EPOPÉIA DO SERTÃO, TORRE DE BABEL OU MANUAL DE SATANISMO?


Publicado na Folha de S.Paulo - sábado, 30 de março de 1991


Mario Vargas Llosa

Guimarães Rosa nasceu em 1908 em Minas Gerais. Após fazer estudos de medicina, se instalou numa pequena cidade do sertão, e se engajou como médico voluntário durante as guerras civis que ensanguentaram o Brasil dos anos 30, depois abandonou a medicina para abraçar a carreira diplomática. Foi embaixador do Brasil na Alemanha, na França e na Colômbia, antes de ser responsável pelo serviço de fronteiras do Ministério do Exterior de seu país. Mas detrás destes poucos e ternos dados biográficos, esconde-se uma personalidade estranha, enigmática.
Sofrendo de uma alergia toda faulkneriana às entrevistas, Guimarães Rosa tinha o hábito de escapar, não sem várias palavras de amigável ironia, dos jornalistas e dos curiosos. Eu o conheci brevemente em Nova York, em 1966, durante uma reunião do Pen Club. De uma elegância um pouco espalhafatosa (cada dia com gravatas-borboleta diferentes, sapatos brilhantes como espelhos, ternos bem ajustados), este gentleman de cabelos grisalhos, com um jeito chapliniano de andar e apetite feroz, tinha sempre o sorriso nos lábios e fazia desviar toda conversa literária para considerações zombeteiras sobre a chuva e o tempo.
Era difícil de adivinhar que, por trás desta aparência bonachona e simples, se escondia uma personalidade plural. Porque Guimarães Rosa, escritor, médico e diplomata, também teve tempo de ser um erudito, especialista em geografia, esoterismo e botânica, e, segundo Luis Harss (1), um grande linguista e filólogo, que não apenas conhecia o português e as principais línguas européias, como o alemão, o francês, o inglês, e lia o italiano, o sueco, o servo-croata e o russo, mas tinha estudado a gramática e a sintaxe da maior parte das outras línguas: húngaro, malaio, persa, chinês, japonês, hindi.
Sua obra literária compreende poucos volumes: um livro de poemas, várias coletâneas de contos - "Sagarana", 1946; "Corpo de Baile", 1956; "Primeiras Estórias", 1962; "Tutaméia (Terceiras Estórias)", 1967; "Estas Estórias", 1969; "Ave Palavra", 1970 - e um romance, "Grande Sertão: Veredas"("Diadorim"), publicado em 1956. Suas primeiras obras não tiveram quase nenhuma repercussão no Brasil; a celebridade, hoje firmemente assentada, não chegou senão com a publicação de seu romance, que a crítica brasileira saudou de imediato como uma obra-prima.
Em um ensaio célebre, W. H. Auden diz que o valor literário de um livro pode ser mensurado pelo número de leituras diferentes que ele permite fazer. Maravilhoso exemplo desta observação, livro tão enigmático e múltiplo quanto seu autor, "Grande Sertão: Veredas" é na verdade a soma de várias obras de natureza muito diferente.
Uma leitura rápida, inocente, que se debruçasse unicamente sobre a cascata de episódios que compõem o argumento romanesco e saltasse alegremente os obstáculos e as dificuldades estilísticas, não reteria senão a esplêndida epopéia de costumes se desenrolando no sertão, uma ação elaborada na observação rigorosa das leis do romance: drama, exotismo, movimento, suspense, natureza indomável, tipos insinuantes e brutais.
O ex-jagunço Riobaldo Tatarana, que se tornou rico proprietário de terras depois de uma existência selvagem, evoca diante de um ouvinte desconhecido sua vida perigosa de comparsa, tenente e chefe de bandoleiros nos áridos desertos de Minas Gerais no fim do último século, e ressuscita com nostalgia os combates, os rigores, as proezas, as alegrias, os temores que formaram sua vida passada. Este personagem tem alguma coisa de um paladino de romance de cavalaria, de um mosqueteiro romântico e de um aventureiro de faroeste. É verdade que sua narrativa - do ponto de vista épico - é imperfeita, de uma parte, porque Riobaldo, contando-a, não pára de subverter o tempo que avança, impedindo suas palavras não em linha reta mas em ziguezague, como uma serpente, e de outra parte, porque o narrador abre parênteses, muito longos a fim de refletir sobre a existência do diabo, a amizade, o amor e a morte, e enunciar esotéricos postulados religiosos.
Mas tudo isso é de qualquer forma equilibrado pela magnificência com a qual ele se estende sobre a vida e a alma do sertão, descrevendo amorosamente suas árvores, sua flora, seus rios, sua fauna, suas cidades, suas lendas, e pelo grande afresco humano composto de rufiões temerários como João Ramiro e Zé Bebelo, ou assustadores como o perverso Hermógenes, o belo e ambíguo Diadorim, a furtiva Otacília. Reduzido à anedota, "Grande Sertão: Veredas" é um romance regionalista de grande fôlego, que não está entretanto isento de certos defeitos característicos do gênero: excesso na descrição, exagero "telúrico", abuso de dados geográficos e informações folclóricas, inverossimilhanças de certas situações.
Uma leitura mais maliciosa e mais atenta, que em lugar de se esquivar afrontasse resolutamente a complexidade linguística do romance, desvelaria que as paisagens inóspitas, a carne, o sangue, os objetos pitorescos não são nem a matéria profunda nem o conteúdo essencial de "Grande Sertão: Veredas", mas sobretudo um pretexto, uma aparência, e que a realidade expressa pelo autor não é nem material nem histórica, mas abstrata e intemporal: verbal.
Porque o "élan" impetuoso e vital no monólogo sem pausa de Riobaldo não provém da onda ininterrupta de ações, homens e coisas que ele menciona, menos ainda é dado por sua paixão homossexual, temerosa e hesitante, por Diadorim: ele se alimenta da palavra, da expressão. As águas desse rio sonoro de curso tumultuoso arrastam metáforas, substantivos, adjetivos, expressões, verbos, modelados, manobrados, organizados de tal modo que eles adquirem uma soberania e não remetem senão à realidade que eles mesmos criaram ao longo da narração de Riobaldo.
Assim como as cores de um quadro abstrato distanciam-se da realidade de onde surgiram para integrar uma realidade distinta, ou mesmo como os sons ganham numa peça de música uma natureza autônoma, neste romance a linguagem conquistou sua independência, ela basta a si mesma, é seu próprio começo e seu próprio fim. Uma tal leitura, que se deixasse submeter a um encantamento fonético, sucumbindo à magia verbal, faria aparecer o romance de Guimarães Rosa como uma torre de Babel miraculosamente suspensa acima da realidade humana, separada dela e entretanto viva, um edifício mais próximo da música (ou de uma certa poesia) que da literatura.
Romance de aventuras, labirinto verbal, estes dois aspectos de "Grande Sertão: Veredas" não se excluem e o romance não enfraquece apesar deles. O monólogo de Riobaldo trama em desordem dúvidas e inquietudes, formula várias afirmações obscuras sobre a existência do demônio com quem o narrador fez ou crê ter feito ou quer fazer crer a seu ouvinte que concluiu um pacto, ao longo de uma noite de tempestade, numa encruzilhada.
É bem possível que Riobaldo deva sua sorte - esta sorte que lhe permitiu sair são e salvo dos combates, ser um atirador de elite e o chefe do bando de jagunços, e se tornar mais tarde um respeitável fazendeiro - a seu pacto imaginário ou verídico com o Maligno. Da mesma forma, sua paixão por Diadorim não é senão uma armadilha tramada pelo Senhor das Trevas em cobrança à dívida que Riobaldo contraiu com ele. Poderíamos mesmo imaginar que não apenas Hermógenes, o traidor, é um instrumento do demônio, mas que o são também Joca Ramiro, Zé Bebelo, Quelemen, o próprio Riobaldo e todos os homens e que a realidade inteira não é senão uma projeção do inferno, o próprio inferno.
O espírito satânico de Riobaldo aparece no romance, como crivado, oculto detrás das frases, premeditadamente fora de foco: mas ele está ali e bem ali. Riobaldo (ou o autor) se contenta em lançar de tempos em tempos, em geral nos momentos nevrálgicos da ação (durante o cerco que liberar os homens de Hermogénes do bando de Zé Bebelo, quando do processo instaurado por Joca Ramiro contra este último, ou no momento em que os jagunços atravessam a cidade golpeada por uma epidemia de varíola), um signo fugidio mas indubitável, uma frase como um furtivo pé-de-bode, uma alusão ou uma lembrança flutuando feito um repentino odor de enxofre, que basta para provocar um sobressalto, um arrrepio, indicando que alguma coisa ou alguém inatingível e no entanto poderosamente real ronda à volta.
Concentrando uma atenção essencial sobre esta série de alusões obscuras, contaminadas para um esoterismo simbólico, sobre estes dois loucos que aparecem e desaparecem estrategicamente na história, tecendo uma sutil tela luciferiana que recobre a vida de Riobaldo e a travessia do sertão, "Grande Sertão: Veredas" torna-se não um romance de aventuras ou uma sinfonia, mas uma alegoria religiosa do mal, uma obra atravessada por convulsões místicas tendo um distante parentesco com a tradição do romance negro gótico inglês ("O Monge", "O Castelo de Otrante" etc.).
O verdadeiro tema de "Grande Sertão: Veredas" é a possessão diabólica, disse um crítico (2) em uma análise penetrante da obra de Guimarães Rosa, e esta afirmação é perfeitamente válida se fazemos nossa esta terceira leitura. Resulta que a realidade mais profundamente refletida no livro não é nem a conduta humana, nem a natureza, nem a palavra, mas a alma. A odisséia de Riobaldo carrega em si, implícita, como um fio secreto que a guia e a justifica, uma interrogação metafísica sobre o bem e o mal. É uma máscara detrás da qual está emboscada uma demonstração de poderes de Satã sobre a Terra e sobre o homem. A anedota, a linguagem, a estrutura do romance devem então ser consideradas como chaves cuja significação profunda desemboca numa mística. Nem obra de capa e espada, nem torre de Babel, "Grande Sertão: Veredas" seria nesta perspectiva uma catedral cheia de símbolos, uma espécie de templo maçônico.
Se tivesse que escolher entre os três romances que contêm este livro, eu me decidiria pelo primeiro: um livro de aventuras deslumbrante. Mas, naturalmente, esta escolha é toda teórica porque, de fato, estes três livros diferentes são como a santíssima trindade: um só Deus. Não é exagero dizer que com o tempo outras leituras verão a luz do dia, que outras leituras descobrirão neste livro dimensões insuspeitas. Guimarães Rosa escreveu um romance ambíguo, múltiplo, destinado a durar, dificilmente compreensível na sua totalidade, enganador e fascinante como a vida imediata, profundo e inesgotável como a própria realidade. Provavelmente, é este o mais belo elogio que pode receber um criador.

Notas:
1. Luis Harss, "Los Nuestros". Sudamericana, Buenos Aires, 1966
2. Emir Rodriguez Monegal, in "Mundo Nuevo", no 6, dezembro de 1966
Tradução de Alcino Leite Neto

O prefácio de Varga Llosa à edição francesa de 'Grande Sertão'

Ao ser relançado na França em fevereiro, "Grande Sertão: Veredas", de Guimarães Rosa, foi unanimemente saudado como um dos maiores romances deste século. A nova tradução é de Maryvonne Lapouge-Petorelli e foi lançada pela editora Albin Michel (504 págs., 160 francos), a mesma que publicou a primeira versão do livro em 64. "Diadorim" é o nome da edição francesa do livro, que tem prefácio do escritor peruano Mario Vargas Llosa. É este prefácio que o "Letras" apresenta hoje com exclusividade.
(Da Redação)

O escritor Mario Vargas Llosa nasceu em Arequipa, no Peru, em 1936. Estudou num colégio militar em Lima, experiência narrada no romance "Batismo de Fogo" (1962). Doutorou-se em Letras em Madri. Em sua obra de ficção destacam-se "Conversa na Catedral" (1970), "Tia Júlia e o Escrevinhador" (1977). Depois de realizar pesquisas sobre a Guerra dos Canudos, escreveu "A Guerra do Fim do Mundo" (1981). Em 1989 foi candidato derrotado à presidência do Peru.
(Da Redação)

Quem foi Guimarães Rosa

João Guimarães Rosa nasceu em Codisburgo (MG), em 1908. Como embaixador, representou o Brasil em Hamburgo, Bogotá, Paris e junto à Unesco. Erudito e poliglota, além de profundo conhecedor do sertão mineiro, reinventou o linguajar arcaico do sertanejo por meio de uma prosa complexa e moderna. Sua obra máxima, o romance "Grande Sertão: Veredas"(1956), é frequentemente equiparada pela crítica aos grandes épicos universais.
Escreveu também as coletâneas de contos "Sagarana" (1946), "Corpo de Baile" (1956), "Primeiras Estórias" (1962) e "Tutaméia" (1967).
Morreu em 1967, pouco depois de entrar para a Academia Brasileira de Letras. A primeira obra de Rosa, o livro de versos "Magma", nunca foi editada, embora tenha sido premiada pela Academia em 1934.
(Da Redação)

Leia o início do livro na versão em português e na versão em francês

"Grande Sertão: Veredas"

"- Nonada. Tiros que o senhor ouvir foram de briga de homem não, Deus esteja. Alvejei mira em árvore, no quintal, no baixo do córrego. Por meu acerto. Todo dia isso faço, gosto; desde mal em minha mocidade. Daí vieram me chamar. Causa dum bezerro: um bezerro branco, erroso, os olhos de nem ser - se viu -; e com máscarra de cachorro."

"Diadorim"

"Que neani. Les coups de feu que vous avez entendeus, ce n'était pas un reglement de comptes, non. Dieu merci. J'ai fait mouche sur des arbres en bas de l'aire, ou bord du ruisseau. Pour garder la main. J'aime bien, je fais ça tous les jours; presque depuis ma prime jeunesse. Là-dessus, on est venu me chercher. Rapport à un veau: un veau blanc, égaré, des yeux comme un humain - ça est vu - et avec une tête de chien."

Tradução de Maryvonne Lapouge-Pettorel

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