O CORVO

Publicado na Folha da Manhã, domingo, 18 de junho de 1939 .

Neste texto foi mantida a grafia original

EDGARD POE
(TRADUÇÃO DE MACHADO DE ASSIS)

Em certo dia, à hora, à hora
Da meia noite que apavora,
Eu, cahindo de somno e exhausto de fadiga,
Ao pé de muita lauda antiga,
De uma velha doutrina, agora morta.
Ia pensando, quando ouvi á porta
Do meu quarto um soar devagarinho
E disse estas palavras taes:
"É alguem que me bate á porta de mansinho.
"Ha de ser isso e nada mais".

Ah! bem me lembro! bem me lembro!
Era no glacial Dezembro:
Casa brasa do lar sobre chão reflectia
A sua ultima agonia.
Eu, ansioso pelo sol, buscava
Saccar daquelles livros que estudava
Repouso (em vão!) à dôr esmagadora
Destas saudades immortaes
Pela que ora nos céos anjos chamam Lenora
E que ninguem chamará mais.
E o rumor triste, vago, brando
Das cortinas ia acordando
Dentro em meu coração um rumor não sabido
Nunca por elle padecido.
Enfim, por aplacal-o aqui no peito,
Levantei-me de prompto, e:
"Com effeito, (Disse) é visita amiga e retardada
"Que bate a estas horas taes.
"É visita que pede à minha porta entrada:
"Ha de ser isso e nada mais".

Minh'alma então sentiu-se forte;
Não mais vacillo e desta sorte
Falo: "Imploro de vós, - ou senhor ou senhora,
"Me desculpeis tanta demora.
"Mas como eu, precisado de descanso,
"Já cochilava, e tão de manso e manso
"Bateste, não fui logo, prestemente.
"Certificar-me que ahi estaes".
Disse; a porta escancaro, acho a noite somente,

Somente a noite, e nada mais.
Com longo olhar escruto a sombra,
Que me amedronta, que me assombra,
E sonho o que nenhum moral ha já sonhado,
Mas o silencio amplo e calado,
Calado fica; a quietação quieta;
Só tu, palavra unica e dilecta,
Lenora, tu, como um suspiro escasso,
Da minha triste bocca sáes;
E o éco, que te ouviu, murmurou-te no espaço;
Foi isso apenas, nada mais.

Entro co'a alma incendiada.
Logo depois, outra pancada
Sôa um pouco mais forte; eu, voltando-me a ella:
"Seguramente, ha na janella
"Alguma coisa que sussura. Abramos.
"Eia, fóra o temor, eia, vejamos
" A explicação do caso mysterioso
"Dessas duas pancadas taes.
"Devolvamos paz ao coração medroso
"Obra do vento e nada mais".

Abro a janella, e de repente,
Vejo tumultuosamente
Um nobre corvo entrar, digno de antigos dias.
Não despendeu em cortezias
Um minuto, um instante.
Tinha o aspecto
De um lord ou de uma lady.
E prompto e recto,
Movendo no ar as suas negras alas,
Acima vôa dos portaes,
Trepa, no alto da porta, em um busto de Pallas;
Trepado fica, e nada mais.

Deante da ave feia e escura,
Naquella rigida postura,
Com o gesto severo, - o triste pensamento
Sorriu-me ali por um momento,
E eu disse: "O' tu que das nocturnas plagas
"Vens, embora a cabeça núa tragas,
"Sem topete, não és ave medrosa,
"Dize os teus nomes senhoriaes;
"Como te chamas tu na grande noite umbrosa?"
E o corvo disse: "Nunca mais".

Vendo que o passaro entendia
A pergunta que lhe eu fazia,
Fico attonito, embora a resposta que dera
Difficilmente lh'a entendera.
Na verdade, jamais homem ha visto
Coisa na terra semelhante a isto:
Uma ave negra, friamente posta
Num busto acima dos portaes,
Ouvir uma pergunta e dizer em resposta
Que este é seu nome: "Nunca mais".

No entanto, o corvo solitario
Não teve outro vocabulario,
Como se essa palavra escassa que ali disse
Toda a sua alma resumisse.
Nenhuma outra proferiu, nenhuma,
Não chegou a mexer uma só pluma,
Até que eu murmurei: "perdi outrora
"Tantos amigos tão leaes!
"Perderei tambem este em regressando a aurora."
E o corvo disse: "Nunca mais!"

Estremeço. A resposta ouvida
É tão exacta! é tão cabida!
"Certamente, digo eu, essa é toda a sciencia
"Que elle trouxe da convivencia
"De algum mestre infeliz e acabrunhado
"Que o implacavel destino ha castigado
"Tão tenaz, tão sem pausa, nem fadiga,
"Que dos seus cantos usuaes
"Só lhe ficou, na amarga e ultima cantiga,
"Esse estribilho: "Nunca mais".

Segunda vez, nesse momento,
Sorriu-me o triste pensamento.
Vou sentar-me defronte ao corvo magro e rude;
E, mergulhando no velludo
Da poltrona que eu mesmo ali trouxera,
Achar procuro a lugubre chimera,
A alma, o sentido, o pavido segredo
Daquellas sylabas fataes.
Entender o que quiz dizer a ave do medo,
Grasnando a phrase: "Nunca mais".

Assim posto, devaneando,
Meditando, conjecturando,
Não lhe falava mais; mas, se lhe não falava,
Sentia o olhar que me abrazava.
Conjecturando fui, tranquilo, a gosto,
Com a cabeça no macio encosto
Onde os raios da lampada cahiam
Onde as tranças angelicaes
De outra cabeça outróra ali se esparziam,
E agora não se esparzem mais.

Suppuz então que o ar, mais denso.
Todo se enchia de um incenso,
Obra de serafins, que, pelo chão roçando
Do quarto, estavam meneando
Um ligeiro thuribulo invisivel;
E eu exclamei então: "Um Deus sensivel
"Manda repouso à dôr que te devora
"Destas saudades immortaes.
"Ela, esquece, eia, olvida, essa extincta Lenora",
E o corvo disse: "Nunca mais".

"Propheta, ou o que quer que sejas!
"Ave ou demonio que negrejas!
"Propheta sempre, escuta: Ou venhas tu do inferno
"Onde reside o mal eterno,
"Ou simplesmente naufrago escapado
"Venhas do temporal que te ha lançado
"Nesta casa onde o Horror, o Horror profundo
"Tem os seus lares triumphaes,
"Dize-me: existe acaso um balsamo no mundo?"
E o corvo disse: "Nunca mais".

"Propheta, ou o que quer que sejas!
"Ave ou demonio que negrejas!
"Propheta sempre, escuta, attende, escuta, attende!
"Por esse céo que além se estende
"Pelo Deus que ambos adoramos, fala,
"Dize a esta alma se é dado inda escutal-a
"No Eden celeste a virgem que ella chora
"Nestes retiros sepulchraes,
"Essa que ora nos céos anjos chamam Lenora!"
E o corvo disse: "Nunca mais".

"Ave ou demonio que negrejas!
"Propheta, ou o que quer que sejas!
"Cessa, ai, cessa! - clamei, levantando-me - cessa!
"Regressa ao temporal, regressa
"À tua noite, deixa-me commigo.
"Vae-te, não fique no meu casto abrigo
"Pluma que lembra essa mentira tua.
"Tira-me ao peito essas fataes
"Garras que abrindo vão a minha dôr já cruz".
E o corvo disse: "Nunca mais".

E o corvo ahi fica; eil-o trepado
No banco marmore lavrado
Da antiga Pallas; eil-o immutavel, ferrenho.
Parece, ao ver-lhe o duro cenho,
Um demonio sonhando. A luz cahida
Do lampeão sobre a ave aborrecida
No chão espraia a triste sombra; e fóra
Daquellas linhas funeraes
Que fluctuam no chão, a minha alma que chora
Não sáe mais, nunca, nunca mais!

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