CHACAIS E ÁRABES

Publicado na Folha de S.Paulo, 9 de dezembro de 1989.


FRANZ KAFKA

Estávamos acampados no oásis. Os companheiros dormiam. Um árabe alto e branco passou por mim; tinha cuidado dos camelos e caminhava até o lugar onde dormia.

Lancei-me de costas na relva; não queria dormir; não conseguia; o uivo lamentoso de um chacal à distância; sentei-me outra vez. E o que estivera tão longe estava de repente perto. Chacais fervilhavam em torno de mim: olhos de ouro fosco brilhando e se extinguindo; corpos esguios como que movidos em ritmo regular e lépido por um chicote.

Um deles veio lá de trás, abriu caminho sob o meu braço, colado a mim como se necessitasse do meu calor, depois ficou à minha frente e, olho no olho, me falou:

- Sou o mais velho dos chacais em toda a redondeza. Estou contente em poder saudá-lo ainda aqui. Já tinha quase perdido a esperança, pois esperamos por você infindável; minha mãe esperou, a mãe dela esperou e assim todas as mães, até chegar à mãe de todos os chacais. Acredite em mim.

- Isso me deixa admirado - disse eu, esquecendo de acender a pilha de lenha que estava preparada para manter com a sua fumaça os chacais à distância.

- É só por acaso que venho do norte distante e estou fazendo uma curta viagem. O que vocês querem, chacais?

Como que encorajados por essa fala talvez demasiado amável eles formaram um círculo mais estreito ao meu redor; todos tinham a respiração curta e resfolegante.

- Sabemos que você vem do norte - começou o mais velho - e é nisso que se funda a nossa esperança. Lá existe a capacidade de compreensão que não se pode encontrar aqui entre os árabes. Dessa fria altivez, você sabe, não pode saltar nenhuma centelha de compreensão. Eles matam animais para comê-los e desprezam a carniça.

- Não fale tão alto - disse eu -, há árabes dormindo perto.

- Você é realmente um estrangeiro - disse o chacal. Se não fosse, saberia que nunca na história do mundo um chacal teve medo de um árabe. Deveríamos ter medo deles? Não é desgraça suficiente termos sido jogados no meio de um povo como esse?

- Pode ser, pode ser - disse eu -, não me atrevo a julgar coisas que estão tão distantes de mim; parece ser uma disputa muito antiga; seguramente está no sangue e talvez por isso só termine com o sangue.

- Você é muito sagaz - disse o velho chacal e todos respiraram mais célere ainda, com os pulmões excitados, embora todos eles estivessem parados; um cheiro amargo, só suportável por momentos com os dentes cerrados, fluía das bocarras abertas. - Você é muito sagaz; o que diz corresponde à nossa velha doutrina. Tiramos-lhes portanto o sangue e a disputa acaba.

- Oh - disse eu com mais veemência do que queria - eles irão se defender; irão abatê-los a tiros aos montes com os seus rifles.

- Você nos interpreta mal - disse ele - segundo a maneira dos homens, que persiste também no norte distante. Sem dúvida nós não iremos matá-los. O Nilo não teria água suficiente para nos purificar. Já diante da mera aparição dos seus corpos vivos partimos às pressas para um ar mais puro, para o deserto, que por essa razão é o nosso lar.

E todos os chacais em volta aos quais nesse ínterim haviam se juntado muitos outros vindo de longe, afundaram as cabeças entre as pernas dianteiras, limpando-as com as patas; era como se quisessem ocultar uma antipatia tão terrível que eu teria preferido escapar do seu círculo com um grande salto.

- Então, o que vocês pretendem fazer? - perguntei e quis me levantar mas não pude; dois animais jovens haviam cravado os dentes com firmeza na parte de trás do meu casaco e da minha camisa; tive de permanecer sentado.

- Eles estão segurando a sua cauda - disse o chacal num tom de esclarecimento e seriedade. - É um testemunho de respeito.

- Eles precisam me soltar! - bradei voltado ora para o velho, ora para os jovens chacais.

- É evidente que eles irão fazê-lo - disse o velho chacal - se você o exige. Mas demora um pouco, pois, seguindo o costume, eles morderam fundo e têm que separar lentamente as mandíbulas. Enquanto isso ouça o nosso pedido.

- O comportamento de vocês não me torna muito receptivo - disse eu.

- Não cobre a nossa falta de jeito - disse e pela primeira vez recorreu à ajuda do tom lamentoso da sua voz natural. - Somos pobres animais, temos apenas mandíbulas; só nos restam as mandíbulas para tudo o que queremos fazer, seja bom, seja mau.

- O que então você quer? - perguntei apenas um pouco abrandando.

- Senhor - exclamou e todos os chacais uivaram; na distância mais remota parecia ser uma melodia. - Senhor, deve acabar com a disputa que divide o mundo em dois. Nossos antepassados descreveram aquele que irá fazê-lo exatamente assim como você é. Precisamos de paz com os árabes, de ar respirável; purificada deles a vista em torno do horizonte; nenhum grito de lamúria de um carneiro que o árabe esfaqueia; todos os animais devem morrer tranquilamente; bebidos por nós sem transtorno até ficarem vazios e limpos até os ossos. Limpeza, nada mais que limpeza é o que nós queremos - e aí todos choraram e soluçaram. - Como suporta viver neste mundo, ó nobre coração, doces entranhas? A sujeira é o branco deles, a sujeira o seu preto; um horror a sua barba; é preciso cuspir à vista do canto dos seus olhos; e se erguem o braço, o inferno se abre na sua axila. Por isso, senhor, por isso, ó caro senhor, com a ajuda dessas mãos que tudo podem, corte-lhes de lado a lado os pescoços com esta tesoura!

E acompanhando uma guinada da sua cabeça apareceu um chacal que trazia num dente canino uma pequena tesoura de costura coberta de ferrugem velha.

- Finalmente a tesoura - e agora basta! - bradou o chefe árabe da nossa caravana que havia se esgueirado contra o vento até nós e nesse momento brandia seu gigantesco chicote.

Todos os chacais se dispersaram o mais rápido possível, mas ficaram a alguma distância, agachados bem perto uns dos outros - tantos, tão juntos e tão parados que pareciam um pequeno radie à cuja volta voassem fogos-fátuos.

- Então o senhor também viu e ouviu este espetáculo disse o árabe e riu com a alegria que a contensão da sua estirpe permitia.

- Você sabe então o que os animais querem? - perguntei.

- Naturalmente, senhor - disse ele. - Isso é conhecido desde há muito tempo; enquanto existirem árabes essa tesoura vai peregrinar pelo deserto e andar conosco até o fim dos nossos dias. Ela é oferecida a todo europeu para realizar a grande obra; todo europeu é justamente aquele que lhes parece convocado para isso. Esses animais têm uma esperança absurda; são loucos, verdadeiros loucos. Por isso nós os amamos; são nossos cães - mais belos que os de vocês. Veja um camelo morreu durante a noite, mandei que o trouxessem para cá.

Quatro carregadores chegaram e atiraram o cadáver diante de nós. Mal ele jazia ali os chacais levantaram suas vozes. Como que puxados irresistivelmente por cordas cada um deles veio se aproximando, com paradas no meio do caminho, o corpo esfregando no chão. Tinham esquecido os árabes, esquecido o ódio, fascinava-os a presença do corpo que exalava um cheiro forte e obliterava tudo. Um deles já se pendurava no pescoço e encontrava a jugular com a primeira mordida. Como uma pequena bomba frenética que quer apagar um incêndio poderoso de uma maneira tão incondicional quanto sem perspectiva, cada músculo do organismo se estirava e contraía no seu lugar. E logo todos se amontoaram sobre o cadáver fazendo o mesmo trabalho.

Então o chefe da caravana vibrou com energia o chicote em todos os sentidos sobre eles. Os chacais ergueram a cabeça, meio ébrios e desmaiados; viram os árabes em pé diante deles; começaram a sentir o chicote com os focinhos; recuaram num salto e correram um trecho para trás. Mas o sangue do camelo já se espalhava em poças e fumegava, o corpo estava bem aberto em vários lugares. Não conseguiram resistir; estavam de novo ali; o chefe árabe ergueu outra vez o chicote; segurei seu braço.

- Tem razão, senhor - disse ele. - Vamos deixá-los no seu ofício; é hora de levantar acampamento. Animais maravilhosos, não é verdade? E como nos odeiam!

Tradução de Modesto Carone

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