AMORES CELEBRES

GUSTAVO ADOLFO BECQUER E JULIA ESPIN

Publicado na Folha da Manhã, domingo, 3 de maio de 1953

Neste texto foi mantida a grafia original

O cemiterio costuma ser amavel, rumoroso e acolhedor. É o "jardim da aclimatação" e, às vezes, quando nasce a primavera, é verde e tranquilo, como se os mortos colocassem nos ouvidos conchas marinhas nacaradas para escutar as vozes do mundo. Mas, em troca, no inverno, no inverno madrileno, a neve o açoita, os passaros fogem e só os ciprestes resistem a esse vento desapiedado que varre as lousas das tumbas. Em meio ao frio e desamparo, um pequeno cortejo funebre - apenas três ou quatro amigos - avança pelo caminho lamacento. Os homens deixam junto à cova o humilde ataude, sobre o qual cai a chuva duramente. É desse maneira que morre o poeta. A chuva o acompanha: sua velha e triste querida chuva. No seu quarto, ficaram uma mala de farrapos, um livro de Heine e um desenho de Betis. A miseria acabou com ele. E enquanto Madri apresenta, pelo Natal, os seus presepios e estabulos pelas ruas, deixa morrer assim o seu grande poeta. Os jornais não anunciam a sua morte; nas redações dos jornais e nos cafés nenhuma nota de seu desaparecimento. A terra cobre já o caixão preto e seu corpo se acomoda junto às raizes, os sucos nutritivos e os minerais. Mas, embora morto, alguem poderá duvidar de que a cabeça inerte de Gustavo Becquer continuará sonhando? Seu sonho... Eu contarei o seu sonho...
- Por uma clara avenida do céu, junto às pequenas fontes, o poeta caminhava com sua amada. Vagavam em silencio, falando-se com os olhos, enquanto os anjos lhe abriam o caminho de nuvens. Davam nomes novos às coisas e diziam essas palavras de amor, como duas crianças nos começos do mundo. Viram que, no fundo de seu caminho, se erguia um grande clarão de onde aparecia o rosto de Deus.
Gustavo Adolfo fica a mirá-lo e percebe que já o conhecia desde há muito tempo. Surpreende-se ao ouvir que Deus diz à sua companheira:
- "Julia, vem para junto de mim."
Ela obedece, porem leva Gustavo pela mão e os três avançam por um prado, vestidos de pastores, a brincar sob as arvores. Não é certo que deste modo a morte não é feia? Que importa, então, que a neve açoite os amigos inconsolaveis se ele está certamente surpreendido com alguma rosa nos jardins de Deus? Que importa, então, se ao miseravel quarto do qual saiu chegam os credores, os canalhas, as comadres que falam de um morto. Não sabem que um poeta partiu para sempre. Mas as nuvens, o sol, o vento, o céu sereno sentirão sua ausencia nas primaveras seguintes.

AS TRÊS VISÕES

Quem era essa Julia que, no céu, o conduzia por um campo florido? Os mortos não falam, sorriem. Já lhes contarei a historia do sorriso de Gustavo Adolfo Becquer. Era um sorriso triste e desesperançado nos ultimos anos. Mas, no começo do sorriso, vivia num sotão que dava para os telhados e os terraços. Era vizinho das chaminés, que adentravam temerosas no céu. Trabalhar não trabalhava, mas, em troca, escrevia. Durante as noites, seu cerebro febril se povoava de visões, nas quais as mulheres, o amor, os suplicios e a lenda o atormentavam. Exatamente, era esse o seu oficio: sonhar. Ouçamos, no silencio da madrugada o seu delirio:
- Pelos temerosos rincões de meu cerebro, acocorados e desnudos, dormem os extravagantes filhos de minha fantasia... E aqui dentro, desnudos e disformes, revoltados e emparelhados em indescritivel confusão, sinto-os às vezes agitarem-se e viverem com uma vida obscura e estranha. Não quero que, em minhas noites insones, voltes a passar em extravagante procissão, exigindo-me com gestos e contorções que os tire para a vida da realidade do limbo em que vives, semelhantes a fantasmas sem consistencia...
A luz amarela e fumacenta ardia cada vez mais debilmente no seu candieiro sujo. Nas sombras de seu quarto, se adiantavam as visões. Aparece a primeira e, à medida em que sua palavra lenta e provocadora desliza nos seus labios, a roupa vai-se desfazendo e caindo para deixar despido um corpo que surge como uma tentação.
Negro cabelos caem em cascatas sobre os seus ombros e o convidam à doce tarefa do amor, a boca entreaberta parece habitada pelo desejo. Assim fala ao poeta que a escuta com olhos escancarados:
- "Eu sou ardente, eu sou morena, eu sou o simbolo da paixão; de ansia de gozos minha alma está cheia. É a mim que procuras?
- "Não é a ti, não."
Estas ultimas palavras de Gustavo Adolfo a fizeram desaparecer. Então, nasceu nos ares uma segunda visão. Uma delgada figura loura, delicada e sutil o fitava com olhos piedosos. Era uma mulher para ser amada na melancolia do outono entre almofadas. Quando as folhas caem para tornar mais triste a paisagem e o alento do ser amado é uma flor tibia que é preciso proteger contra o frio que percorre as ruas. Ela, com sua voz apagada, disse debilmente:
- "Minha fronte é pálida; minhas tranças de ouro. Posso oferecer-te felicidade sem fim. Eu de ternura guardo um tesouro. É a mim que chamas?
- "Não, não é a ti."
Então, a figura desapareceu tão misteriosamente como havia chegado. Dos raios mesmos de lua que vinham diluir-se aos pés de sua casa começou a surgir uma tenue e delicada visão. Parecia que o futuro e o passado lhe estendiam um véu de suavidade para ocultá-la. Nada importaria sua beleza inefavel sem aqueles olhos fixos, absortos, que pareciam vir de um bosque sombrio.
Não parecia uma mulher, mas o pensamento de uma mulher, de tão fugidia que era. Sua cintura de fumo palido, aqueles braços alvos como o leite, os cabelos brilhantes e rosados como a flor do pessegueiro no vento da primavera. Os olhos! Os olhos!... Com uma umidade de sonho e enigma. Ah! Mas, desta vez, as palavras eram tristes e não davam esperanças ao poeta:
- "Eu sou um sonho, um impossivel; vão fantasma de nevoa e luz. Não posso amar-te."
- "Oh, vem, vem tu!"
E estendeu os braços tremulos para aquela mulher que fugia pela estrela branca para a boca da lua. Caiu abandonado no seu catre. O quarto estava vazio e as primeiras luzes frias do amanhecer azulavam os cristais.
UM JARDIM E SEUS OLMOS


Na noite seguinte, enquanto atravessava uma ruazinha afastada de Madri e recordava a discussão que acabava de sustentar com seus amigos, viu uma mulher num balcão. Teve vontade de abraça-la pela cintura e dizer-lhe como a sua visão: "Oh, vem, vem tu!" É possivel que a imaginação nos adiante a imagem da amada algumas horas antes de conhecê-la? É que então o amor vice dentro de nós e o temos desde criança sem perceber! O certo é que essa jovem era para Gustavo Adolfo a mesma que lhe dissera em seus sonhos: "Sou um sonho, um impossivel..." Mas pouco depois ela desaparecia ante o chamado de uma voz infantil que ria e exclamava:
- "Julia, já é tarde. Que faz no balcão?"
- "Olhava o céu."
"Julia... então se chama Julia - pensou Gustavo Adolfo, enquanto caminhava para o seu sotão, tão perto do céu da pobreza.
Escreveu na borda de sua cama:

"Hoje, a terra e os céus me sorriem;
Hoje, eu a vi... a vi e a admirei...
Hoje, creio em Deus!"

Para um poeta que tem a capa em farrapos e sofre os martirios da fome, é bastante dificil chegar com seu punhado de sonhos ao coração de uma jovem rica. Mas o amor, como nós contos de fadas, transforma o manto roto em reluzente atavio.
Por intermedio de um amigo comum, conseguiu conhecê-la. Sua fantasia obstinada e febril surpreendeu Julia a principio; depois, começou a transportá-la a um mundo diferente, onde as cousas e os seres tomam proporções diferentes; finalmente, se assenhoreou do seu amor, que já não podia viver sem aquele jovem magro e palido. Começaram os passeios pelo jardim inesquecivel; os olmos e as eras ensombreciam a casa. O perfume resinoso dos pinheiros os envolvia. Alem disso, sempre há nesses parques um banco de madeira, semioculto pela folhagem. O ar estava morno junto de Julia e Gustavo Adolfo. Os ultimos baluartes da tarde caiam na intimidade do acaso.

"Sua mão entre as minhas mãos,
Seus olhos em meus olhos,
A amorosa cabeça
Apoiada em meu ombro
Deus sabe quantas vezes,
A passo vagaroso,
Tenho vagado junto
Sob os altos olmos!..."

Chegaram até o banco sob o caramachão. Julia abriu um livrinho. Os dois amantes se inclinaram sobre aquela letra miuda que nenhum dos dois lia. Seu cabeço roçava a testa de Becquer, que se embriagava com o halito da jovem. O amor os mantinham unidos por um silencio estatico e só no fundo do peito uma doçura branda o inundava todo. O menor ruido das folhagens os fazia estremecer. O rumor ofegante da respiração ardia em seus labios.
Subitamente, seus rostos se enfrentaram e um beijo lento e longo os uniu.
- "Compreende, agora, que um poema cabe num verso?"
E ela respondeu ruborizada:
- "Agora eu compreendo!"

AS CAMPANHIAS DO BALCÃO SOLITARIO

A pobreza continuava agitando a sua vida. O misero trabalho no jornal não lhe dava quase nem para viver. Bacquer tinha dois inimigos: a pobreza e os sonhos; um o debilitava, outro lhe consumia as horas de repouso. Adoeceu, e no abandonado desvão, a morte rondou à espera de sua alma. No entanto, não era ainda chegada a sua hora. A vida o aguardava para dar-lhe a prova outra vez do fruto amargo do infortunio. Sua existencia e a de Julia não mais se encontrariam na terra.
Perguntarão por que se separaram. Quais foram as causas? Pergunta vã, pois tudo o que existia no mundo se opunha a Gustavo Adolfo e ele se defendia com versos e alucinações. O certo é que quando quis voltar ao parque dos olmos, a porta estava fechada; as campainhas do balcão o contemplaram solitario. Passou o tempo. Uma noite, num baile, encontraram-se. Um amigo que conhecia os tempos felizes os apresentou. Julia disse nessa ocasião, serenamente:
-"Creio que já o vi em algum lugar."
Turvou-se a vista de Gustavo, mas foi sobretudo o seu coração que recebeu a punhalada. Como era possivel que as mulheres se esquecessem assim ou fingissem esquecer? E, sobretudo, por que? Lembrou-se da lua sobre a folhagem dos olmos, a sombra do portico, a discreta solidão do caramachão. Então era possivel? Entrementes, a orquestra inundou os ares com o som de uma valsa, e Gustavo ficou num canto do salão, vendo Julia dançar, Julia a quem ainda amava. Seu companheiro de baile lhe diria frases galantes, pois Julia sorria nos seus braços. Quando a dor é mais profunda o verso nasce mais puro. Nos labios de Becquer se perdiam estas estrofes:

"Volverão do amor, em teus olvidos,
As palavras ardentes a soar;
Teu coração de seu profundo sonho
Talvez despertará
Mas, mudo e absorto e de joelhos,
Como se adora a Deus ante seu altar,
Como eu te amei... Desilude-te,
Assim não te amarão!"

Saiu daquele baile onde nunca devia ter ido. Ai, amor, como brincas com as criaturas! Que estranho era aquele sofrimento! Julia nem sequer o sabia, mas ela tambem o amava.

O NASCIMENTO DE UM SORRISO

No café madrileno, inundado de fumo de cigarro, falava-se de touros e revoltas populares. Numa mesa, obscura e distante, dois amigos tomavam em silencio o café dos boemios.
- "Em que pensas?" - perguntou a Gustavo o seu companheiro.
- "Em nada..."
- "Em nada e choras?"
- "É que tenho alegre a tristeza e triste o vinho."
Sairam. Como sempre, percorria as ruas pensando apenas em que não poderia voltar a ver Julia. Não queria falar-lhe, conformava-se em vê-la; porem, nem sequer essa mercê lhe concedia o destino. Assim, percorria as ruas com a esperança de encontrá-la. Um dia, por fim, perto de uma praça, cruzou com sua Julia. Nenhuma palavra lhe veio dos labios, pareceu-lhe, neste momento, estar mudo e ausente. Julia sorria nas luzes do entardecer madrileno.
- "As vezes a encontro pelo mundo
E passa junto a mim;
E passa sorrindo, e lhe digo:
Como pode rir!
Logo assoma a meus labios outro sorriso,
Mascara da dor,
E então penso: "talvez ela ria como rio eu".

Chegou a noite. Ninguem o esperava; não tinha tão pouco para onde ir. A sede o torturava ; para acalmá-la não tinha senão as suas lagrimas.
- "E tive fome! Os olhos inchados cerrei para morrer."
Mãos caridosas o levaram até o seu sotão. Ali, o deixaram em meio à miseria e a solidão. O poeta delirava consumido pela febre. Os ruidos da rua chegavam até ali. Havia risos, alegria, passava a vida tumultuosa e potente.
- "Julia!... Julia!... O mundo está deserto para mim!"
Passaram-se os dias. Conseguiu salvar-se de sua enfermidade. Desde então, ficou a Gustavo Adolfo aquele sorriso resignado e triste do qual já lhes falei.
Parece que Julia se casou com um capitão. A vida os foi isolando cada vez mais um do outro. Casta Esteban se uniu por esse tempo a Gustavo Adolfo, mas isto já não tinha importancia. Depois que o amor passou, os homens vivem ou morrem, chegam ao cume de seus trunfos ou abismo das derrotas, sem que nada os entusiasme ou desengane. Mas é dificil resistir sem amor à vida cotidiana, e para Adolfo isto era impossivel. Estendeu-se no leito e dispôs-se a morrer. Seus pulmões enfraquecidos já não queriam continuar a trabalhar. Casta estava a seu lado sem compreender aquela morte. A pobre mulher tão pouco havia suspeitado dos sonhos e da vida de seu marido.

OS ANJOS ESPIAM NOS BOSQUES DO CÉU

O coveiro o deixou logo depois de cumprir sua tarefa. Não pensou em que o homem ao qual acabava de sepultar havia dito:
- "Meu Deus, como ficam sós os mortos!"
Os amigos regressaram do cemiterio com seus sapatos sujos de lama. No céu, na manhã seguinte, as nuvens voltariam a circular brancas e brilhantes. Na redação do jornal, talvez, alguem se lembrasse dele, talvez. As crianças entoariam canticos de Natal; o homem de negocios falaria na bolsa de touros e de finanças. Que importava tudo aquilo!
Gustavo Adolfo passeia com Julia numa avenida do céu. Os anjos espiam e procuram ouvir o dialogo dos enamorados. Finalmente, pôde abraçar Julia pela cintura e apoiar a cabeça no seu seio. Ficaram mirando-se, distante do olvidio, entre as maravilhosas folhas verdes dos bosques do céu. Perderam-se entre as árvores e até nós chega apenas a voz do poeta, que diz à sua amada:
- "Que é poesia? - dize enquanto cravas na minha pupila tua pupila azul.
- "Que é poesia? E tua ainda me perguntas? Poesia... és tu!"


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