PARA MACHADO, REPÚBLICA FOI SÓ TROCA DE FACHADA

Publicado na Folha de S.Paulo, quarta-feira, 15 de novembro de 1989.


FERNANDO DE BARROS E SILVA

Da Redação

"De uma hora para outra, a antiga cidade do Rio de Janeiro desapareceu e outra surgiu como se fosse obtida por uma mutação de teatro. Havia mesmo na cousa muito de cenografia." A frase, escrita por Lima Barreto em seu romance "Os Bruzundangas" (1923), refere-se ao Rio do final do século passado, capital da "belle époque" tupiniquim, mas poderia ser aplicada à proclamação da república que hoje completa cem anos de vida. Nela, estão expostos dois paradoxos do regime que nascia: era fruto de uma mutação inesperada e parecia não passar de cenografia.

Coube a Machado de Assis (1839-1908), em seu penúltimo romance, "Esaú e Jacó" (1904), transformar em ficção os acontecimentos que culminaram na queda da monarquia no Brasil. Com o olhar cético e a ironia de sempre, Machado tratou a proclamação como fez as "Memórias Póstumas de Brás Cubas": com "a pena da galhofa e tinta da melancolia".

O cerne do que pensava o escritor sobre a proclamação pode ser resumido em uma passagem célebre, batizada pela crítica como o episódio da "tabuleta do Custódio" (leia texto abaixo). Dono da "Confeitaria do Império" há mais de 30 anos, Custódio manda, depois de muita relutância, reformar a tabuleta que leva o nome de sua loja. "Estava rachada e comida de bichos. Pois cá de baixo não se via", diz o doceiro. A alusão ao império é óbvia. Um regime comprometido e sem base de sustentação que ruiu sem manifestação popular, "pois cá de baixo não se via".

Às vésperas da inauguração da nova tabuleta, Custódio ouve rumores da revolução e "vagamente da república". Manda um bilhete ao pintor com o seguinte recado: "Pare no d.". Não sabia se era melhor concluir a pintura com a palavra Império ou República. O bilhete chega tarde e Custódio, "um simples fabricante e vendedor de doces e, principalmente, respeitador da ordem pública", vai ao desespero. Além de perder dinheiro, ainda punha em perigo "seus deliciosos pastéis de Santa Clara" e a própria vida. Pensa em adotar a palavra república na tabuleta, mas volta atrás: "se daqui um ou dois meses houver nova reviravolta, fico no ponto em que estou hoje, e perco outra vez o dinheiro."

Machado de Assis arranca o riso do leitor ao reduzir a proclamação da república a mera troca de tabuletas, questão de enfeite mais do que de substância. Mas não é só a farpa irônica contra o novo regime que faz de seu livro um dos momentos mais finos da literatura brasileira. Seu protesto é menos tímido e põe o dedo na ferida que interessa.

O crítico literário Roberto Schwarz já notou que o princípio formal da obra madura de Machado - a partir de "Memórias Póstumas" (1881) - é a volubilidade (as reviravoltas arbitrárias e as mudanças constantes), à qual tudo se subordina. O narrador muda de opinião, assunto e estilo a cada capítulo, o enredo não avança, as personagens são tingidas pela inconstância e não há propriamente conflito, mas disparates em série. Se o efeito imediato deste procedimento é provocar o riso em quem lê, no final o resultado é sempre melancólico e aborrecido. "Brás Cubas" termina com o capítulo "Das Negativas", onde se lê: "Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria". Samuel Beckett assinaria embaixo.

Antes de ser um sinal de fraqueza ou falta de fôlego para a narrativa realista que vivia seus dias de glória na Europa, a volubilidade que atravessa os romances de Machado é o verdadeiro achado do escritor. Estiliza e consegue capturar as inconstâncias do momento histórico e as oscilações da classe dominante da época. Os caprichos do narrador machadiano refletem no plano literário o arbítrio de uma sociedade calcada nas relações de favor e as contradições de uma elite que importou o liberalismo europeu vivendo às custas do trabalho escravo.

Com isso em vista, o episódio da "tabuleta do Custódio" ganha em alcance. República e Império se equivalem e são rótulos de fachada porque, na verdade, o "buraco" do país era mais embaixo. Se a monarquia era uma vergonha, o ideal republicano parecia postiço no Brasil. Machado capta esse mal-estar congênito da vida nacional, com o qual republicanos e monarquistas se debatiam e não raro quebravam a cara. São as idéias fora do lugar.

É esse desajuste entre vida das idéias e vida concreta que explica o efeito que a realidade tem sobre a conduta dos personagens machadianos. "Esaú e Jacó" é exemplar nesse sentido. Ao ouvir na rua que dois ou três ministros do império tinham sido assassinados durante a proclamação, o conselheiro Aires (personagem central do romance) transmite a seu empregado que apenas um estava ferido. O narrador justifica a atitude do conselheiro dizendo que a retificação só se explica por "um nobre sentimento de piedade ou pela opinião de que tôda notícia pública cresce de dois terços, ao menos". A realidade se curva às opiniões do personagem, e não o contrário, como seria de se esperar. Aires, ao tomar conhecimento do drama de Custódio, pensa em fazer uma "Filosofia das Tabuletas".

Aqui, de novo, os fatos não passam de pretexto para o personagem dar asas à imaginação. O oposto do romance realista europeu, em que a ordem social entra constantemente em conflito com o indivíduo burguês porque não consegue realizar o que promete. Como afirma Schwarz, "o enredo machadiano diz que a vida dos nossos ricaços foi excelente, mas corrida em pista falsa". "Esaú e Jacó" retrata um momento privilegiado dessa vertigem que hoje faz cem anos.

A queda do império e a proclamação da república em "Esaú e Jacó"

Tabuleta Velha (cap. 49)

"Tôda gente voltou da ilha com o baile na cabeça, muita gente sonhou com êle, alguma dormiu mal ou nada. Aires foi dos que acordaram tarde; eram onze horas. (...) Fumou, leu, até que resolveu ir à rua do Ouvidor. Como chegasse à vidraça de uma das janelas da frente, viu à porta da confeitaria uma figura inesperada, o velho Custódio, cheio de melancolia. Era tão novo o espetáculo que ali se deixou estar por alguns instantes; foi então que o confeiteiro, levantando os olhos, deu com êle entre as cortinas, e enquanto Aires voltava para dentro, Custódio atravessou a rua e entrou-lhe em casa.(...)

- Vim para contá-lo a V. Excia; é a tabuleta.

- Que tabuleta?

- Queira V. Excia ver por seus olhos, disse o confeiteiro, pedindo-lhe o favor de ir à janela.

- Não vejo nada.

- Justamente, é isso mesmo. Tanto me aconselharam que fizesse reformar a tabuleta que afinal consenti, e fi-la tirar por dois empregados. A vizinhança veio para a rua assistir ao trabalho e parecia rir de mim. Já tinha falado a um pintor da rua da Assembléia.(...) Ontem à tarde lá foi um caxeiro, e sabe V. Excia a que me mandou dizer o pintor? Que a tábua estava velha, e precisa outra; a madeira não aguenta a tinta. Lá fui às carreiras. Não pude convencê-lo de pintar na mesma madeira; mostrou-me que estava rachada e comida de bichos. Pois cá de baixo não se via."

"Pare no d."(cap. 62)

"Na véspera, tendo de ir abaixo, Custódio foi à rua da Assembléia, onde se pintava a tabuleta. Era já tarde; o pintor suspendera o trabalho. Só algumas das letras ficaram pintadas, - a palavra "Confeitaria" e a letra "d". A letra "o" e a palavra "Império" estavam só debuxadas a giz. (...) Recomendou pressa. Queria inaugurar a tabuleta no domingo.

Ao acordar de manhã não soube logo do que houvera na cidade, mas pouco a pouco vieram vindo as notícias, viu passar um batalhão, e creu que lhe diziam a verdade os que afirmavam a revolução e vagamente a república. A princípio, no meio do espanto, esqueceu-lhe a tabuleta. Quando se lembrou dela, viu que era preciso lhe sustar a pintura. Escreveu às pressas um bilhete e mandou um caxeiro ao pintor. O bilhete dizia só isto: "Pare no D."(...)

Quando o portador voltou trouxe a notícia de que a tabuleta estava pronta.

- Você viu-a pronta?

- Vi, patrão.

- Tinha escrito o nome antigo.

- Tinha, sim, senhor: "Confeitaria do Império".

Custódio enfiou um casaco de alpaca e voou à rua da Assembléia. Lá estava a tabuleta (...) Custódio leu: "Confeitaria do Império". Era o nome antigo, o próprio, o célebre, mas era a destruição agora; não podia conservar um dia a tabuleta, ainda que fôsse em beco escuro, quanto mais na rua do Catete..."

Tabuleta nova (cap. 63)

- "Mas o que é que há? Perguntou Aires.

- A república está proclamada.

- Já há governo?

- Penso que já; mas diga-me V. Excia.: ouviu alguém acusar-me jamais de atacar o governo? Ninguém. (...) A tabuleta está pronta, o nome todo pintado. (...) V. Excia crê que, se ficar "Império", venham quebrar-me as vidraças? - Isso não sei (...) Mas pode pôr "Confeitaria da República"...

- Lembrou-me isso, em caminho, mas também me lembrou que, se daqui a um ou dois meses, houver nova reviravolta, fico no ponto em que estou hoje, e perco outra vez o dinheiro. (...)

Aires disse-lhe então que o melhor seria pagar as despesas e não pôr nada, a não ser que preferisse seu próprio nome: "Confeitaria do Custódio". (...) Um nome, o próprio nome do dono, não tinha significação política ou figuração histórica, ódio nem amor, nada que chamasse a atenção dos dois regimens, e conseguintemente que pusesse em perigo os seus pastéis de Santa Clara, menos ainda vida do proprietário e dos empregados. (...) Gastava alguma coisa em troca de uma palavra por outra, Custódio em vez de Império, mas as revoluções sempre trazem despesas.

- Sim, vou pensar, Excelentíssimo. Talvez convenha esperar um ou dois dias, a ver em que param as modas, disse Custódio agradecendo."

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