Roberto
Schwarz
"(...)
o aparecimento do 'Brás Cubas' modificou a ordem estabelecida:
as posições de José de Alencar, de Manuel Antônio de Almeida,
de Taunay, de Macedo - até então os grandes nomes da nossa ficção
- tiveram que ser sensivelmente alteradas."
Lúcia
Miguel-Pereira, "Prosa de Ficção"
"Se
voltarmos porém as vistas para Machado de Assis, veremos que esse
mestre admirável se embebeu meticulosamente da obra dos predecessores.
A sua linha evolutiva mostra o escritor altamente consciente,
que compreendeu o que havia de certo, de definitivo, na orientação
de Macedo para a descrição de costumes, no realismo sadio e colorido
de Manuel Antônio, na vocação analítica de José de Alencar. Ele
pressupõe a existência dos predecessores, e esta é uma das razões
da sua grandeza: numa literatura em que, a cada geração, os melhores
recomeçam 'da capo' e só os medíocres continuam o passado, ele
aplicou o seu gênio em assimilar, aprofundar, fecundar o legado
positivo das experiências anteriores. Este é o segredo da sua
independência em relação aos contemporâneos europeus, do seu alheamento
às modas literárias de Portugal e França. Esta, a razão de não
terem muitos críticos sabido onde classificá-lo."
Antonio
Candido, "Formação da Literatura Brasileira"
A
descontinuidade entre as "Memórias Póstumas" e a literatura apagada
da primeira fase machadiana é irrecusável, sob pena de desconhecermos
o fato qualitativo, afinal de contas a razão de ser da crítica.
Mas há também a continuidade rigorosa, aliás mais difícil de estabelecer.
Os dois aspectos foram assinalados ainda em vida do Autor, e desde
então se costumam comentar, cada qual por seu lado, no âmbito
ilusório da biografia: a crise dos 40 anos, a doença da vista,
o encontro com a morte ou o estalo do gênio explicam a ruptura;
ao passo que o amadurecimento pessoal e o esforço constante dão
conta do progresso ininterrupto. Levada ao terreno objetivo, da
comparação dos romances, a questão muda de figura e os dois pontos
de vista deixam de se excluir. Em lugar do percurso de um indivíduo,
em particular a sua evolução psicológica ou doutrinária, observamos
as alterações mediante as quais uma obra de primeira linha surgiu
de um conjunto de narrativas médias e provincianas. Em que termos
conceber a diferença?
Para situar o interesse da pergunta, digamos que ela manda refletir
sobre os aprofundamentos de forma, conteúdo e perspectiva que
se mostraram capazes de corrigir a irrelevância de uma parte de
nossa cultura, ou de lhe vencer o acanhamento histórico. Tudo
estará em especificar o que muda e o que fica, sempre em função
de um impasse literário anteriormente constituído e a superar,
o qual subjaz à transformação e lhe empresta pertinência e verdade.
A novidade dos romances da segunda fase está no seu narrador.
A vários críticos o humor inglês e a inspiração literária sem
fronteiras pareceram sugerir para mal ou para bem, um espaço alheio
a balizas nacionais. Nos capítulos anteriores argumentamos em
sentido contrário, tratando de salientar o funcionamento realista
do universalismo, impregnado de particularidade e atualidade pela
refração na estrutura de classes própria ao país. Analogamente,
o parentesco entre o autor tão metafísico das "Memórias" e o mundo
estreito e edificante dos romances iniciais não salta à vista,
mas se pode demonstrar.
Vimos que o procedimento literário de Brás Cubas - a sua volubilidade
- consiste em desdizer e descumprir a todo instante as regras
que ele próprio acaba de estipular. Ora, com a velocidade a menos,
a mesma conduta já figurava nos romances do primeiro período,
"sob forma de assunto". De "Ressurreição" (1872) a "Iaiá Garcia"
(1878), as narrativas têm como objeto o estrago causado pela vontade
imprevisível e caprichosa de um proprietário. A partir de "A Mão
e a Luva" (1874), a travação de classe do tema vem à frente e
o passa a determinar. A questão está encarada do ângulo da moça
de muitos méritos, mas pobre e dependente, a quem as decisões
arbitrárias, de um filho-família ou de uma viúva rica, aparentemente
liberais, reservam seja humilhações e desgraças, seja o possível
prêmio de uma cooptação.
Os aspectos morais esmiuçados pela análise são sobretudo dois,
rigorosamente complementares, um em cada pólo da relação: a) visto
o desequilíbrio de meios entre o proprietário e os seus protegidos,
qual a margem de manobra dos segundos, caso não aceitem cometer
indignidades ou ser destratados, mas queiram, ainda assim, ter
acesso aos bens da vida contemporânea? e b) como não será ignóbil
a nossa gente de bem, além de "louca", se a promiscuidade entre
desejo escuso e autoridade social, impeditiva para qualquer espécie
de objetividade, decorre estruturalmente da falta de direito dos
demais?
A perspectiva dos romances é civilizatória, pois cuida de tornar
essas relações menos bárbaras para os dependentes, e menos estéreis
para os abastados, isso mediante a compreensão esclarecida do
interesse dos dois campos, ambos desorientados pelos efeitos da
arbitrariedade, o verdadeiro ponto a corrigir (1).
No conjunto, os romances da primeira fase exploram os dilemas
do homem livre e pobre numa sociedade escravista, onde os bens
têm forma mercantil, os senhores aspiram à civilização contemporânea,
a ideologia é romântico-liberal, mas o mercado de trabalho não
passa ainda de uma hipótese no horizonte. Se não há como escapar
às relações de dependência e favor, ainda conhecendo o seu anacronismo
histórico, existiria algum modo de lhes evitar o efeito humilhante
e destrutivo? Conduzidos pela autocrítica muito consequente, os
progressos de um livro a outro são notáveis. O período culmina
em "Iaiá Garcia". Aqui o sistema do liberal-clientelismo está
exposto com amplitude, expresso na sua terminologia própria, sustentado
por uma galeria de personagens penitentes e diferenciadas, organizado
pelos conflitos práticos e morais que lhe são específicos, e ajudado,
enfim, por uma dramaturgia inventada sob medida.
O ajustamento à peculiaridade nacional resulta de um vasto trabalho
de absorção da empiria, e, não menos importante, do deslocamento
e cancelamento dos esquemas românticos, folhetinescos ou liberais,
percebidos como ilusão. Nessa altura, a quantidade das observações
sociais e psicológicas, das reflexões críticas e das soluções
formais encontradas já representa uma acumulação realista muito
respeitável - neutralizada, apesar de tudo, pelo enquadramento
conformista. Na sua versão mais complexa, carregada de ressonância
moral, ideológica e estética, o impasse fixado em "Iaiá Garcia"
se prende à exigência de dignidade dos dependentes. Esses já não
querem dever favores a ninguém, pois "a sua taça de gratidão estava
cheia" (2). Nem por isso deixam de prestar e receber obséquios,
uma vez que o seu espaço social não lhes faculta outro modo de
sobreviver.
Contudo, desincumbem-se de sua parte a frio, sem envolvimento
pessoal, buscando inibir o jogo de simpatia e reciprocidade, e
também de endividamento, inseparável da prática do pavor. Essa
atitude cerceadora de si e dos outros não se deve tomar apenas
como psicologia, pois representa o resultado de uma experiência
de classe, uma espécie de heroísmo na renúncia, refletido e peculiar,
adequado à circunstância histórica.
A frieza paradoxalmente responde à hipótese mais favorável ao
dependente, aquela em que, embora desamparado de qualquer direito,
ele seria tratado como igual - porque a parte mais afortunada
quis assim. Condicionada por um inaceitável ingrediente de capricho,
essa hipótese feliz constituiria o obséquio maior de todos, e
por isso mesmo a maior indecência e humilhação. A sujeição da
dignidade, dos valores românticos e liberais à desfaçatez de um
proprietário é o pesadelo característico a que a reserva dos pobres
deveria pôr um paradeiro, mesmo ao preço de ficar tudo como está.
A prosa que não verbaliza com liberdade o conflito exposto na
intriga constitui a principal limitação artística de "Iaiá Garcia".
A deficiência não decorre de falta de recursos, mas da restrição
ideológica imposta pelo propósito de civilizar sem faltar ao respeito.
Por outro lado, a restrição tem fundamento prático na posição
dos inferiores, que não dispõem da independência necessária à
crítica, o que empresta uma nota situada e realista ao convencionalismo
dos termos. Ainda assim, a injustiça das relações como que pressiona
o padrão comportado da escrita, cuja insuficiência é objetiva
e faz desejar um narrador menos coibido em face dos proprietários.
Tanto mais que o romance termina com a heroína procurando no trabalho
assalariado o remédio para a "vida de dependência e servilidade"
(3) a que o paternalismo obriga o pobre.
Estava alcançada a posição a partir da qual o desplante tranquilo
dos abastados se podia encarar sem subserviência, fixado em seu
arcaísmo e no vínculo inconfessável com a escravidão. Assim, o
último romance da primeira fase trazia inscrito em negativo um
outro livro - o seguinte? - onde a superação da dependência pessoal
pelo trabalho livre, um avanço histórico, permitiria expor sem
rebuços o caráter inaceitável e destrutivo das relações de dominação
próprias ao período "anterior". Sabemos contudo que Machado não
escreveu tal obra, e que o caminho do país tampouco seria esse.
Passados os anos, é notório que o fim do cativeiro não transformou
escravos e dependentes em cidadãos, e que a tônica do processo,
pelo contrário, esteve na articulação de modos precários de assalariamento
com as antigas relações de propriedade e mando, que entravam para
a nova era sem grandes abalos.
Nalguma altura anterior às "Memórias" e posterior a "Iaiá", faltando
um decênio para a Abolição, o romancista se terá compenetrado
desse movimento decepcionante e capital. O arranjo civilizado
das relações entre proprietários e pobres, que estivera no foco
do trabalho literário da primeira fase, ficava adiado "sine die".
De agora em diante Machado insistiria nas virtualidades retrógadas
da modernização como sendo o traço dominante e grotesto do progresso
na sua configuração brasileira. Voltando a "Iaiá Garcia", o esquema
europeu embutido na sua intriga, ligado à dinâmica moralizadora
do trabalho livre, estava fora de combate. Se estivermos certos,
esse quadro permite apreciar a genialidade da viravolta operada
nas "Memórias". Já não se trata de buscar um freio - irreal -
à irresponsabilidade dos ricos, mas de salientá-la, de emprestar
latitude total a seu movimento, incontrastado e nem por isso aceitável.
O tipo social do proprietário, antes tratado como assunto entre
outros e como origem de ultrajes variados, passava agora à posição
(fidedigna?) de narrador. Ou, por outra, as condutas reprováveis
(mas não reprovadas) do primeiro reapareciam transformadas em
procedimento narrativo, onde o vaivém entre arbítrio e discurso
esclarecido, causa do mal-estar moral e prático dos pobres, se
encontrava universalizado, afetando a totalidade da matéria romanesca.
Ajustando melhor o foco, digamos que a volubilidade narrativa
confere a generalidade da forma e o primeiro plano absoluto ao
passo propriamente intolerável dos relacionamentos de favor, aquele
em que segundo a conveniência ou veneta do instante a gente de
bem se pauta ou não pela norma civilizada, decidindo "entre duas
xícaras de chá" (4) sobre a sorte de um dependente. Sai
de cena o narrador constrangido dos primeiros romances, cujo decoro
obedecia às precauções da posição subalterna, e entra a desenvoltura
característica da segunda fase, a "forma livre de um Sterne ou
de um Xavier de Maistre" (5), cujo ingrediente de contravenção
sistemática reproduz um dado estrutural da situação de nossa elite.
No caso há vínculo evidente, embora complicado, entre as questões
de forma literária e classe social: o ponto de vista troca de
lugar, deixa a posição de baixo e respeitosa pela de cima e senhorial,
mas para instruir o processo contra essa última.
Noutros termos, Machado se apropriava da figura do adversário
de classe, para deixá-lo mal, documentando com exemplos na primeira
pessoa do singular as mais graves acusações que os dependentes
lhe pudessem fazer, seja do ângulo tradicional da obrigação paternalista,
seja do ângulo moderno da norma burguesa. Depois do proprietário
visto da perspectiva ressabiada do dependente, temos o dependente
visto da perspectiva escarninha do proprietário, "que se dá em
espetáculo" (6). Em âmbito biográfico, talvez se pudesse
imaginar que Machado havia completado a sua ascensão social, mas
não alimentava ilusões a respeito, nem esquecia os vexames de
situação anterior. Essa reorganização do universo literário é
profunda e carregada de consequência, das quais veremos algumas.
A volubilidade narrativa torna rotineira a ambiguidade ideológico-moral
dos proprietários, diferentemente dos romances iniciais, onde
essa tivera estatuto de momento excepcional e revelação, com lugar
crucial na progressão dramática. A reversibilidade metódica entre
as posturas normativa e transgressiva agora veio a ser a ambiência
geral da vida. Ficam inviabilizados os desdobramentos contraditórios
longos, dotados de travejamento ideológico e crise objetiva, próprios
ao Realismo europeu, substituídos por um movimento global "sui
generis", com fundamento histórico não menor: em lugar da dialética,
o desgaste das vontades.
A normalização literária de um dado estrutural da sociedade brasileira
não significava entretanto justificação. Pelo contrário, o caráter
insustentável da volubilidade ressalta a todo instante, ao passo
que nos romances anteriores, por prudência, ele não fora frisado.
Esses últimos queriam remediá-los, enquanto nas "Memórias", onde
não há saída à vista, o objetivo é enxergá-lo na sua extensão
e na envergadura dos danos causados. Em que consiste a reserva
auto-imposta do narrador dos romances iniciais? No que toca à
relação entre proprietários e dependentes, o comedimento está
em não glosar com verve os prolongamentos mais perversos da dominação
pessoal direta; e no que toca ao significado contemporâneo daquela
relação, em não expor a gente de bem ao critério burguês que a
condenaria. Contudo, ao esquivar o ponto de vista moderno em deferência
aos abastados, cuja dignidade, muito sublinhada, parece independer
dos abusos que praticam, Machado plantava o seu romance em terreno
apologético e provinciano; construía um espaço à parte, a salvo
do julgamento da atualidade, esse último como que localmente desativado.
Ora, o narrador volúvel põe fim à segregação protetora. Ao faltar
com estardalhaço às regras de equilidade e razão, ele as reconhece
e torna efetivas, patenteando em toda linha, enquanto dado presente,
a discrepância entre as nossas formas sociais e o padrão da civilização
burguesa.
Do mesmo modo, os romances da primeira fase têm pouco espaço para
as manifestações mais espetaculares da nova era, tais como a política
parlamentar, o cultivo da ciência, a empresa capitalista, a filosofia
da evolução, o progresso material. A quase ausência não decorre
de desinteresse, mas da evidência do caráter precário dessas atividades
no país, difíceis de conciliar sem ridículo com as formas de dominação
vigentes. Por outro lado, não podiam também faltar completamente,
uma vez que eram indispensáveis à verosimilhança oitocentista
e à presunção civilizada da gente fina. Com o tino realista necessário
à idealização, Machado tratava o interesse pelas matemáticas,
pelos versos, pela construção de pontes, pela pesquisa histórica
ou pela Câmara de Deputados como simples complementos da elegância
senhorial. A posição secundária dos índices de modernidade permitia
passar por alto o aspecto atrasado de nossos adiantados, embora
ao preço de certa nota, de irrelevância e falta de atualidade
gerais, que matam esses romances no conjunto.
A partir das "Memórias", entretanto, quando a dignidade dos senhores
vem à berlinda e deixa de ser tabu, haverá inversão de sinais
e também de proporções. Conforme tivemos ocasião de ver, as novidades
da civilização burguesa agora ocupam a cena. Aí estão em primeiro
plano filosofias recentes, teorias científicas, invenções farmacêuticas,
projetos de colonização e vias férreas, bem como o liberalismo,
o parlamento, a imprensa política etc., ainda que sempre desfigurados
pela subordinação a uma certa desfaçatez de classe, a qual é a
verdade crítica da dignidade proprietária pretendida nos romances
do primeiro período. A desprovincianização literária ocorre em
grande escala, seja degradando a figura das relações sociais locais,
confrontadas ou expostas à norma e ao progresso da civilização
burguesa, nunca sem vexame, seja desmoralizando a reputação incondicional
destes mesmos progressos e normas levados, no contexto, a desempenhar
papéis deslocados e contrários ao seu conceito. As liberdades
narrativas peculiares à segunda fase começam sob o signo de Sterne,
conforme a conhecida indicação de Machado. Observe-se contudo
que na ocasião a prosa borboleteante era velha conhecida não só
do romancista, como de muitos outros literatos brasileiros, que
a praticavam nos folhetins semanais da imprensa imitando modelos
franceses (7).
A miscelânea de crônica parlamentar, resenha de espetáculos, notícia
de livros, coluna mundana e anedotas variadas, com intuito de
recreio, compunha um gênero bem estabelecido - e de estatuto "pouco
sério". Devido talvez a essa conotação duvidosa, várias de suas
propriedades formais acabaram entrando para a feição do novo período
machadiano, por razões que veremos. A notação política, por exemplo,
solicitava o registro conciso das posições, mais apimentado quando
essas se mostram absurdas, risíveis, deletérias etc. Por sua vez,
a disparidade tão "moderna" dos problemas surgidos no âmbito do
parlamento, paralela à indiferença recíproca e à incongruência
de matérias procedentes do mundo inteiro, acomodadas ao acaso
numa página de jornal, ou no espaço de uma crônica, incitava ao
ponto de vista de Sirius.
A disposição sumária sobre os diferentes assuntos, o grande número
deles, a passagem inevitavelmente arbitrária de um a outro, introduziam
o elemento de bazar e capricho. Expressivo da situação aleatória
e spleenética do indivíduo contemporâneo, esse mesmo capricho
se prestava à poetização, e também ao papel de chamariz, atendendo
à necessidade comercial de prender o leitor. Com efeito, na ambiência
imaginária originada pela imprensa e intensificada no folhetim,
o público era induzido a se comportar como consumidor na escala
do planeta. E o folhetinista, explorando como atrativos a variedade,
a novidade, a vivacidade, o preço, o exclusivismo etc., transpunha
para a técnica da prosa os mandamentos práticos da mercadoria.
A lista de traços comuns à crônica hebdomadária e às "Memórias
Póstumas" pode ser encompridada à vontade. Com funções diversas,
a amálgama de atualismo e futilidade está presente nos dois casos.
Entretanto, se desde a juventude Machado dominava essa técnica,
à qual se prende, como vimos, a superioridade da "segunda maneira",
por que só agora ele a trazia para a esfera do romance? A questão
é interessante, pois leva a especificar de maneira imprevista
os passos de um indiscutível "progresso literário".
Nos anos 70, quando escrevia os seus quatro romances fracos, quase
privados de atmosfera contemporânea, Machado já era forte nas
piruetas petulantes e cosmopolitas do folhetim semanal. O que
faltava, para completar a configuração artística da maturidade,
não era portanto o procedimento narrativo. A reviravolta pendente,
que permitiria incorporar à elaboração romanesca uma técnica disponível
e comum a muitos, era de ordem ideológica. De modo genérico, pode-se
imaginar que a literatura de jornal, "frívola e algo cínica",
parecesse incompatível com ambições artísticas sérias. Mais decisivamente,
aqueles "defeitos" representavam o oposto da "fidelidade e retidão"
que seria preciso quase exigir dos proprietários, como única segurança
para o desamparo dos dependentes. Assim, a saída histórica buscada
nos romances da primeira fase supunha lealdades morais e compromisso
com a promoção social dos pobres, sobretudo os mais dotados, lealdade
e compromisso que deveriam primar sem mistura sobre a definição
"burguesa" do interesse, à qual no entanto os proprietários não
podiam também deixar de estar submetidos.
Quando percebe-se o infundado daquela expectativa, Machado se
capacita da pertinência das modalidades de rebaixamento a que
o folhetim emprestava o brilho, e as transforma em ambiente espiritual.
Os novos tipos de consumo e propriedade, em face dos quais o dependente
pobre, pela força das coisas, se encontra desvalido, saem da sombra
e passam a dar a nota. Sob o patrocínio prestigioso de Sterne,
e também das condutas anti-sociais cultivadas e estetizadas na
prosa de folhetim, a volubilidade narrativa irmana e faz alternarem
os arrancos da impunidade patriarcal e o pouco-se-me-dá do proprietário
moderno, o arbítrio da velha oligarquia escravista e a irresponsabilidade
da nova forma de riqueza. Reencenava e apontava à execração dos
bons entendedores a ambiguidade característica da classe dominante
brasileira (8). Assim, o princípio formal desenvolvido
nas "Memórias" soluciona e ergue a novo patamar os impasses apurados
no romance machadiano da primeira fase.
A dialética de conteúdo, experiência social e forma é rigorosa,
com ganho verdadeiramente imenso em qualidade artística, justeza
histórica, profundidade e amplitude de visão. Para apreciar o
alcance desse processo, cujas faces crítica e cumulativa dependem
uma da outra, convém tomar distância. Do ponto de vista da evolução
literária local, a estreiteza dos romances do primeiro período
não constituiu apenas um defeito, como as nossas observações poderiam
fazer crer. Noutra parte mostramos que essas obras respondiam
com discernimento a certa falha do realismo praticado por Alencar,
à qual escapavam, ainda que ao preço de engendrar deficiências
de outra ordem, talvez menos simpáticas.
Com efeito, estudando "Senhora" pudemos constatar um verdadeiro
sistema de desajustes ideológicos e estéticos. Se não erramos,
esse decorre da adoção acrítica de uma fórmula da ficção realista
européia ligada à concepção romântica e liberal do indivíduo,
pouco própria, por isso, para refletir a lógica das relações paternalistas.
A conjunção inocente de matéria local e forma européia nova atendia
ao desejo de atualidade dos leitores mais informados, mas desconhecia
a química própria a essa mistura. Em consequência, as notações
sociais, ou seja, a sociedade efetivamente observada, pouco interagem
com a linha mestra da intriga, permanecendo estranhas uma à outra,
o que não as impede, no plano geral da composição, de se desacreditarem
reciprocamente. Resulta um universo literário fraturado, onde
as reivindicações românticas - a mola da fábula - têm sempre algo
de afetação risível, postiça e "importada" (9). Assim,
quando o primeiro Machado recuava do terreno dito contemporâneo
e praticamente excluía de seus romances o discurso das liberdades
individuais e do direito à auto-realização, discurso novo e crítico,
ele estava fugindo à posição falseada em que se encontravam a
ideologia liberal e as ostentações de progresso nas condições
brasileiras. Uma vez firmado, esse mesmo discernimento lhe permitirá
partir das "Memórias", reintroduzir em massa as presunções de
modernidade, só que agora explicitamente marcadas de diminuição
e deslocamento, como covinha à circunstância, solucionando o problema
artístico armado na ficção urbana de Alencar e evitado, ao preço
do confinamento à esfera da dominação intrafamiliar, em seus próprios
trabalhos da primeira fase. Por sua vez, sem prejuízo da ingenuidade,
o realismo alencarino dos "perfis de mulher" se pode ver como
resposta refletida a romances anteriores de Joaquim Manuel de
Macedo, em relação aos quais progredia.
Como termo de comparação, sirva de exemplo o capítulo 4 de "O
Moço Loiro" (1845), onde duas formosas sinhazinhas estão postadas
à janela de uma chácara, contemplando a lua e o mar. Dissertam
sobre os horrores da situação de herdeira: como poderiam crer
nas declarações de amor dos pretendentes, se inevitavelmente essas
serão devidas ao dinheiro dos pais e a outros pensamentos ainda
mais cínicos? O autor de "A Moreninha" fixara a ressonância poética,
maior do que parece, da conjunção de ambiente patriarcal, paisagem
fluminense e chavões ultra-românticos, bem aproveitada pelo seu
sucessor. A graça da cena está na artificialidade das idéias,
gritante ainda em se tratando de mocinhas com "o dobro da instrução
que soem ter nossas patrícias" (10).
A função dos discursos desiludidos das meninas não é crítica,
mas lisonjeira, ou, por outra, não é desenvolver as grandes linhas
da situação em que se encaixam, mas lhe atestar o vínculo com
a civilização contemporânea. Com menos complacência, ou complacência
de outra ordem, a mesma atmosfera e um assunto comparável foram
expostos em "Senhora", onde se desdobram as etapas da compra e
ulterior redenção de um marido. O leitor estará lembrado da organização
muito estridente do livro, dividido em quatro partes - "O Preço",
"Quitação", "Posse" e "Resgate" - conforme a terminologia das
transações comerciais. Assim, Alencar trazia o rigor analítico
(um tanto disparatado) e a seriedade da indignação moral (também
um pouco fora de foco) ao universo sobretudo faceiro e amigo de
novidades de seu predecessor. Nem por isso a razão e a dignidade
muito enfáticas deixavam por seu turno de ser faceirices, provas
de adiantamento e europeísmo antes que esforços efetivos de lucidez
- repetindo, em nível mais elaborado, a constelação a superar.
Os funcionamentos especiosos da vibração moralista e da verve
analítica, enfeiadas pelo fundo de elitismo, funcionamentos tão
incômodos em Alencar, adiante formariam entre os grandes achados
críticos das "Memórias", de cuja matéria literária fazem parte
sistemática. Ao lhes sublinhar o motivo imediatista e compensatório,
em desacordo com a gesticulação ilustrada, Machado reconstituía
em novo plano, eletrizado pelo discernimento moral e pelo empenho
da inteligência, ambos girando em falso, a inconsequência amena
que movimenta a prosa de Macedo. Uma corrente de comicidade muito
mais franca e popular é formada por França Júnior, Manuel Antônio
de Almeida e Martins Pena. O traço distintivo está na sem-cerimônia
extraordinária com que são tratadas ou desconhecidas as idéias
capitais da burguesia oitocentista. Os autores dão de barato a
posição precária da normatividade nova no país, e aliás enxergam
aí um elemento alegre, de desafogo. Veja-se, no caso dos "Folhetins"
de França Júnior, a promiscuidade pitoresca entre as presunções
europeístas e as realidades de escravidão, clientelismo e antiga
família patriarcal, promiscuidade que já é a mesma de Machado
de Assis, descontada a consciência crítica. No "Inglês Maquinista",
de Martins Pena, anterior ainda à cessação do tráfico, tudo está
na deliberada falta de decoro das combinações temáticas. Assim,
os três pretendentes de Mariquinhas são um primo pobre, honesto
e patriota, um contrabandista de africanos, com barba até dentro
dos olhos, e um "english" vigarista, tão desonesto como o outro;
a mãe da moça bate em negros para desafogar o peito, faz vestidos
de seda com as modistas francesas, de chita com a Merenciana,
é mestra em usar empenhos para se apropriar de escravos da Casa
de Correção, e naturalmente prefere os namorados com dinheiro.
E embora não pairem dúvidas no que respeita ao bem e ao mal, o
primeiro não goza de tratamento literário distinto, convivendo
em igualdade de condições e dentro de toda intimidade com barbárie
e contravenções de toda ordem. Essa equanimidade, embutida no
andamento lépido, se poderia atribuir ao gênero farsesco, o que
no entanto seria desconhecer o senso histórico do Autor. Digamos
então que o clima de farsa permitia fixar artisticamente algumas
das constelações escandalosas da normalidade nacional (11).
A solução encontrada por Manuel Antônio de Almeida nas "Memórias
de um Sargento de Milícias" é menos palpável, mas aparentada.
Antonio Candido assinalou o convívio de bonomia e cinismo em sua
prosa, cujo balanço abre espaço para os dois lados de todas as
questões, encaradas ora do ângulo da ordem social, ora do ângulo
da transgressão. Daí uma certa suspensão do juízo moral, e também
da ótica de classe, em contaste benfazejo com a entonação "crítica"
desenvolvida pelos românticos, sobretudo por Alencar, impregnada
de indignação um pouco farisaica e presunções de superioridade
pessoal. Antonio Candido nota ainda a ressonância "brandamente
fabulosa" daquele ritmo, que sugere um mítico "mundo sem culpa",
"um universo que parece liberto do peso do erro e do pecado" (12).
Para ligar ao nosso esquema essas observações - em que nos inspiramos
largamente - acrescentemos que a narrativa se passa num Antigo
Regime meio fantasioso contrastante com a nossa época "normalizada".
"Era no tempo do rei", quando os meirinhos e demais funcionários
se vestiam e conduziam de acordo com a majestade de seu cargo,
não como os de hoje, que "nada têm de imponentes, nem no seu semblante
nem no seu trajar" (13). É claro que o encanto dos outros
tempos não decorre só da vestimenta e dos costumes coloridos,
mas sobretudo da ausência tangível do sentido moral moderno, a
qual, para os súditos desse último, adquire conotação utópica.
Assim, não deixa de haver tensão entre a consciência moral, de
que a condução da prosa tacitamente tem e dá notícia, ainda que
apenas para a passar por alto, e o mundo de arranjos pessoais,
propiciado pelo clientilismo.
A comicidade sutilmente moderna do livro depende desse distanciamento.
Digamos então que, sem prejuízo da acentuação diversa, as vertentes
que indicamos exploram e desdobram uma mesma problemática, de
origem extraliterária, proposta pelas grandes linhas da realidade
nacional e de sua inserção no mundo contemporâneo. A matriz prática
se havia formado com a Independência, quando se articularam perversamente
as finalidades de um estado moderno, ligado ao progresso mundial,
e à permanência da estrutura social engendrada na Colônia. Entre
essa configuração e a das nações capitalistas adiantadas havia
uma diferença de fundo. Inscrita no quadro da nova divisão internacional
do trabalho, e do correspondente sistema de prestígios, a diferença
adquiria sinal negativo: significava atraso, particularidade pitoresca,
alheamento das questões novas, atolamento em problemas sem relevância
contemporânea. Enredados nessa trama, alienante em sentido próprio,
caberia ao trabalho artístico e à reflexão histórico-social desfazer
a compartimentação e descobrir, ou construir, a atualidade universal
de imensos blocos de experiência coletiva, estigmatizados e anulados
como periféricos.
Recapitulando, o nosso percurso tem como ponto de partida a polarização
"sui generis" e desconcertante a que a vida nacional submetia
um conjunto de categorias pertencentes à experiência moderna.
A peculiaridade social terá sido notada e refletida de inúmeras
maneiras, desde as cotidianas, que ficaram sem registro, até as
conservadas em jornal ou livro. No campo artístico, alinhada com
os modos de reação mais imediata e popular, observamos uma pequena
tradição de literatura cômica, despretenciosa mas de irreverência
notável. Orientados pelo senso romântico da peculiaridade histórica,
e cientes da impostura que, nas circunstâncias locais, aderia
ao modelo de personalidade próprio ao mesmo Romantismo, esses
escritores tratam sem deferência o ponto de vista e os costumes
ditos "adiantados", e sobretudo não lhes conferem privilégio sobre
o dia-a-dia pouco prestigioso e não-burguês do Rio de Janeiro.
A relevância crítica desse humorismo, o seu vínculo com a Colônia
bem como o seu prolongamento moderno em "Macunaíma" e no "Serafim
Ponte Grande" foram assinalados por Antonio Candido (14).
Em contraste, a linha Macedo-Alencar adaptava à boa sociedade
fluminense as complicações da aspiração subjetiva, do foro íntimo,
do sentimento liberal, ou, mais geralmente, da individualidade
que se quer autônoma - donde os desencontros que já estudamos
e que, nos romances da sua primeira fase, Machado trataria de
abafar. Nas "Memórias Póstumas", por fim, o movimento alcança
uma síntese superior, que lhe recupera os momentos ruins e bons,
e os transforma em acertos máximos. A interioridade funciona a
todo vapor, cheia de desvãos e revelações, mas despegada do chique,
da superioridade e do potencial reformista que em graus diferentes
Macedo e Alencar lhe tinham atribuído. Tratado como caixa de compensações
imaginárias, em sintonia com avanços decisivos na concepção científica
do homem, o universo interior não pressiona em direção de progresso
algum. Ajusta-se à ciranda viva e sem tendência à auto-reforma
que a literatura de inspiração popular soube inventar, calcada
em dinamismos reais da sociedade brasileira. O ritmo de Martins
Pena e Manuel Antônio de Almeida está retomado no "Brás Cubas",
só que agora trazido às alturas alencarinas do sentimento-de-si
mais exigente e contemporâneo, que o condena enfaticamente e nem
por isso deixa de se acumpliciar com ele, passando a integrá-lo
e sendo condenado por sua vez (15).
Assim, a técnica narrativa das "Memórias Póstumas" resolvia questões
armadas por 40 anos de ficção nacional e, sobretudo, encontrava
movimentos adequados ao destino ideológico-moral implicado na
organização da sociedade brasileira. Como se vê, os problemas
estéticos têm objetividade, engendrada pela História intra e extra-artística.
Ao enfrentá-los, ainda que sob a feição depurada de uma equação
formal, o escritor trabalha sobre um substrato que excede a literatura,
substrato ao qual as soluções alcançadas devem a força e a felicidade
eventuais. As questões de forma não se reduzem a questões de linguagem,
ou são questões de linguagem só na medida em que essas últimas
vieram a implicar outras do domínio prático. Pelo simples diagrama,
a célula elementar do andamento machadiano supõem, em nível de
abrangência máxima, uma apreciação da cultura burguesa contemporânea,
e outra da situação específica da camada dominante nacional, articuladas
na disciplina inexorável e em parte automatizada de um procedimento,
a que o significado histórico desse atrito empresta a vibração
singular. A inspiração materialista de nosso trabalho não terá
escapado ao leitor.
O caminho que tomamos entretanto vai na direção contrária do habitual.
Ao invés do artista aprisionado em constrangimentos sociais, a
que não pode fugir, mostramos o seu esforço metódico e inteligente
para captá-los, chegar-se a eles, lhes perceber a implicação e
os assimilar como condicionantes da escrita, à qual conferem ossatura
e peso "reais". A prosa disciplinada pela história contemporânea
é o ponto de chegada do grande escritor, e não o ponto de partida,
esse sempre desfibrado, na sociedade moderna, pela continência
e o isolamento do indivíduo. Voltando a Machado de Assis, vimos
que a sua fórmula narrativa atende meticulosamente às questões
ideológicas e artísticas do oitocentos brasileiro, ligadas à posição
periférica do país. Acertos, impasses, estreitezas, ridículos,
dos predecessores e dos contemporâneos, nada se perdeu, tudo se
recompôs e transfigurou em elemento de verdade. Por outro lado,
longe de representar um confinamento, a formalização das relações
de classe locais fornece a base verossímil ao universalismo caricato
das "Memórias", um dos aspectos da sua universalidade efetiva.
Os imperativos da volubilidade, com feição nacional e de classe
bem definida, imprimem movimento e significado histórico próprios
ao repertório ostensivamente antilocalista de formas, referências,
tópicos etc., cujo interesse artístico reside nessa mesma deformação.
A notável independência e amplitude de Machado no trato literário
com a tradição do Ocidente depende da solução justa que ele elaborou
para imitar a sua experiência histórica. Lembremos por fim a nota
perplexa que acompanha as intermináveis manobras, ou infrações,
do "defunto autor": a norma afrontada vale deveras (sob pena de
o atritamento buscado não se produzir), e não deixa contudo de
ser a regra dos tolos. Postos em situação, como reagimos? entramos
para a escola de baixeza desse movimento, ou nos distanciamos
dele, e o transformamos num conteúdo cujo contexto cabe a nós
construir? Com perfil realçado mas enigmático, à maneira de Baudelaire
e Flaubert, Dostoiévski e Henry James, o procedimento artístico
se coloca deliberadamente a descoberto, como parte, ele próprio,
do que esteja em questão. Não porque a literatura deva tratar
de si mesma, segundo hoje se costuma afirmar, mas porque na arena
inaugurada em meados do século passado, cuja instância última
é o antagonismo social, toda representação passava a comportar,
pelas implicações de sua forma, um ingrediente político, e a ousadia
literária consiste em salientar isso mesmo, agredindo as condições
da leitura confiada e passiva, ou melhor, chamando o leitor à
vida desperta (16).
Como é sabido, a dívida técnica mais patente das "Memórias" é
setencentista, e não será ela o essencial da novidade de um autor
do último quartel do século 19. A imitação fiel da desfaçatez
da classe dominante brasileira; o sentido agudo de seu significado
contemporâneo e efeito deletério; a incerteza completa quanto
a seu prazo no tempo e - ousadia suprema - quanto à superioridade
da civilização que lhe servia de modelo inalcançado: a esse conjunto
complexo, de alta maturidade, deve-se a saliência especificamente
moderna da forma machadiana, tão nítida e desnorteante. O método
narrativo purgava de complacência patriótica e beletrística (isso
quando não funcionasse ao contrário...) o sentimento amável e
cediço que a nossa elite tinha de si mesma, o qual se via mudado
numa cifra - implacável entre as implacáveis - do destino da civilização
burguesa. Ao contrário do que faz supor a voga atual do anti-realismo,
a mimese histórica, devidamente instruída de senso crítico, não
conduzia ao provincianismo, nem ao nacionalismo, nem ao atraso.
E se uma parte de nossos estudiosos imaginou que o mais avançado
e universal dos escritores brasileiros passava ao largo da iniquidade
sistemática mercê da qual o país se inseria na cena contemporânea,
terá sido por uma cegueira também ela histórica, patente mais
ou menos longínqua de desfaçatez que machado "imitava".
__________
(1)
Para uma análise mais pormenorizada, Roberto Schwarz. "O Paternalismo
e a sua Racionalização nos Primeiros Romances de Machado de Assis",
in "Ao Vencedor as Batatas", São Paulo, Duas Cidades, 1977.
(2)
"Iaiá Garcia", Obra completa, vol. 1 pág. 315.
(3)
"Iaiá Garcia", pág. 406.
(4)
"Iaiá Garcia", pág. 402.
(5)
"MPBC", pág. 109.
(6)
Alfredo Bosi refere-se ao "tom pseudoconformista, na verdade
escarninho, com que (o narrador) discorre sobre a normalidade
burguesa". Em "A Máscara e a Fenda", A. Bosi et al., "Machado
de Assis", São Paulo, Ática, 1982, pág. 457.
(7)
"O folhetinista é originário da França, onde nasceu, e onde
vive a seu gosto, como em cama no inverno. De lá espalhou-se pelo
mundo, ou pelo menos por onde maiores proporções tomava o grande
veículo do espírito moderno; falo do jornal/ (...) o fohetim nasceu
do jornal, o folhetinista por consequência do jornalísta. Esta
íntima afinidade é que desenha saliências fisionômicas na moderna
criação./O folhetinista é a fusão admirável do útil e do fútil,
o parto curioso e singular do sério, consorciado com o frívolo.
Esses dois elementos, arredados como pólos, heterogêneos como
água e fogo, casam-se perfeitamente na organização do novo animal".
Machado de Assis, "O Folhetinista" (1985), Obra Completa, vol.
3, pág. 968. O tema está exposto de maneira ampla e documentada
em Marlyse Meyer, "Voláteis e Versáteis, de Variedades e Folhetins
se faz a Chrônica", xerox, 1987.
(8)
A crônica de jornal como lugar de encontro entre a modernização
e a tradição foi estudada por Davi Arrigucci Jr., "Fragmentos
sobre a Crônica", in "Enigma e Comentário", São Paulo, Companhia
das Letras, 1987.
(9)
Roberto Schwarz, "A Importação do Romance e suas Contradições
em Alencar, in "Ao Vencedor as Batatas".
(10)
Joaquim Manoel de Macedo, "O Moço Loiro", s/1, Ediouro, s/d,
pág. 33.
(11)
Ver a respeito as numerosas observações de Vilma Arêas, "Na
Tapera de Santa Cruz", São Paulo, Martins Fontes, 1987.
(12)
Antonio Candido, "Dialética da Malandragem", págs. 84-88.
(13)
Manuel Antônio de Almeida, "Memórias de um Sargento de Milícias",
Rio de Janeiro, Instituto Nacional do Livro, 1962, págs. 7-8.
(14)
Antonio Candido, op. cit., pág. 88.
(15)
A propósito de um conto de Machado, "O Diplomático", Vinicius
Dantas estudou as continuidades e diferenças entre a prosa machadiana
da maturidade e a comicidade popularesca dos anos 1830 e 40, cultivada
na imprensa. "O Narrador Cronista e o Narrador Contista", trabalho
de aproveitamento da Unicamp, 1984.
(16)
"Se não cursaste a retórica/ Do fino professor Satã/ Joga
este livro!/ Não entenderás nada/ E me acreditarias histérico",
Charles Baudelaire, "Epigrafe para um Livro Condenado". Os versos
são dirigidos ao "Leitor pacato e bucólico,/Sóbrio e ingênuo homem
de bem".