OS HORRIVEIS BRANCOS DA RUA DO OUVIDOR

Publicado na Folha de S.Paulo, segunda-feira, 5 de julho de 1971.

Neste texto foi mantida a grafia original


LENITA MIRANDA DE FIGUEIREDO

Os adeptos do "Black Power", de fofos cabelos e tunicas "zulus", sem mais qualquer cerimonia tiram o cartão de visita do bolso e se apresentam de modo estranho ao turista: "Black Is Beautiful".

Em todo o sul dos Estados Unidos e em algumas partes do norte, os cartões de exaltação da raça circulam em mãos negras e brancas.

Tôda a conscientização de uma raça a subrepujar a raça branca em numero e agressividade e julgando-se superior explode incandescente a alastra-se incontrolável.

Os turistas colecionam os cartõezinhos com a marca dos panteras negras como uma simples curiosidade, sem perceber o que está concentrado num "slogan" inocente: "Black Is Beautiful". No verso, a marca inconfundível da violência de muitos verões: a pantera de garras afiadas, soltando chispas pelas narinas, o ataque e a violencia expressos na postura agressiva e feroz.

Num país como os EE.UU. conturbado pelos conflitos raciais crescentes pode-se admitir a luta e o confronto de posições negras e brancas em seu meio social.

Lá a musica quando é negra, é essencialmente negra. Fala de um mundo negro, onde o negro é líder, senhor absoluto, nem sequer se cogita em exaltar ou atacar o branco.

Nos temas agressivos da 3ª corrente e no mormaço melancolico dos "blues" atuais o negro não roga mais ao "My Lord" as almejadas asas para os voos supremos de liberdade; não está mais a cantar à porta da cabana, à espera de que os tempos melhorem. Não almeja mais nada a longo prazo. Suas atitudes, suas ações, seus anseios sofrem soluções rapidas e caminha ombro a ombro com o branco, disputando-lhe, hoje, agora, as mesmas oportunidades, os mesmos direitos e os mesmos sonhos de vida e de amor. A luta negra é solitária. A ela o branco permanece indiferente.

Tôda a pulsação do Harlem propaga-se com força na musica negra, através dos "slogans" "Black is beautiful", tão "beautiful" que branco algum que preze sua vida permanece ali depois da 6 da tarde.

O negro só fala e se interessa pela vida negra, pelo amor negro e quando um mais arrojado elege um amor branco os odios recrudescem e, no caso, não há vantagem alguma em se ser negro ou branco em tal comunidade.

A lei brasileira sôbre racismo é explicita e rigorosa. A verdade é que não há racismo no Brasil e qualquer um que tente ferir os principios de dignidade do preto, é passivel de punição.

Talvez porque o nosso negro relegado a uma condição social inferior à do branco ainda não se encontre socialmente capaz de se colocar em terreno competitivo em todos os ramos de atividade profissional.

Com exceção de um ou dois porteiros de hotel, deste ou daquele gerente bossal de buate que já barraram a entrada de algumas pessoas em suas casas por serem negras, não se pode falar sequer em racismo aqui.

Entretanto, parece-nos que há gente interessada ou por má intenção, ou por imbecilidade, a fomentar a luta racial no Brasil. Acaba de ser lançada propositadamente a causar polemicas, um tipo de musica que vai deixar muita gente falando sozinha. Trata-se de "Black Is Beautiful", o "slogan" do cartãozinho de autoria de Marcos e Paulo Sergio Valle, que exalta o negro e picha "os brancos horriveis da rua do Ouvidor". Ellis Regina, aos berros, apela na interpretação:

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Hoje cedo, na rua do Ouvidor

Quantos brancos horríveis eu vi

Eu quero um homem de côr

Um Deus negro do Congo ou daqui

Black is beautiful

Black is beautiful

Black beauty so peace full

I wonna black

I wonna beautiful

Black is beautiful

Black is beautiful

Hoje à noite, amante negro, eu vou

Enfrentar o meu corpo no teu

Eu quero um homem de côr!

__________

Se a musica tivesse sido gerada à luz da outra America estaria tudo certo, exceto, trocando-se a rua do ouvidor pela 5ª Avenida, com os papeis invertidos. É o branco repudiando os próprios brancos, coisa que jamais um negro faria.

É desconcertante que dois nomes que já muito fizeram pela nossa musica tenham feito essa só pela vontade de aparecer ainda mais ou trata-se apenas de um truque para impressionar a racista Ella Fitzgerald. E talvez Ella mesma tenha estranhado o branco, agredindo os seus irmãos brancos da velha e lendaria rua do Ouvidor, sem saber porque.

Sem duvida alguma, "Black Is Beautiful" é mais perigosa ainda que seja "top" nas paradas de sucesso.

Mas uma coisa é certa. Os brancos hão de se tocar naquilo que lhe fere a pele, de perto e hão de indagar com seus botões das intenções dos dois jovens autores: afinal o que é bonito: o branco ou o preto?

Que os irmãos Valle ou a Ellis Regina queiram um homem de cor do Congo ou daqui, e que achem "horríveis os brancos da rua do Ouvidor", ninguém tem nada com isso. Mas dessas divagações pode nascer o desentendimento de verões brasileiros. Com isso pode desencadear-se aqui, uma onda racista, uma guerra entre brancos e negros, coisa que jamais o brasileiro pensou.

Em contrapartida, só nos resta uma alternativa. Ou nós, os brancos pintamos a cara de preto e que nessa onda entrem também "os homens horríveis da rua do Ouvidor" ou vamos imprimir nossos cartões de visita com o novo "sologan": "White is beautiful".

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