IGNEZ DE CASTRO


APUNHALADA OU ESTRANGULADA?

Publicado na Folha da Manhã, domingo, 2 de novembro de 1941

Neste texto foi mantida a grafia original

É sina dos que, na poeira dos tempos, conseguem, pela sua felicidade ou pela sua desgraça, brilhar um pouco mais, não descansarem na paz do túmulo, em que dormem para sempre os humildes, os ignorados. A História, essa grande mentira convencional, vai buscá-los à terra que os envolve e os absorve, e trá-los à discussão esteril, até que o grande pano do palco da vida caia sobre o último ato da tragédia de uma civilização, escondendo-a para sempre da memória dos homens.
Quantos problemas e quantas figuras não andaram assim no pensar dos escribas de velhas civilizações mortas, sem que hoje alguem com elas se preocupe, ou da sua existência tenha conhecimento! Que se sabe dessa longínqua civilização nipônica, imensamente superior quando o espírito curioso do primeiro português Fernão Mendes Pinto, rasgou o véu que a cobria aos olhos dos vaidosos ocidentais? Que sabemos nós da grandes tragédias, das grandes paixões, dos grandes dias dessa maravilhosa civilização asiática, centenas de anos esplendorosa e brilhante antes que nós, ramos do fronde latino começássemos a receber sol, a receber luz? Nada, ou quasi nada. Foram civilizações que nasceram e morreram, obedecendo à inevitável lei da vida. Entre elas e a nossa há os abismos insondaveis do tempo, tão grandes como os que nos hão de separar das civilizações futuras. Nessa hora, ninguem curará de muitas - da maioria - das nossas preocupações históricas porque elas serão nada em frente da formidavel extensão da vida humana. Enquanto, porem, vamos sendo personagens de fundo, nesta cena admiravel da civilização moderna, é justo que nos preocupemos com as figuras que, no primeiro plano, conseguiram focar a atenção dos homens.
Na história medieval da península ibérica avulta, como um dos acontecimentos mais sensacionais, o crime político de que resultou a morte da fidalga da Galiza D. Ignez de Castro dama da comitiva de D. Constança Manuel, princesa espanhola que veio a casar com o rei português Pedro I. Sobre o cruel assassinato tem caido verdadeiras cataratas de tinta. Aquele "colo de garça", a doce Ignez, vítima imbele dum terrivel conflito político, não escapou à bisbilhotice dos homens, que lhe desvendaram a vida nos seus mais íntimos e mais sagrados recônditos, e trouxeram para a luz da discussão as suas dores e os seus desejos; o seu coração de mãe e o seu coração de amante. Este julgou-a a mais inocente vítima do mais forte amor; aquele uma sensual impúdica, ambiciosa e cruel. Os poetas vestiram-na de deusa; os críticos despiram-na como a uma cortesã. Ou lhe transformaram as lágrimas em pérolas; ou fizeram dos beijos castos cruéis perversidades. Para uns foi o cândido lírio que das terras galaicas, veiu a Portugal, a murchar às mãos brutais de brutos matadores; para outros, a companheira desleal que aguardou, por detrás das pesadas tapeçarias, o momento propício para o assalto do tálamo real. E espiolharam-se arquivos poeirentos; descobriram-se terriveis taras ancestrais; fizeram-se falar enigmáticas figuras do passado; elaborou-se o processo com todas as complicadas peças de um rigoroso julgamento histórico, em que, afinal, a vítima sacrificada é que veiu a sentar-se no banco dos réus.
Parecia que desde as estâncias do s "Lusíadas" e o teatro português e espanhol até às mais recentes publicações de eruditos e de artistas, nada mais havia a acrescentar no estudo de terrivel tragédia. Puro engano. Depois de tudo se esmiuçar, desde a causa do crime até à crueldade do castigo, desde a atenuante do patriotismo, que protege os matadores, até à responsabilidade ou irresponsabilidade de Affonso IV; desde a hora do crime até ao local da execução, um pormenor parece ter ficado de pé, sem dúvida dos mais importantes do acontecimento; ainda se não sabe, ao certo, como foi morta Ignez de Castro; se apunhalada, como, em versos de ouro, descreve o Poeta; se estrangulada pelas mãos pesadas dos ministros do rei.
Donde surgiu essa dúvida? Do estudo crítico do monumento que guarda, no mosteiro de Alcobaça, os restos preciosos da "mísera e mesquinha". Quer o túmulo de D. Ignez, quer o de D. Pedro, dois exemplares curiosos de arte gótica, estão ornamentados com figuras, dum acentuado estilo românico, com que se nos representam cênas da vida dos dois amantes e do crime que pôs termo àquele grande amor. Em uma belíssima rosácea que ocupa uma face do túmulo de D. Pedro aparecem os dois amantes em atitudes carinhosas com os filhos. Nos dois túmulos contam-se centenas dessas pequeninas figuras, algumas delas vilmente maculada pela brutalidade dos soldados franceses, quando de uma das invasões das tropas napoleônicas. No mesmo túmulo de D. Pedro acha-se representada a cena da sua morte, o que leva a crer o ter-se completado o monumento depois do seu falecimento. Entre as cenas vividas, por essas pequenas e delicadas figuras, está a da morte de D. Ignez e a do castigo dos cruéis matadores.
Foi às atitudes dessas como figurinhas de Tanagra, enchendo as quatro faces dos explêndidos monumentos tumulares, que a crítica foi buscar base para afirmar que Ignez de Castro foi estrangulada e não apunhalada. A tradição segundo a composição poética de Garcia de Rezende, bem perto dos acontecimentos, e ainda a que veiu até Camões dá o crime como praticado com o aço fino das espadas dos ministros cruéis:

Arrancam das espadas de aço fino
Os que por bom tal feito alí apregoam.
Contra uma dama, ó peitos carniceiros
Feros vos mostrais, e cavaleiros?

Segundo os estudos feitos "sur place" por vários críticos de autoridade, nas cenas reproduzidas nos monumentos, rememorando o crime, não há apunhalamento, mas estrangulamento. Dado que a maior parte do trabalho tenha sido feito, como é verossimil, ainda em vida de D. Pedro, como aceitar que o apaixonado monarca tivesse permitido esse erro gravíssimo, essa inverdade flagrante? A tradição valerá por ventura, mais que o documento vivo que são as imagens dos túmulos? Não terá o estrangulamento uma base fundamentada no motivo de evitar os gritos que a infeliz, naturalmente, levantaria ao receber tão injusta paga à sua dedicação? Sabe-se - dí-lo a tradição, pelo menos - que Affonso IV, depois duma grande luta, na sua conciência, entre as razões de Estado, que os ministros lhe apontavam e a sua piedade de pai e de avô, se afastara desencorajado deixando assim cobardemente, aos ministros algozes a liberdade de agir, impulsionados pelo seu ódio e pela sua ambição. O rei devia andar por perto. Os sagazes políticos, manhosos e previdentes como todos os fanáticos da política, não quereriam que aos ouvidos reais chegassem os gritos que poderiam motivar um último gesto de piedade e de perdão. Daí o estrangulamento rápido e decisivo.
Há ainda um pormenor interessante, um subsídio científico, que merece não se por à margem: o da decomposição do cadaver que não foi tão rápida como aconteceria aos corpos mortos a ferro. A morte por estrangulamento decompõe o cadaver com menos rapidez. Não vale apontar aquí as razões do caso, que são, aliás, do conhecimento geral. D. Pedro andava caçando pelo norte. Mediaram alguns dias, antes que ele corresse a Coimbra a providenciar sobre os cuidados a prestar ao cadaver da amante, para que um dia fosse possivel sentá-la ao seu lado, no trono que seria seu por direito.
Como quer que seja, o problema, embora em nada amplie a hediondez do gesto dos homens cruéis, merecia ser resolvido para completar a tragédia e dar-lhe o tom preciso. A crítica já o tratou, mas sem assentar definitivamente numa solução clara, que aliás não nos parece difícil, considerando que o material, com que se procura fundamentar o estrangulamento, está ainda bem patente nos belíssimos túmulos de Alcobaça.
O problema é de tentar, não a nós que estamos longe, mas aos que bem perto do local dos acontecimentos e dos monumentos e arquivos, poderiam por a claro pormenor de tão alto valor na reconstituição do nefando atentado. A trágica morte da linha fidalga galega é o mais belo e mais grandioso drama de amor real que atravessa a história medieval da nação portuguesa. Não foi preciso que o Poeta Máximo o rememorasse em estrofes de ouro; já antes outros lhe teciam grinaldas de piedade. Os versos da Garcia de Rezende não são inferiores, em inspiração, às estâncias do III canto dos "Lusíadas". A dolorosa tragédia do "colo de garça" tem enchido páginas belíssimas dos mais geniais artistas do mundo latino, e o teatro, a pintura, a estatuária, consagraram-lhe obras de alto mérito. Ignez de Castro e o seu sacrifício amoroso estão na galeria das grandes dores humanas, e a figura encantadora dessa criatura formosa e desgraçada é um dos tipos universais da lenda do belo feminino. E para que não se estiolasse na torre de marfim dos eleitos da Arte a sua lenda popularizou-se, encheu-se dessa teia leve de fantasia popular que a não deixará morrer.


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