BOULEZ EXPÕE MAHLER POLIFÔNICO

Publicado na Folha de S.Paulo, terça-feira, 10 de junho de 1997.


Arthur Nestrovski
Especial para a Folha

"O que torna Mahler contemporâneo é a amplidão e complexidade de seus gestos, a variedade e intensidade do seu grau de invenção -e não só contemporâneo, mas indispensável, hoje, para quem quer pensar sobre o futuro da música." Com essas palavras, escritas em 1979, Pierre Boulez justificava o renascimento da música do compositor e regente Gustav Mahler (1860-1911), no mais alto tom da moralidade estética.

E de fato o que se viu no curso das décadas de 60 e 70 foi um renascimento, ou reinvenção de Mahler, sinalizada pela antológica gravação integral das nove sinfonias, regidas por Bernard Haitink com a Orquestra do Concertgebow de Amsterdã. Sinalizada, também, de outra maneira, pela inclusão marcante de passagens das sinfonias de Mahler na "Sinfonia" de Luciano Berio (1968). Quase vinte anos depois, Boulez parece vinte anos mais jovem, menos aferrado à militância, e suas gravações de Mahler fazem das sinfonias menos "contemporâneas" do que definitivas, confiantes na própria sabedoria. Depois da Sexta e da Sétima, lançadas no ano passado e muito elogiadas e premiadas, chega agora uma gravação esplêndida da Quinta, com a Filarmônica de Viena, em CD da gravadora Deutsche Grammophon.

A obsessão de Mahler com os detalhes da notação musical -compreensível, para um grande regente como ele foi, sempre lidando com problemas técnicos da escrita e problemas humanos dos instrumentistas- é vingada aqui por uma leitura que, simplesmente, faz soar mais coisas na Quinta Sinfonia do que jamais se ouviu anteriormente. Tudo é exposto, tudo é audível e lúcido, mesmo o detalhe mais escondido na polifonia. Mahler "tocava" a orquestra com um virtuosismo talvez insuperável. Boulez, por sua vez, "toca" a Filarmônica de Viena como ninguém. O efeito, contudo, é estranhamente pouco vienense. O que entusiasma Boulez não é a nostalgia e o kitsch, nem mesmo quando tratados com tanta ironia como na Quinta. É mais o Mahler narrativo, a dimensão épica dessa música organizada de forma inclassificável, como os grandes romances da época.

Como Thomas Mann ou Marcel Proust, o Mahler de Boulez é um artista do tempo; e toda "amplidão e complexidade dos seus gestos" reverte-se em camadas de significado musical projetado e rememorado. É o Mahler wagneriano, se se quiser, mais do que o precursor imediato do Schoenberg e Berg. Mas "wagneriano" só no sentido que o próprio Boulez nos ensinou a escutar. A oscilação entre sentimentalidade e ironia, o fracasso da identificação entre realidade e arte, de que fala o alemão Theodor Adorno, em seu grande livro sobre o compositor ("Mahler - Uma Fisionomia Musical", 1960), soa um pouco diminuído, na medida em que o gênio do próprio Boulez não se permite arroubos e "vibratos", nem mesmo quando em tom de descrença. Mas com uma música já tão desesperadamente no limite da expressão o resultado ajuda e faz de Mahler um grande mestre moderno, equilibrado entre dois séculos, e presa de nenhum. Não é o Mahler do "Morte em Veneza" de Luchino Visconti, o melancólico e comovente esteta no fim da linha; nem, muito menos, o decadente psicodélico de Ken Russel. "Tradição é desleixo", dizia o próprio compositor Gustav Mahler. "Repetição é desleixo" parece mais justo. Porque a construção da tradição é só outro nome para "arte", como fica demonstrado, mais uma vez, na extraordinária arte de Pierre Boulez, que com sua música e sua regência vai construindo, passo a passo, a tradição musical do nosso tempo.

Disco: Sinfonia nº 5 de Gustav Mahler

Artista: Filarmônica de Viena, com regência de Pierre Boulez

Lançamento: Deutsche Grammophon

 


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