FERNANDO
DE BARROS E SILVA
Da
Redação
"De
uma hora para outra, a antiga cidade do Rio de Janeiro desapareceu
e outra surgiu como se fosse obtida por uma mutação de teatro.
Havia mesmo na cousa muito de cenografia." A
frase, escrita por Lima Barreto em seu romance "Os Bruzundangas"
(1923), refere-se ao Rio do final do século passado, capital da
"belle époque" tupiniquim, mas poderia ser aplicada à proclamação
da república que hoje completa cem anos de vida. Nela, estão expostos
dois paradoxos do regime que nascia: era fruto de uma mutação
inesperada e parecia não passar de cenografia.
Coube
a Machado de Assis (1839-1908), em seu penúltimo romance, "Esaú
e Jacó" (1904), transformar em ficção os acontecimentos que culminaram
na queda da monarquia no Brasil. Com o olhar cético e a ironia
de sempre, Machado tratou a proclamação como fez as "Memórias
Póstumas de Brás Cubas": com "a pena da galhofa e tinta da melancolia".
O
cerne do que pensava o escritor sobre a proclamação pode ser resumido
em uma passagem célebre, batizada pela crítica como o episódio
da "tabuleta do Custódio" (leia texto abaixo). Dono da "Confeitaria
do Império" há mais de 30 anos, Custódio manda, depois de muita
relutância, reformar a tabuleta que leva o nome de sua loja. "Estava
rachada e comida de bichos. Pois cá de baixo não se via", diz
o doceiro. A alusão ao império é óbvia. Um regime comprometido
e sem base de sustentação que ruiu sem manifestação popular, "pois
cá de baixo não se via".
Às
vésperas da inauguração da nova tabuleta, Custódio ouve rumores
da revolução e "vagamente da república". Manda um bilhete ao pintor
com o seguinte recado: "Pare no d.". Não sabia se era melhor concluir
a pintura com a palavra Império ou República. O bilhete chega
tarde e Custódio, "um simples fabricante e vendedor de doces e,
principalmente, respeitador da ordem pública", vai ao desespero.
Além de perder dinheiro, ainda punha em perigo "seus deliciosos
pastéis de Santa Clara" e a própria vida. Pensa em adotar a palavra
república na tabuleta, mas volta atrás: "se daqui um ou dois meses
houver nova reviravolta, fico no ponto em que estou hoje, e perco
outra vez o dinheiro."
Machado
de Assis arranca o riso do leitor ao reduzir a proclamação da
república a mera troca de tabuletas, questão de enfeite mais do
que de substância. Mas não é só a farpa irônica contra o novo
regime que faz de seu livro um dos momentos mais finos da literatura
brasileira. Seu protesto é menos tímido e põe o dedo na ferida
que interessa.
O
crítico literário Roberto Schwarz já notou que o princípio formal
da obra madura de Machado - a partir de "Memórias Póstumas" (1881)
- é a volubilidade (as reviravoltas arbitrárias e as mudanças
constantes), à qual tudo se subordina. O narrador muda de opinião,
assunto e estilo a cada capítulo, o enredo não avança, as personagens
são tingidas pela inconstância e não há propriamente conflito,
mas disparates em série. Se o efeito imediato deste procedimento
é provocar o riso em quem lê, no final o resultado é sempre melancólico
e aborrecido. "Brás Cubas" termina com o capítulo "Das Negativas",
onde se lê: "Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura
o legado da nossa miséria". Samuel Beckett assinaria embaixo.
Antes
de ser um sinal de fraqueza ou falta de fôlego para a narrativa
realista que vivia seus dias de glória na Europa, a volubilidade
que atravessa os romances de Machado é o verdadeiro achado do
escritor. Estiliza e consegue capturar as inconstâncias do momento
histórico e as oscilações da classe dominante da época. Os caprichos
do narrador machadiano refletem no plano literário o arbítrio
de uma sociedade calcada nas relações de favor e as contradições
de uma elite que importou o liberalismo europeu vivendo às custas
do trabalho escravo.
Com
isso em vista, o episódio da "tabuleta do Custódio" ganha em alcance.
República e Império se equivalem e são rótulos de fachada porque,
na verdade, o "buraco" do país era mais embaixo. Se a monarquia
era uma vergonha, o ideal republicano parecia postiço no Brasil.
Machado capta esse mal-estar congênito da vida nacional, com o
qual republicanos e monarquistas se debatiam e não raro quebravam
a cara. São as idéias fora do lugar.
É
esse desajuste entre vida das idéias e vida concreta que explica
o efeito que a realidade tem sobre a conduta dos personagens machadianos.
"Esaú e Jacó" é exemplar nesse sentido. Ao ouvir na rua que dois
ou três ministros do império tinham sido assassinados durante
a proclamação, o conselheiro Aires (personagem central do romance)
transmite a seu empregado que apenas um estava ferido. O narrador
justifica a atitude do conselheiro dizendo que a retificação só
se explica por "um nobre sentimento de piedade ou pela opinião
de que tôda notícia pública cresce de dois terços, ao menos".
A realidade se curva às opiniões do personagem, e não o contrário,
como seria de se esperar. Aires, ao tomar conhecimento do drama
de Custódio, pensa em fazer uma "Filosofia das Tabuletas".
Aqui,
de novo, os fatos não passam de pretexto para o personagem dar
asas à imaginação. O oposto do romance realista europeu, em que
a ordem social entra constantemente em conflito com o indivíduo
burguês porque não consegue realizar o que promete. Como afirma
Schwarz, "o enredo machadiano diz que a vida dos nossos ricaços
foi excelente, mas corrida em pista falsa". "Esaú e Jacó" retrata
um momento privilegiado dessa vertigem que hoje faz cem anos.
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Tabuleta
Velha (cap. 49)
"Tôda
gente voltou da ilha com o baile na cabeça, muita gente sonhou com
êle, alguma dormiu mal ou nada. Aires foi dos que acordaram tarde;
eram onze horas. (...) Fumou, leu, até que resolveu ir à rua do
Ouvidor. Como chegasse à vidraça de uma das janelas da frente, viu
à porta da confeitaria uma figura inesperada, o velho Custódio,
cheio de melancolia. Era tão novo o espetáculo que ali se deixou
estar por alguns instantes; foi então que o confeiteiro, levantando
os olhos, deu com êle entre as cortinas, e enquanto Aires voltava
para dentro, Custódio atravessou a rua e entrou-lhe em casa.(...)
- Vim
para contá-lo a V. Excia; é a tabuleta.
- Que
tabuleta?
- Queira
V. Excia ver por seus olhos, disse o confeiteiro, pedindo-lhe o
favor de ir à janela.
- Não
vejo nada.
- Justamente,
é isso mesmo. Tanto me aconselharam que fizesse reformar a tabuleta
que afinal consenti, e fi-la tirar por dois empregados. A vizinhança
veio para a rua assistir ao trabalho e parecia rir de mim. Já tinha
falado a um pintor da rua da Assembléia.(...) Ontem à tarde lá foi
um caxeiro, e sabe V. Excia a que me mandou dizer o pintor? Que
a tábua estava velha, e precisa outra; a madeira não aguenta a tinta.
Lá fui às carreiras. Não pude convencê-lo de pintar na mesma madeira;
mostrou-me que estava rachada e comida de bichos. Pois cá de baixo
não se via."
"Pare
no d."(cap. 62)
"Na
véspera, tendo de ir abaixo, Custódio foi à rua da Assembléia, onde
se pintava a tabuleta. Era já tarde; o pintor suspendera o trabalho.
Só algumas das letras ficaram pintadas, - a palavra "Confeitaria"
e a letra "d". A letra "o" e a palavra "Império" estavam só debuxadas
a giz. (...) Recomendou pressa. Queria inaugurar a tabuleta no domingo.
Ao
acordar de manhã não soube logo do que houvera na cidade, mas pouco
a pouco vieram vindo as notícias, viu passar um batalhão, e creu
que lhe diziam a verdade os que afirmavam a revolução e vagamente
a república. A princípio, no meio do espanto, esqueceu-lhe a tabuleta.
Quando se lembrou dela, viu que era preciso lhe sustar a pintura.
Escreveu às pressas um bilhete e mandou um caxeiro ao pintor. O
bilhete dizia só isto: "Pare no D."(...)
Quando
o portador voltou trouxe a notícia de que a tabuleta estava pronta.
- Você
viu-a pronta?
- Vi,
patrão.
- Tinha
escrito o nome antigo.
- Tinha,
sim, senhor: "Confeitaria do Império".
Custódio
enfiou um casaco de alpaca e voou à rua da Assembléia. Lá estava
a tabuleta (...) Custódio leu: "Confeitaria do Império". Era o nome
antigo, o próprio, o célebre, mas era a destruição agora; não podia
conservar um dia a tabuleta, ainda que fôsse em beco escuro, quanto
mais na rua do Catete..."
Tabuleta
nova (cap. 63)
- "Mas
o que é que há? Perguntou Aires.
- A
república está proclamada.
- Já
há governo?
- Penso
que já; mas diga-me V. Excia.: ouviu alguém acusar-me jamais de
atacar o governo? Ninguém. (...) A tabuleta está pronta, o nome
todo pintado. (...) V. Excia crê que, se ficar "Império", venham
quebrar-me as vidraças? - Isso não sei (...) Mas pode pôr "Confeitaria
da República"...
- Lembrou-me
isso, em caminho, mas também me lembrou que, se daqui a um ou dois
meses, houver nova reviravolta, fico no ponto em que estou hoje,
e perco outra vez o dinheiro. (...)
Aires
disse-lhe então que o melhor seria pagar as despesas e não pôr nada,
a não ser que preferisse seu próprio nome: "Confeitaria do Custódio".
(...) Um nome, o próprio nome do dono, não tinha significação política
ou figuração histórica, ódio nem amor, nada que chamasse a atenção
dos dois regimens, e conseguintemente que pusesse em perigo os seus
pastéis de Santa Clara, menos ainda vida do proprietário e dos empregados.
(...) Gastava alguma coisa em troca de uma palavra por outra, Custódio
em vez de Império, mas as revoluções sempre trazem despesas.
- Sim,
vou pensar, Excelentíssimo. Talvez convenha esperar um ou dois dias,
a ver em que param as modas, disse Custódio agradecendo."
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