bem simbólica,
1492. A expedição de Colombo (segundo muitos historiadores, financiada
por judeus) assinalaria a supremacia do capital mercantil e o
fim da Idade Média. A Reforma já não consideraria pecado ganhar
dinheiro; pelo contrário, poupar e investir seriam elementos importantes
da ética protestante, na qual o capitalismo em ascensão encontrou
seu substrato moral. Os usurários serão substituídos pelas figuras
mais respeitáveis dos comerciantes e dos financistas; entre estes
os judeus encontraram seu lugar, se não com exclusividade, pelo
menos com menor risco. Em 1815 esta ascensão chega ao auge, com
o triunfo dos Rotschild - cinco irmãos, cada um atuando numa capital
européia. O mais esperto era Nathan, que operava na Bolsa de Londres;
baixo e gordo, de aparência desagradável, sempre de mãos no bolso,
costumava ficar encostado numa coluna que até hoje tem seu nome.
Dali acompanhava o pregão, e foi dali que deu um golpe genial.
Graças à rapidez com que os agentes da família se moviam pela
Europa, havia sido informado da derrota de Napoleão em Waterloo
antes mesmo do governo britânico. De posse dessa valiosa informação,
o que fez? Atirou-se a comprar títulos ingleses? Não. Ao contrário,
começou a vendê-los, precipitando uma corrida neste sentido. Rotschild
sabe, pensavam os especuladores, se Rotschild está vendendo, é
porque Napoleão venceu. Então, no último momento, Rotschild tornou
a comprar todos os títulos e por preço vil. Em questão
de minutos acumulou uma imensa fortuna.
Os
Rotschild posteriormente tornaram-se nobres - barões, como os
barões feudais que massacravam os usurários judeus na Idade Média,
o que dá uma medida da relatividade ética através dos tempos e
demonstra a hipocrisia oculta atrás de certas sacrossantas indignações.
Mas não é esta a única conclusão a extrair da história da usura:
o mais importante é constatar que ela nada mais é que um instrumento
destinado a fazer o dinheiro trocar de mãos, a tornar os ricos
ainda mais ricos e os pobres mais pobres. Através da elevação
das taxas de juros conseguem-se hoje a recessão, o desemprego,
a formação do "exército de reserva" que mantém o operariado dócil
e atemorizado; através da elevação da taxa de juros mantém-se
o fosso que separa os países ricos dos países pobres.
Não
há dúvida: a usura só pode ser invenção de um demônio. Mas este
demônio, e sua invenção, só são invocados quando os poderosos
deles necessitam.