O NORDESTE DOS VIOLEIROS E REPENTISTAS


Publicado na Folha de S.Paulo, domingo, 30 de maio de 1982

Miguel de Almeida

Talvez a figura mais popular do Nordeste brasileiro seja o cantador, o violeiro. Por muitos anos, o repente serviu como o único meio de comunicação em terras áridas e inóspitas. Fazia as vezes de rádio, de tevê, de revistas. E não era só isso: as notícias vinham em forma de versos, rimados, ritmados, poéticos.
Ivanildo Vilanova é hoje, reconhecidamente, o maior repentista brasileiro. O mais respeitado de todos.
Mora em Campina Grande, Paraíba, capital dos repentistas, dos cantadores, a três horas de João Pessoal. Lá se reúnem alguns dos maiores violeiros brasileiros. Eles se espalham por todo o Nordeste, de ônibus, de carro, a cavalo - sempre para uma cantoria num centro comercial ou numa distante fazenda.
Ivanildo, e todos os outros violeiros, recebem cartas-convites, telefones, telegramas, todos convocando, ou propondo, alguma noitada de cantoria. Quem envia são os chamados "apologistas", espécie de animadores e entusiastas da poesia popular.
O trabalho de Ivanildo Vilanova se destaca entre as centenas de violeiros pela sutileza de seus versos, pela síntese de seus improvisos e pela variedade temática. Pertence ao grupo de cantadores que são capazes de improvisar, com conhecimento de causa, sobre qualquer tema, da História Universal à Química, da política às artes plásticas - uma raridade, de fato.
Todas as tardes, os violeiros se reúnem no Drink's Bar, boteco localizado em frente à Rádio Borborema, em Campina Grande. No bar, recebem telefonemas, recados, são convidados para cantorias, trocam impressões sobre os melhores pontos, formam duplas para uma viagem repentina, e no final da tarde participam do programa diário na Rádio Borborema. É um quadro ouvido em toda a região: comunica as cantorias do dia, os locais, as duplas, informa os violeiros que estão com a agenda livre e, de quebra, coloca ao vivo alguns repentes. No dia em que conversei com Ivanildo, não houve o programa. O único violão havia desaparecido da rádio...

"Cantoria não dá nada, nem voto"

Folha - Por que Campina Grande é hoje a capital dos repentistas?
Ivanildo - Porque em 1974 nós fizemos um congresso de violeiros, reunindo os melhores repentistas do Nordeste. Até então, os congressos que aconteciam não chegavam a chamar a atenção. Conseguimos então mostrar ao público inclusive cantadores ótimos, e totalmente desconhecidos. Nos anos seguintes, o congresso passou não só a revelar novos talentos, como a mostrar a criação de novos gêneros: como o Brasil Caboclo, por exemplo.
Folha - Mas o congresso ainda não foi deturpado?
Ivanildo - Mais ou menos. Mas eu já não participo da organização, sou apenas um cantador que se apresenta na competição. Acontece que se faz política em cima da cultura. Todos encampam: núcleo de pesquisas, não-sei-o-quê linguístico, vira negócio, dá empregos para universitários, estágios - e cantoria não dá nada, nem voto. Então não há interesse em manter o congresso. Os violeiros, assim, também não atendem à poesia oficial, nem ao lado eleitoreiro. Há o lado comercial, ainda. Centenas de pessoas, hoje, fazem congressos de violeiros pelo Nordeste. Só para ganharem dinheiro. Eu mesmo me neguei a aceitar o patrocínio oferecido pela Souza Cruz. Queriam que se chamasse Congresso Arizona de Violeiros.
Folha - Como você reage quando chamam o repente de anacrônico?
Ivanildo - Não admito, apenas. As pessoas estão mal acostumadas. Querem ver um artista com 400 quilos de equipamento, com aquela parafernália. Quando vêem um sujeito que só canta com a viola, que não tem voz privilegiada, pobre em melodia, estranham. Não percebem que a força do cantador é a palavra. As pessoas preferem o barulho. Existe um preconceito em relação ao cantador. Tem muita gente fazendo menos e que anda indo até para academia, se imortalizando... Se o cantador utilizasse outro tipo de expressão, como o soneto, Ave Maria, seria um sucesso.
Folha - Qual é a importância do violeiro no Nordeste?
Ivanildo - Ele é o principal veículo, a principal manifestação de folclore, como querem dizer... O repente tem tudo: boa poesia, ritmo, rima, bom humor, romantismo, tudo.
Folha - No Sul, teimam em mostrar o repente como desafio.
Ivanildo - Isso é engraçado. Desafio é logo o primeiro verso dum violeiro para o outro, quando o convoca para a cantoria. Mas desafio é somente um dos muitos gêneros do repente. Eu, particularmente, o detesto. Acho uma besteira, porque é muito pobre. A não ser quando é o inverso, um desafio pra falar bem do sujeito. No repente, o violeiro tem de pegar a deixa do outro, se preocupar com a rima, a métrica, o bom português. Aí ele irrita os outros. O repente não confunde "tu" com vós". Ele não assassina a língua. Pelo pouco que faça já é muito.
Folha - Como você se tornou repentista?
Ivanildo - Bem, ninguém vira repentista. É coisa herdada. Meu pai era repentista, isso é coisa que acontece em 99 por cento dos casos. Não se aprende, é coisa de hereditariedade, herança. Caso contrário, todos os outros irmãos também aprenderiam - o que não acontece.
Folha - E o outro um por cento, como aparece?
Ivanildo - Eles surgem em lugares onde a verve do povo é muito acentuada, onde as pessoas gostam em excesso do repente. Que acaba sendo coisa de toda a comunidade.
Folha - O mesmo acontece com os apologistas?
Ivanildo - Exato. Os apologistas, que são pessoas que nos levam de um canto a outro, passam essa função de pai pra filho. Hoje eu canto para gente que é filho dum antigo apologista, para o qual o meu pai cantou, anos atrás. Também é herança, algo herdado.
Folha - Vocês, violeiros, vivem tendo problemas com apropriações indébitas, não?
Ivanildo - Apropriação indébita? Ora, isso eu chamo de roubo. E não é só pessoal da MPB de elite, mas todos, até do bolerão: o Reginaldo Rossi copiou um mourão todinho e não deu crédito. O Fagner pegou a letra duma canção de fogo e nada disse. Os versos: "Eu sou igual ao deserto/aonde ninguém quer viver/mais triste do que eu/ninguém quer ser." Estes versos estão na página 33 duma canção de fogo. Ele, o Fagner, roubou tanto o Patativa do Assaré, que teve de aproveitar o homem. Pegou aqueles versos - "eu venho desde menino/desde muito pequenininho/cumprindo belo destino/eu nasci pra ser vaqueiro - que são do Patativa. Gilberto Gil, idem. Pegou os versos de Domingos da Fonseca - "Falar de nobreza e cor/é um grande orgulho seu/morra eu e morra o pobre/se enterra o rico e eu/que depois ninguém descobre/o pó do rico do meu." Isso é de Domingos da Fonseca. E aconteceu agora com Zé Ramalho. Essa música que a Amelinha canta - "Mulher nova e carinhosa..." - é de Otacílio Batista. Não, de Otacílio e Zé Ramalho. Zé fez apenas o arranjo, não a melodia. A música já existia - eu mesmo já a gravei duas vezes. Não acho que Otacílio devesse dar a parceria. Ora, quer gravar, grave. Isso me deixa revoltado. E muito.
Folha - E o interesse acadêmico que a cultura nordestina vem despertando?
Ivanildo - Esse interesse só atrapalhou. Para os folhetistas, que eles preferem chamar de cordelista, foi péssimo. Depois que as universidades se interessaram por eles não surgiu nenhum grande talento. Antes eles editavam suas obras. Depois, com esse interesse, começaram a ser editados pela Prefeitura, por fundações. E terminaram se acomodando.
Folha - E com o repente?
Ivanildo - O repentista é mais resistente. Mas eles vivem tentando. Pegam uma dupla e levam para a escola, pedem que cantem, só pra estudar. Não chegam a nenhuma conclusão. Acontece que o repente é muito complexo, o que não é o caso dos folhetistas. Essa coisa acadêmica não foi bom, não. Houve um negócio aí, não sei direito o que foi, mas que acabou, acabou.
Folha - E essa visão que mostra o violeiro na feira?
Ivanildo - Isso é folclórico. Não existe. Eu, com 25 anos de carreira, jamais cantei na feira. Feira sempre foi ponto de encontro. Nem me recordo de ter assistido a meu pai na feira. Acontecia, sim, dos violeiros ficarem pelos salões, nas barbearias, aproveitando o movimento da feira. Mas cantar lá no meio, como mostram por aí, isso eu não conheço, não...
Folha - A sua geração - você, Moacir Laurentino, Denisio Venturini, Sebastião Dias, Feitosa, mais outros - parece que faz questão de mostrar a geração anterior - Otacílio, Lourival Batista e outros - como meio ultrapassada. Por quê?
Ivanildo - Eles são cantadores em final de carreira. Não acrescentarão mais nada do que acrescentaram. Isso também irá acontecer comigo, com os da minha geração. Mas essa geração do Otacílio Batista, por quem tenho o maior respeito, não irá deixar contribuição alguma. Eles trataram apenas de se promover. Nós, não. Deixaremos mais de duas centenas de novos gêneros, novas melodias para as sextilhas, inovações e criações.

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