SE MACHADO VIVESSE HOJE, O QUE ELE ESCREVERIA?

Publicano na Folha de S. Paulo, quinta-feira, 21 de junho de 1979.

"RIO (Sucursal) - Se Machado de Assis, nascido há 140 anos (21 de junho de 1839), vivesse em nossa época, o que ele escreveria? Quem sabe se escreveria? No Brasil de hoje, haveria lugar para Capitu, Bentinho, Brás Cubas? A julgar pelas respostas de três intelectuais cariocas, todos os personagens machadianos seriam verossimeis, atualmente. Afinal, o Brasil mudou muito pouco, lembra Antônio Callado:

"Se Machado de Assis fosse escrever, hoje, escreveria da mesma forma por dois motivos. O primeiro motivo é que ele apurou e simplificou, de forma tão artistica e definitiva, o português urbano do Brasil, que sua língua continua válida e perfeita. O segundo motivo é que o Brasil mudou tão pouco, que ele, em grande parte, poderia escrever o que escreveu.

"Vejam, por exemplo, como a expressão 'estado de sítio', num pequeno capitulo do romance 'Esaú e Jacó', torna o trecho atual: 'Não há novidade nos enterros. Aquele teve a circunstância de percorrer as ruas em estado de sítio. Bem pensado, a morte não é outra coisa mais que uma sensação de liberdade de viver, sensação perpétua, ao passo que o decreto daquele dia valeu só por 72 horas. Ao cabo de 72 horas, todas as liberdades seriam restauradas, menos a de reviver. Quem morreu, morreu. Era o caso de Flora'.

"Como o estado de sítio nos aconteceu anteontem e certamente voltará a acontecer depois-de-amanhã, esse pequeno trecho de Machado, pela língua e pela situação tão brasileira, é irretocável".

Antônio Houaiss acha que Machado de Assis continua vivo e atuante:

"Machado de Assis não está morto. Está vivo e mudou alguns temas e problemas, atualizando-se com a nossa triste contemporaneidade. Ele hoje faz a mais importante poesia do Brasil e a mais importante crônica, essa que capta os anseios e tristezas do nosso tempo - sobretudo da nossa juventude sem horizontes - com aquele fino sentimento de que, afinal de contas, somos nós mesmos os culpados e vamos, por muito tempo, continuar a ser. O nome atual de Machado de Assis é Carlos Drummond de Andrade".

Paulo César Sarraceni, que fez "Capitu", versão cinematográfica de "Dom Casmurro", acha que, se Machado de Assis fosse vivo, escreveria uma nova versão desse romance, que seria centralizada em Capitu.

"Capitu continuaria a ser um enigma, apesar de Machado já ter sido psicanalisado e lido Lacan. Ele não teria pudor de amulatar Capitu e de fazer Escobar e Bentinho terem uma aventura tão enigmática quanto a da própria Capitu. Se tivesse um desfecho, seria a expulsão dos dois do colégio dos padres. Mas, como toda a diretoria do seminário seria discreta, nada se poderia provar do que realmente houve naquela segunda-feira, no banheiro do colégio. "Capitu continuaria a ser a grande paixão de Bentinho e Escobar, mas ela seria mais agente condutora do coração e das paixões dos dois. Não iria deixar passar ocasião, por exemplo, de fazer com que ambos sofressem ao ponto de tomarem um porre juntos. Haveria ciúmes tão terríveis, que nem Lupiscínio Rodrigues poderia imaginar. Quem teria traído quem naquele triângulo formado por Bentinho, Capitu e Escobar? Mas, como Escobar acabasse mesmo se afogando nas ondas - que agora seriam as de Copacabana ou da Barra - o triângulo se desfaria e Capitu partiria, como no final do filme, esperando por dias melhores. Mas o importante é que Machado de Assis continuaria a ser, se fosse vivo, um pesquisador da alma brasileira".

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