VOZES D'AFRICA


Publicado na Folha de S.Paulo, terça-feira, 6 de julho de 1971

Neste texto foi mantida a grafia original

Castro Alves

Deus! Ó Deus, onde estás que não respondes?!
Em que mundo, em qu'estrela tu t'escondes,
Embuçado nos céus?
Há dois mil anos te mandei meu grito
Que embalde, desde então corre o infinito...
Onde estás, Senhor Deus?!...


Qual Prometeu, tu me amarraste um dia
Do deserto na rubra penédia,
- Infinito galé!...
Por abutre - me deste o sol ardente!
E a terra de Suez - foi a corrente
Que me ligaste ao pé...

O cavalo estafado do Beduíno
Sob a vergasta tomba ressupino,
E morre no areal.
Minha garupa sangra, a dor poreja,
Quando o chicote do "simoun" dardeja
O teu braço eternal.


Minhas irmãs são belas, são ditosas...
Dorme a Ásia nas sombras voluptuosas
Dos "haréns" do Sultão,
Ou no dorso dos brancos elefantes
Embala-se coberta de brilhantes,
Nas plagas do Indostão


Por tenda - em os cimos do Himalaia...
O Ganges amoroso beija a praia
Coberta de corais...
A brisa de Misora o céu inflama;
E ela dorme nos templos do deus Brama,
- Pagodes colossais...


A Europa é sempre Europa, a gloriosa!...
A mulher deslumbrante e caprichosa,
Rainha e cortesã.
Artista - corta o mármor de Carrara;
Poetiza - tange os hinos de Ferrara,
No glorioso afã!...


Sempre a láurea lhe cabe no litigio...
Ora uma "c'roa", ora o "barrete frigio"
Enflora a cerviz
O Universo após ela - doido amante
Segue cativo o passo delirante
Da grande meretriz

Mas eu, Senhor!... Eu triste, abandonada,
Em meios dos desertos esgarrada,
Perdida marcho em vão!
Se choro... bebe o pranto a areia ardente!
Talvez... p'ra que meu pranto ó Deus clemente
Não descubras no chão!...


E nem tenho uma sombra na floresta...
Para cobrir-me nem um templo resta
No solo abrasador...
Quando subo às piramides do Egito,
Embalde aos quatro céus chorando grito:
"Abriga-me, Senhor!..."


Como o profeta em cinza a fronte envolve,
Velo a cabeça no areal, que volve
O siroco feroz...
Quando eu passo no Saara amortalhada...
Ai! Dizem: Lá vai África embuçada
No seu branco albornoz..."


Nem vêem que o deserto é meu sudário,
Que o silencio campeia solitario
Por sobre o peito meu.
Lá no solo, onde o cardo apenas medra,
Boceja a Esfinge colossal de pedra
Fitando o morno céu.


De Tebas nas colunas derrocadas
As cegonhas espiam debruçadas
O horizonte sem fim...
Onde branqueja a caravana errante
E o camelo monótono, arquejante,
Que desce de Efraim...


Não basta inda de dor, ó Deus terrivel?!...
É, pois, teu peito eterno, inexaurivel
De vingança e rancor?
E o que é que fiz, Senhor? que torvo crime
Eu cometi jamais, que assim me oprime
Teu gládio vingador!


Foi depois do "diluvio"... Um viandante,
Negro, sombrio, pálido, arquejante,
Descia do Ararat...
E eu disse ao peregrino fulminado:
"Cam!... serás meu esposo bem-amado...
- Serei tua Eloá..."


Desde este dia o vento da desgraça
Por meus cabelos, ululando, passa
O anátema cruel.
As tribos erram no areal nas vagas,
E o "Nomada" faminto corta as placas
No rápido corcel.


Vi a ciencia deserta do Egito...
Vi meu povo seguir - Judeu maldito -
Trilho de perdição.
Depois vi minha prole desgraçada,
Pelas garras da Europa arrebatada,
- Amestrado falcão!...


Cristo! embalde morreste sobre um monte...
Teu sangue não lavou da minha fronte
A mancha original.
Ainda hoje são, por fado adverso,
Meus filhos - alimária do universo,
Eu - pasto universal...


Hoje, em meu sangue a América se nutre:
- Condor, que transformara-se em abutre,
Ave da escravidão.
Ela juntou-se às mais... irmã traidora!
Qual de José os vis irmãos, outrora,
Venderam seu irmão!


Basta, Senhor! De teu potente braço
Role através dos astros e do espaço
Perdão p'ra os crimes meus!
Há dois mil anos... eu soluço um grito...
Escuta o brado meu lá do infinito...
Meu Deus! Senhor, meu Deus!...


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