Arthur Nestrovski
Especial
para a Folha
"O
que torna Mahler contemporâneo é a amplidão e complexidade
de seus gestos, a variedade e intensidade do seu grau
de invenção -e não só contemporâneo, mas indispensável,
hoje, para quem quer pensar sobre o futuro da música."
Com essas palavras, escritas em 1979, Pierre Boulez justificava
o renascimento da música do compositor e regente Gustav
Mahler (1860-1911), no mais alto tom da moralidade estética.
E
de fato o que se viu no curso das décadas de 60 e 70 foi
um renascimento, ou reinvenção de Mahler, sinalizada pela
antológica gravação integral das nove sinfonias, regidas
por Bernard Haitink com a Orquestra do Concertgebow de
Amsterdã. Sinalizada, também, de outra maneira, pela inclusão
marcante de passagens das sinfonias de Mahler na "Sinfonia"
de Luciano Berio (1968). Quase vinte anos depois, Boulez
parece vinte anos mais jovem, menos aferrado à militância,
e suas gravações de Mahler fazem das sinfonias menos "contemporâneas"
do que definitivas, confiantes na própria sabedoria. Depois
da Sexta e da Sétima, lançadas no ano passado e muito
elogiadas e premiadas, chega agora uma gravação esplêndida
da Quinta, com a Filarmônica de Viena, em CD da gravadora
Deutsche Grammophon.
A
obsessão de Mahler com os detalhes da notação musical
-compreensível, para um grande regente como ele foi, sempre
lidando com problemas técnicos da escrita e problemas
humanos dos instrumentistas- é vingada aqui por uma leitura
que, simplesmente, faz soar mais coisas na Quinta Sinfonia
do que jamais se ouviu anteriormente. Tudo é exposto,
tudo é audível e lúcido, mesmo o detalhe mais escondido
na polifonia. Mahler "tocava" a orquestra com um virtuosismo
talvez insuperável. Boulez, por sua vez, "toca" a Filarmônica
de Viena como ninguém. O efeito, contudo, é estranhamente
pouco vienense. O que entusiasma Boulez não é a nostalgia
e o kitsch, nem mesmo quando tratados com tanta ironia
como na Quinta. É mais o Mahler narrativo, a dimensão
épica dessa música organizada de forma inclassificável,
como os grandes romances da época.
Como Thomas Mann ou Marcel Proust, o Mahler de Boulez
é um artista do tempo; e toda "amplidão e complexidade
dos seus gestos" reverte-se em camadas de significado
musical projetado e rememorado. É o Mahler wagneriano,
se se quiser, mais do que o precursor imediato do Schoenberg
e Berg. Mas "wagneriano" só no sentido que o próprio Boulez
nos ensinou a escutar. A oscilação entre sentimentalidade
e ironia, o fracasso da identificação entre realidade
e arte, de que fala o alemão Theodor Adorno, em seu grande
livro sobre o compositor ("Mahler - Uma Fisionomia Musical",
1960), soa um pouco diminuído, na medida em que o gênio
do próprio Boulez não se permite arroubos e "vibratos",
nem mesmo quando em tom de descrença. Mas com uma música
já tão desesperadamente no limite da expressão o resultado
ajuda e faz de Mahler um grande mestre moderno, equilibrado
entre dois séculos, e presa de nenhum. Não é o Mahler
do "Morte em Veneza" de Luchino Visconti, o melancólico
e comovente esteta no fim da linha; nem, muito menos,
o decadente psicodélico de Ken Russel. "Tradição é desleixo",
dizia o próprio compositor Gustav Mahler. "Repetição é
desleixo" parece mais justo. Porque a construção da tradição
é só outro nome para "arte", como fica demonstrado, mais
uma vez, na extraordinária arte de Pierre Boulez, que
com sua música e sua regência vai construindo, passo a
passo, a tradição musical do nosso tempo.
Disco:
Sinfonia nº 5 de Gustav Mahler
Artista:
Filarmônica de Viena, com regência de Pierre Boulez
Lançamento:
Deutsche Grammophon