UMA SENHORA

Publicado na Folha da Manhã, São Paulo, domingo, 11 de junho de 1939.


MACHADO DE ASSIS

Nunca encontro esta senhora que me não lembre a prophecia de uma lagartixa ao poeta Heine, subindo os Appeninos: "Dia virá em que as pedras serão plantas, as plantas animaes, os animaes homens e os homens deuses". E dá-me vontade de dizer-lhe: - senhora, D. Camilla, amou tanto a mocidade e a belleza, que atrazou o seu relogio, afim de vêr se podia fixar esses dois minutos de crystal. Não se desconsole, D. Camilla. No dia da lagartixa, a senhora será Hebe, deusa da juventude; a senhora nos dará a beber o nectar da perennidade com as suas mãos eternamente moças.

A primeira vez que a vi, tinha ella trinta e seis annos, posto só parecesse trinta e dois, e não passasse da casa dos vinte e nove. Casa é um modo de dizer. Não há castello mais vasto do que a vivenda destes bons amigos, nem tratamento mais obsequioso do que o que elles sabem dar ás suas hospedes. Cada vez que D. Camilla queria ir-se embora, elles pediam-lhe muito que ficasse, e ella ficava. Vinham então novos folguedos, cavalhadas, musica, dansa, uma sucessão de coisas bellas, inventadas com o unico fim de impedir que esta senhora seguisse o seu caminho.

- Mamãe, mamãe, dizia-lhe a filha crescendo, vamos embora, não podemos ficar aqui toda a vida.

D. Camilla olhava para ella, mortificada, depois sorria, dava-lhe um beijo e mandava-a brincar com as outras crianças. Que outras crianças? Ernestina estava então entre quatorze e quinze annos, era muito espigada, muito quieta, com uns modos naturaes de senhora. Provavelmente não se divertiria com as meninas de oito e nove annos; não importa, uma vez que deixasse a mãe tranquila, podia alegrar-se ou enfadar-se. Mas, ai triste! ha um limite para tudo, mesmo para os vinte e nove annos. D. Camilla resolveu enfim, despedir-se desses dignos amphytriões, e fel-o ralada de saudades. Elles ainda instaram por uns cinco ou seis mezes de quebra; a bella dama respondeu-lhe que era impossivel e, trepando no alazão do tempo, foi alojar-se na casa dos trinta.

Ella era, porém, daquella casta de mulheres que riem do sol e dos almanaques. Côr de leite, fresca, inalteravel, deixava ás outras o trabalho de envelhecer. Só queria o de existir. Cabello negro, olhos castanhos e calidos. Tinhas as espaduas e o collo feitos de encommenda para os vestidos decotados, e assim tambem os braços, que eu não digo que eram os da Venus de Milo, para evitar uma vulgaridade, mas provavelmente não eram outros. D. Camilla sabia disto; sabia que era bonita, não só porque lh'o dizia o olhar sorrateiro das outras damas, como por um certo instincto que a belleza possue, como o talento e o genio. Resta dizer que era casada, que o marido era ruivo, e que os dois amavam-se como noivos; finalmente, que era honesta. Não o era, note-se bem, por temperamento, mas por principio, por amor ao marido, e creio que um pouco por orgulho.

Nenhum defeito, pois, excepto o de retardar os annos; mas é isso um defeito? Ha, não me lembra em que paginas da Escriptura, naturalmente nos Prophetas, uma comparação dos dias com as aguas de um rio que não voltam mais. D. Camilla queria fazer uma represa para seu uso. No tumulo desta marcha continua entre o nascimento e a morte, ella apegava-se á illusão da estabilidade. Só se lhe podia exigir que não fosse ridicula, e não o era. Dir-me-á o leitor que a belleza vive de si mesma, e que a preoccupação do calendario mostra que esta senhora vivia principalmente com os olhos na opinião. É verdade; mas como quer que vivam as mulheres do nosso tempo?

D. Camilla entrou na casa dos trinta e não lhe custou passar adiante. Evidentemente o terror era uma superstição. Duas ou tres amigas intimas, nutridas de arithmeica, continuavam a dizer que ella perdera a conta dos annos. Não advertiam que a natureza era cumplice no erro, e que aos quarenta annos (verdadeiros), D. Camilla trazia um ar de trinta e poucos. Restava um recurso: espiar-lhe o primeiro cabello branco, um fiozinho de nada, mas branco. Em vão espiavam; o demonio do cabello parecia cada vez mais negro.

Nisto enganava-se. O fio branco estava ali; era a filha de D. Camilla que entrava nos dezenove annos, e, por mal de pecados, bonita. D. Camilla prolongou, quanto pôde, os vestidos adolescentes da filha, conservou-a no collegio até tarde, fez tudo para proclamal-a criança. A natureza, porém, que não é só immoral, mas tambem illogica, enquanto soffreava os annos de uma afrouxava a redea aos da outra, e Ernestina, moça feita, entrou radiante no primeiro baile. Foi uma revelação. D. Camilla adorava a filha; saboreou-lhe a gloria a tragos demorados. No fundo do copo achou a gotta amarga e fez uma careta. Chegou a pensar na abdicação; mas grande prodigo de phrases feitas disse-lhe que ella parecia a irmã mais velha da filha, e o projecto desfez-se. Foi dessa noite em diante que D. Camilla entrou a dizer a todos que casára muito criança.

Um dia, poucos mezes depois, apontou no horizonte o primeiro namorado. D. Camilla pensára vagamente nessa calamidade, sem encaral-a, sem apparelhar-se para a defesa. Quando menos esperava, achou um pretendente á porta. Interrogou a filha; descobriu-lhe um alvoroço indefinivel, a inclinação dos vinte annos, e ficou prostrada. Casal-a era o menos; mas se os sêres são como as aguas da Escriptura, que não voltam mais, é porque atrás delles vêm outros, como atrás das aguas outras aguas; e, para definir essas ondas sucessivas é que os homens inventaram este nome de netos. D. Camilla viu imminente o primeiro neto, e determinou adial-o. Está claro que não formulou a resolução, como não formulára a idéa do perigo. A alma entende-se a si mesma; uma sensação vale um raciocinio. As que ella teve foram rapidas, obscuras, no mais intimo do seu sêr, donde não as extrahiu para não ser obrigada a encaral-as.

- Mas que é que você acha de mau no Ribeiro? perguntou-lhe o marido, uma noite, á janella.

D. Camilla levantou os hombros. - Acho-lhe o nariz torto, disse.

- Mau! Você está nervosa; falemos de outra coisa, respondeu o marido. E, depois de olhar uns dois minutos para a rua, cantarolando na garganta, tornou ao Ribeiro, que achava um genro acceitavel, e se lhe pedisse Ernestina, entendia que deviam ceder-lh'a. Era intelligente e educado. Era tambem o herdeiro provavel de uma tia de Cantagallo. E depois tinha um coração de ouro. Contavam-se delle coisas muito bonitas. Na academia, por exemplo... D. Camilla ouviu o resto, batendo com a ponta do pé no chão e rufando com os dedos a sonata da impaciencia; mas, quando o marido lhe disse que o Ribeiro esperava um despacho do ministro de estrangeiros, um lugar para os Estados Unidos, não pôde ter-se e cortou-lhe a palavra.

- O que? Separar-me de minha filha? Não, senhor.

Em que dóse entrára neste grito o amor materno e o sentimento pessoal, é um problema difficil de resolver, principalmente agora, longe dos acontecimentos e das pessôas. Supponhamos que em partes iguaes. A verdade é que o marido não soube que inventar para defender o ministro de estrangeiros, as necessidades diplomaticas, a fatalidade do matrimonio, e, não achando que inventar, foi dormir. Dois dias depois veio a nomeação. No terceiro dia, a moça declarou ao namorado que não a pedisse ao pae, porque não queria separar-se da familia. Era o mesmo que dizer: prefiro a familia ao senhor. É verdade que tinha a voz tremula e sumida, e um ar de profunda consternação; mas o Ribeiro viu tão sómente a rejeição, e embarcou. Assim acabou a primeira aventura.

D. Camilla padeceu com o desgosto da filha; mas consolou-se depressa. Não faltam noivos, reflectiu ella. Para consolar a filha, levou-a a passear a toda parte. Eram ambas bonitas, e Ernestina tinha a frescura dos annos; mas a belleza dos annos, superava a da filha. Não vamos ao ponto de crêr que o sentimento da superioridade é que animava D. Camilla a prolongar e repetir os passeios. Não: o amor materno, só por si, explica tudo. Mas concedamos que animasse um pouco. Que mal ha nisso? Que mal ha em que um bravo coronel defenda nobremente a patria, e as suas dragonas? Nem por isso acaba o amor da patria e o amor das mães.

Mezes depois despontou a orelha de um segundo namorado. Desta vez era um viuvo, advogado, vinte e sete anos. Ernestina não sentiu por elle a mesma emoção que o outro lhe déra; limitou-se a acceital-o. D. Camilla farejou depressa a nova candidatura. Não podia allegar nada contra elle; tinha o nariz recto como a consciencia e profunda aversão á vida diplomatica. Mas haveria outros defeitos, devia haver outros. D. Camilla buscou-os com alma; indagou de suas relações, habitos, passado. Conseguiu achar umas coisinhas miudes, tão sómente a unha da imperfeição humana, alternativas de humor, ausencia de graças intellectuaes, e, finalmente, um grande excesso de amor proprio. Foi neste ponto que a bella dama o apanhou. Começou a levantar vagarosamente a muralha do silencio; lançou primeiro a camada das pausas, mais ou menos longas, depois as phrases curtas, depois os monosylabos, as distracções, as absorpções, os olhares complacentes, os ouvidos resignados, os bocejos fingidos por traz da ventarola. Elle não entendeu logo; mas, quando reparou que os enfados da mãe coincidiam com as ausencias da filha, achou que era ali de mais e retirou-se. Se fosse homem de luta, tinha saltado a muralha; mas era orgulhoso e fraco. D. Camilla deu graças aos deuses.

Houve um trimestre de respiro. Depois appareceram alguns namoricos de uma noite, insectos ephemeros, que não deixaram historia. D. Camilla compreendeu que elles tinham de multiplicar-se, até vir algum decisivo que a obrigasse a ceder; mas ao menos, dizia ella a si mesma, queria um genro que trouxesse á filha a mesma felicidade que o marido lhe dera. E, uma vez, ou para robustecer este decreto da vontade, ou por outro motivo, repetiu o conceito em voz alta, embora só ella pudesse ouvil-o. Tu psychologo subtil, pódes imaginar que ella queria convencer-se a si mesma: eu prefiro contar o que lhe aconteceu em 186...

Era de manhã. D. Camilla estava ao espelho, a janella aberta, a chacara verde e sonóra de cigarras e passarinhos. Ella sentia em si a harmonia que a ligava ás coisas externas. Só a belleza intellectual é independente e superior. A belleza physica é irmã da payzagem. D. Camilla saboreava essa fraternidade intima, secreta, um sentimento de identidade, uma recordação da vida anterior no mesmo utero divino. Nenhuma lembrança desagradavel, nenhuma occorrencia vinha turvar essa expansão mysteriosa. Ao contrario, tudo parecia embebel-a de eternidade, e os quarenta e dois annos em que ia não lhe pesavam mais do que outras tantas folhas de rosa. Olhava para fóra, olhava para o espelho. De repente, como se lhe surgisse uma cobra, recuou aterrada. Tinha visto, sobre a fonte esquerda, um cabellinho branco. Ainda cuidou que fosse do marido; mas reconheceu depressa que não, que era della mesma, um telegramma da velhice, que ahi vinha a marchas forçadas. O primeiro sentimento foi de prostração. D. Camilla sentiu faltar-lhe tudo, tudo. Viu-se encanecida e acabada no fim de uma semana.

- Mamãe, mamãe, bradou Ernestina, entrando na saleta. Está aqui o camarote que papae mandou.

D. Camilla teve um sobressalto de pudor, e instinctivamente voltou para a filha o lado que não tinha o fio branco. Nunca a achou tão graciosa e lepida. Fitou-a com saudade. Fitou-a tambem com inveja, e para abafar esse sentimento mau, pegou no bilhete de camarote. Era para aquella mesma noite. Uma idéa expelle outra; D. Camilla anteviu-se no meio das luzes e das gentes, e depressa levantou o coração. Ficando só, tornou a olhar para o espelho, e corajosamente arrancou o cabellinho branco, e deitou-o á chacara. Out, damnet spot! Out! Mais feliz do que a outra lady Macbeth, viu assim desapparecer a nodoa no ar, porque no animo della, a velhice era um remorso e a fealdade um crime. Sáe, maldita mancha! sae!

Mas, se os remorsos voltam, porque não hão de voltar os cabellos brancos? Um mez depois, D. Camilla descobriu outro, insinuado na bella e farta madeixa negra, e amputou-o sem piedade. Cinco ou seis semanas depois, outro. Este terceiro coincidiu com um terceiro candidato á mão da filha, e ambos acharam D. Camilla numa hora de prostração. A belleza, que lhe supprira a mocidade, parecia-lhe prestes a ir tambem, como uma pomba sáe em busca da outra. Os dias precipitavam-se. Crianças que ella vira ao collo, ou de carrinho puxado pelas amas, dansavam agora, nos bailes. Os que eram homens fumavam; as mulheres cantavam ao piano. Algumas destas apresentavam-lhe os seus "babies", gorduchos, uma segunda geração que mammava, á espera de ir bailar tambem, cantar ou fumar, apresentar outros "babies" a outras pessôas, e assim por diante.

D. Camilla apenas tergiversou um pouco, acabou cedendo. Que remedio, senão acceitar um genro? Mas, como um velho costume não se perde de um dia para outro, D. Camilla viu parallelamente, naquella festa do coração, um scenario e grande scenario. Preparou-se galhardamente, e o effeito correspondeu ao esforço. Na igreja, no meio de outras damas; na sala, sentada no sophá (o estopho que forrava este movel, assim como o papel da parede foram sempre escuros para fazer sobresahir a tez de D. Camilla), vestida a capricho, sem o requinte da extrema juventude, mas tambem sem a rigidez matronal, um meio termo apenas, destinado a pôr em relevo as suas graças outomniças, risonha, e feliz, enfim, a recente sogra colheu os melhores suffragios. Era certo que ainda lhe pendia dos hombros um retalho de purpura.

Purpura suppõe dymnastia. Dymnastia exige netos. Restava que o Senhor abençoasse a união, e elle abençoou-a, no anno seguinte. D. Camilla acostumára-se á idéa; mas era penoso abdicar, que ella aguardava o neto com amor e repugnancia. Esse importuno embryão, curioso da vida e pretencioso, era necessario na terra? Evidentemente, não; mas appareceu um dia, com as flôres de setembro. Durante a crise, D. Camilla só teve de pensar na filha; depois da crise, pensou na filha e no neto. Só dias depois é que pode pensar em si mesma. Enfim, avó. Não havia que duvidar; era avó.Nem as feições que eram ainda concertadas, nem os cabellos, que eram pretos (salvo meia dúzia de fios escondidos), podiam por si sós denunciar a realidade; mas a realidade existia, ella era, enfim, avó.

Quiz recolher-se; e para ter o neto mais perto de si, chamou a filha para casa. Mas a casa não era um mosteiro, e as ruas e os jornaes com os seus mil rumores acordavam nella os écos de outro tempo. D. Camilla rasgou o acto de abdicação e tornou ao tumulto.

Um dia, encontrei-a ao lado de uma preta, que levava ao collo uma criança de cinco a seis mezes. D. Camilla segurava na mão o chapellinho de sol aberto para cobrir a criança. Encontrei-a oito dias depois, com a mesma criança, a mesma preta e o mesmo chapeo de sol. Vinte dias depois, e trinta dias mais tarde, tornei a vel-a, entrando para o bonde, com a preta e a criança. - Você já deu de mammar? dizia ella á preta. Olhe o sol. Não vá cahir. Não aperte muito o menino. Acordou? Não mexa com elle. Cubra a carinha, etc. etc.

Era o neto. Ella, porém, ia tão apertadinha tão cuidadosa da criança, tão a miudo, tão sem outra senhora, que antes parecia mãe do que avó; e muita gente pensava que era mãe que tal fosse a intenção de D. Camilla não o juro eu. ("Não jurarás", Math. V. 34) Tão sómente digo que nenhuma outra mãe seria mais desvellada do que D. Camilla com o neto; atribuirem-lhe um simples filho era a coisa mais verosimil do mundo.

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