'O
NOVO ADVOGADO', PELA PRIMEIRA VEZ VERTIDO DO ALEMÃO
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Publicado
na Folha de S.Paulo,
sábado, 20 de setembro de 1986.
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FRANZ
KAFKA
Temos
um novo advogado, o Dr. Bucéfalo. Seu exterior lembra pouco o
tempo em que ainda era o cavalo de batalha de Alexandre da Macedônia.
Quem no entanto está familiarizado com as circunstâncias percebe
alguma coisa. Assim é que, recentemente, eu mesmo vi, na escadaria
do fórum, um humilde oficial de justiça admirar, com o olhar perito
do pequeno frequentador contumaz das corridas de cavalos, o advogado
quando este, empinando as coxas, galgava degrau por degrau o mármore
que ressoava.
Em
geral a Ordem dos Advogados aprova a admissão de Bucéfalo. Com
espantosa perspicácia dizem a si mesmos que, no ordenamento social
vigente, Bucéfalo está numa situação difícil e que tanto por isso
como por causa do seu significado na história universal, ele de
qualquer modo merece consideração. Hoje em dia - isso ninguém
pode negar - não existe nenhum grande Alexandre. É verdade que
muitos sabem matar; também não falta destreza para atingir o amigo
com a lança por cima da mesa do banquete; e para muitos a Macedônia
é estreita demais, a ponto de amaldiçoarem Felipe, o pai; mas
ninguém, ninguém, é capaz de ser o guia para a Índia. Já naquela
época as portas para a Índia eram inalcançáveis, mas a direção
delas estava traçada pela espada do rei. Hoje as portas estão
removidas para outro lugar completamente diferente, mais longe
e mais alto; ninguém indica a direção; muitos seguram a espada,
mas só para brandi-la; e o olhar que quer segui-la se confunde.
Talvez
por isso o melhor realmente seja, como Bucéfalo fez, mergulhar
nos códigos da lei. Livre, sem a pressão da virilha do cavaleiro
sobre os flancos, à luz da lâmpada silenciosa, distante do fragor
da batalha de Alexandre, ele lê e vira as folhas dos nossos velhos
livros.
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O DESAFIO DE TRADUZIR KAFKA
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Modesto
Carone traduz uma coletânea de contos do escritor, direto do alemão.
Modesto
Carone
Especial para a Folha
O
desafio da tradução criativa começa no momento em que nós constatamos
que a única língua inteiramente ao nosso alcance é aquela em que
efetivamente pensamos e vivemos. É este limite imposto à elaboração
da experiência profunda que a tradução criativa tende a ignorar.
Pois o que ela na realidade quer é se apropriar da intimidade objetivada
em outras línguas.
Acontece
porém que as chamadas verdades da imaginação poética são intratáveis
e quase nunca (ou pelo menos nem sempre) se deixam surpreender de
uma vez pelo salto de criação de quem traduz, na medida em que elas
costumam se entrincheirar justamente no que é intraduzível.
Só
de passagem, é fácil imaginar as agruras de um hipotético tradutor
nórdico dos "Poema (s) da Cabra", de João Cabral de Melo Neto, diante
de um verso como "se a serra é terra a cabra é pedra", onde o acúmulo
de consoantes duplas, por si só, parece encher de pedregulho a boca
do leitor remetendo a mente e a sensibilidade, no lance de uma única
linha, para as asperezas do Nordeste brasileiro e a tenacidade do
ser que nele habita.
Foi
certamente em função de dificuldades deste tipo que Robert Frost
disse, com a maior seriedade, que poesia é aquilo que se perde nas
traduções. Pois todos nós estamos conscientes de que a matéria que
a poesia organiza, nos seus momentos de maior felicidade, atinge
um grau de condenação e complexidade na língua de partida que mesmo
a tradução mais laboriosa e competente não consegue igualar na língua
de chegada. Desse modo não parece pessimismo ou exagero afirmar,
como faz o comparatista Henry Gifford - cujas formulações teóricas
sucintas sustentam esse trabalho - que a obra traduzida nunca pode
ser mais que uma pintura a óleo reproduzida em branco e preto.
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Constelação de significados
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Evidentemente
o exemplo extremo e mais radical das dificuldades de passagem criativa
da obra literária de um idioma a outro é dado pela crítica, onde
os riscos de empobrecimento involuntário do original são muito maiores
do que na prosa. Mas no fundo o que vale para a poesia vale também
para a ficção exigente - e com isso descartamos a prosa orientada
para o consumo fácil e sem compromisso estético das histórias mastigadas
dos best-sellers e afins.
A
experiência tanto dos críticos como dos leitores alertas mostra
que uma tradução razoavelmente correta de uma narrativa é capaz
de acompanhar de perto o texto-base, uma vez que nessa transposição
se perde pouco da sua estrutura e portanto pouco do seu sentido
mais geral - desde, é claro, que sejam mantidos no texto traduzido
os movimentos e as proporções básicas do original.
Mas
nem por isso deixa de ser um dado de realidade que a narrativa traduzida
fica isolada do seu contexto histórico mais amplo, dissipando sem
querer todo um repertório de alusões imanentes ao seu sentido global
de obra de arte - aqui entendida simultaneamente como fenômeno estético
e fato social.
Para
citar um exemplo à mão, basta lembrar a frase de abertura das "Memórias
de um Sargento de Milícias" - "Era no tempo do rei" - que já no
primeiro compasso do romance cria uma constelação de significados
muito diferentes para um leitor brasileiro e um leitor inglês ou
francês, visto que a sensibilidade histórica do habitante da nação
que foi colônia discrepa categoricamente da do cidadão que se formou
num pais colonizador. Naturalmente os exemplos dessa natureza podem
ser multiplicados à vontade - seja na direção que for.
Mas
também o tom ou a postura do narrador é determinante, na prosa de
ficção, não só do modo de compor a narrativa, como dos efeitos que
ela intencionalmente produz, uma vez que é esse timbre de voz que
estabelece o ângulo através do qual o leitor entra numa história
para participar das suas peripécias.
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Metamorfosear Kafka
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Nessa
linha de raciocínio, banal em teoria literária, uma tradução de
Kafka - e aqui eu puxo a brasa para minha sardinha - uma tradução
de Kafka que desconsidere o teor da sua linguagem de protocolo,
incumbida no original de registrar, com a maior sem-cerimônia, os
acontecimentos mais insólitos, pode transformar (ou metamorfosear)
Kafka, discípulo confesso de Flaubert, num escritor que ele não
é nem nunca pretendeu ser, como por exemplo um autor fantástico
"tout court". Pois o fascínio e a novidade da escrita kafkiana deriva
exatamente da colisão entre o pormenor realista, beneficiado pela
posição recuada do narrador, e a fantasmagoria narrada, momento
em que esta adquire, em termos ficcionais, a credibilidade do real.
Mas
até mesmo uma tradução sensível a essas peculiaridades pode quebrar
a cara em obstáculos quase intransponíveis. Para mencionar somente
uma experiência pessoal, que talvez ilustre o que aqui se quer dizer,
quando traduzi "A Metamorfose", no ano passado, tive de enfrentar
algumas armadilhas logo na primeira frase. Como muitos talvez se
lembram (pois "A Metamorfose" continua sendo um livro bastante lido
no Brasil), essa frase afirma o seguinte: "Quando certa manhã Gregor
Samsa acordou de sonhos intranquilos, encontrou-se em sua cama metamorfoseado
num isento monstruoso".
A
primeira precaução tomada no meu trabalho foi incorporar ao texto
da tradução todas as palavras da sentença alemã, sem deixar nada
de fora por questão de economia ou limpeza, uma vez que em Kafka
as chamadas partículas de preenchimento representam uma espécie
de supérfluo indispensável. Procurou-se também estabelecer em português
uma ordem de palavras que não desse margem a equívocos gratuitos,
como por exemplo a sequência "encontrou-se em sua cama metamorfoseado"
ao invés de "encontrou-se metamorfoseado em sua cama", visto não
ser impossível em Kafka - embora aqui não seja o caso - que alguém
se metamorfoseie numa cama.
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Começa mal e termina pior
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Além
disso, traduzi "verwandelt", do verbo "verwandeln" (metamorfosear),
por "metamorfoseado" e não por "transformado", como fizeram antes
de mim outros tradutores (inclusive o nosso Marques Rebelo) e isso
pela razão óbvia de que o título da novela é "Verwandlung" (metamorfose),
que aparece deliberadamente fortalecido na oração que põe a narrativa
em movimento. Sabe-se por outro lado que essa frase de abertura
é uma das mais drásticas da prosa moderna, e que já está balizado
o curso posterior da novela, que é a progressiva liquidação do inseto
Gregor pela família Samsa.
Com
efeito, aparecem no original, em rápida sucessão, três negações
representadas pelo prefixo alemão "un": "unruhig" (intranquilo),
"ungeheuer" (enorme, gigantesco, monstruoso) e "Ungeziefer" (inseto
daninho que ataca pessoas, animais, plantas e provisões). Muito
bem: dessas três partículas de negação só foi possível resgatar
uma, a de "unruhig", aqui traduzido por "intranquilo" e não, como
também já se fez entre nós, por "agitado" ou coisa parecida. Mas
certamente isso foi muito pouco, já que "A Metamorfose", segundo
a boa tirada de Roberto Schwarz, é uma história que começa mal e
termina pior ainda - fato que os três ingredientes verbais de negação
se incumbem não só de antecipar, como também de deixar literalmente
marcado.
Entretanto,
as baixas sofridas pela tradução não pararam aí: de acordo com pelo
menos um intérprete importante de "A Metamorfose", tendo sido Kafka
um etimologista amador, não poderia ser casual o emprego, já no
pórtico da sua narrativa, do adjetivo "ungeheuer", que significa
etimologicamente "não familiar", "infamiliaris" (portanto, "fora
da família"), e do substantivo Ungeziefer, cujo étimo remete à noção
de "animal inadequado ou que não se presta ao sacrifício".
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Direito à sobrevivência
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Ora,
para quem conhece o entrecho da novela, o acoplamento incisivo dessas
duas palavras já forneceria, num nível por assim dizer arqueológico
da linguagem, uma das mais perfeitas interpretações desta tragédia
familiar kafkiana. Pois é justamente por causa da sua metamorfose
em isento que Gregor deixa de se "sacrificar" pela família e é "posto
para fora dela até a morte", como se fosse um parasita que não pode
mais ser parasitado. A única justificativa para esta carência do
texto traduzido é o fato de que nem o leitor alemão médio seria
capaz de perceber tais nuances eruditas de ensino.
Estendi-me
um pouco na apresentação desse exemplo pessoal para reforçar a opinião,
que evidentemente não é só minha, de que, mesmo sendo escrupulosa,
a tradução tende para algum tipo de perda ou dispersão, na maior
parte das vezes difícil de compensar; pois por mais que o tradutor
sinta e avalie "por dentro" o original, ele está fadado a ceder,
ora às pressões da sua língua, ora ao caráter muitas vezes inexpugnável
da obra construída no idioma alheio.
Em
resumo, a tradução criativa (a única que se justifica em literatura)
é sem dúvida alguma uma das maneiras mais fecundas de cultivar e
socializar a "Weltliteratur", combatendo na prática o isolamento
cultural, que já se tornou uma forma objetiva de anacronismo. Mas
ela é necessariamente falível. Sendo assim, uma vez reconhecido
o limiar em que uma língua ainda é capaz de absorver a experiência
estético-social sedimentada em outra, o que o tradutor imaginativo
pode e deve tentar conseguir e implantar o seu texto em algum lugar
situado entre as duas literaturas, de tal modo que ele não seja
nem estranho nem ao mesmo tempo familiar para o leitor a que se
destina.
De
resto, a única coisa que garante ao texto traduzido o direito à
sobrevivência é o senso de descoberta que ele mais ou menos compartilha
com o original - e mesmo assim enquanto perduram as exigências específicas
que, na época, a literatura faz da tradução em nome das suas próprias
necessidades. Talvez seja este, na realidade, o maior de todos os
desafios que a tradução criativa tem de enfrentar.
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