É sina dos que, na poeira dos tempos, conseguem, pela sua
felicidade ou pela sua desgraça, brilhar um pouco mais, não
descansarem na paz do túmulo, em que dormem para sempre os
humildes, os ignorados. A História, essa grande mentira convencional,
vai buscá-los à terra que os envolve e os absorve,
e trá-los à discussão esteril, até que
o grande pano do palco da vida caia sobre o último ato da
tragédia de uma civilização, escondendo-a para
sempre da memória dos homens.
Quantos problemas e quantas figuras não andaram assim no
pensar dos escribas de velhas civilizações mortas,
sem que hoje alguem com elas se preocupe, ou da sua existência
tenha conhecimento! Que se sabe dessa longínqua civilização
nipônica, imensamente superior quando o espírito curioso
do primeiro português Fernão Mendes Pinto, rasgou o
véu que a cobria aos olhos dos vaidosos ocidentais? Que sabemos
nós da grandes tragédias, das grandes paixões,
dos grandes dias dessa maravilhosa civilização asiática,
centenas de anos esplendorosa e brilhante antes que nós,
ramos do fronde latino começássemos a receber sol,
a receber luz? Nada, ou quasi nada. Foram civilizações
que nasceram e morreram, obedecendo à inevitável lei
da vida. Entre elas e a nossa há os abismos insondaveis do
tempo, tão grandes como os que nos hão de separar
das civilizações futuras. Nessa hora, ninguem curará
de muitas - da maioria - das nossas preocupações históricas
porque elas serão nada em frente da formidavel extensão
da vida humana. Enquanto, porem, vamos sendo personagens de fundo,
nesta cena admiravel da civilização moderna, é
justo que nos preocupemos com as figuras que, no primeiro plano,
conseguiram focar a atenção dos homens.
Na história medieval da península ibérica avulta,
como um dos acontecimentos mais sensacionais, o crime político
de que resultou a morte da fidalga da Galiza D. Ignez de Castro
dama da comitiva de D. Constança Manuel, princesa espanhola
que veio a casar com o rei português Pedro I. Sobre o cruel
assassinato tem caido verdadeiras cataratas de tinta. Aquele "colo
de garça", a doce Ignez, vítima imbele dum terrivel
conflito político, não escapou à bisbilhotice
dos homens, que lhe desvendaram a vida nos seus mais íntimos
e mais sagrados recônditos, e trouxeram para a luz da discussão
as suas dores e os seus desejos; o seu coração de
mãe e o seu coração de amante. Este julgou-a
a mais inocente vítima do mais forte amor; aquele uma sensual
impúdica, ambiciosa e cruel. Os poetas vestiram-na de deusa;
os críticos despiram-na como a uma cortesã. Ou lhe
transformaram as lágrimas em pérolas; ou fizeram dos
beijos castos cruéis perversidades. Para uns foi o cândido
lírio que das terras galaicas, veiu a Portugal, a murchar
às mãos brutais de brutos matadores; para outros,
a companheira desleal que aguardou, por detrás das pesadas
tapeçarias, o momento propício para o assalto do tálamo
real. E espiolharam-se arquivos poeirentos; descobriram-se terriveis
taras ancestrais; fizeram-se falar enigmáticas figuras do
passado; elaborou-se o processo com todas as complicadas peças
de um rigoroso julgamento histórico, em que, afinal, a vítima
sacrificada é que veiu a sentar-se no banco dos réus.
Parecia que desde as estâncias do s "Lusíadas"
e o teatro português e espanhol até às mais
recentes publicações de eruditos e de artistas, nada
mais havia a acrescentar no estudo de terrivel tragédia.
Puro engano. Depois de tudo se esmiuçar, desde a causa do
crime até à crueldade do castigo, desde a atenuante
do patriotismo, que protege os matadores, até à responsabilidade
ou irresponsabilidade de Affonso IV; desde a hora do crime até
ao local da execução, um pormenor parece ter ficado
de pé, sem dúvida dos mais importantes do acontecimento;
ainda se não sabe, ao certo, como foi morta Ignez de Castro;
se apunhalada, como, em versos de ouro, descreve o Poeta; se estrangulada
pelas mãos pesadas dos ministros do rei.
Donde surgiu essa dúvida? Do estudo crítico do monumento
que guarda, no mosteiro de Alcobaça, os restos preciosos
da "mísera e mesquinha". Quer o túmulo de
D. Ignez, quer o de D. Pedro, dois exemplares curiosos de arte gótica,
estão ornamentados com figuras, dum acentuado estilo românico,
com que se nos representam cênas da vida dos dois amantes
e do crime que pôs termo àquele grande amor. Em uma
belíssima rosácea que ocupa uma face do túmulo
de D. Pedro aparecem os dois amantes em atitudes carinhosas com
os filhos. Nos dois túmulos contam-se centenas dessas pequeninas
figuras, algumas delas vilmente maculada pela brutalidade dos soldados
franceses, quando de uma das invasões das tropas napoleônicas.
No mesmo túmulo de D. Pedro acha-se representada a cena da
sua morte, o que leva a crer o ter-se completado o monumento depois
do seu falecimento. Entre as cenas vividas, por essas pequenas e
delicadas figuras, está a da morte de D. Ignez e a do castigo
dos cruéis matadores.
Foi às atitudes dessas como figurinhas de Tanagra, enchendo
as quatro faces dos explêndidos monumentos tumulares, que
a crítica foi buscar base para afirmar que Ignez de Castro
foi estrangulada e não apunhalada. A tradição
segundo a composição poética de Garcia de Rezende,
bem perto dos acontecimentos, e ainda a que veiu até Camões
dá o crime como praticado com o aço fino das espadas
dos ministros cruéis:
Arrancam das espadas de aço fino
Os que por bom tal feito alí apregoam.
Contra uma dama, ó peitos carniceiros
Feros vos mostrais, e cavaleiros?
Segundo os estudos feitos "sur place" por vários
críticos de autoridade, nas cenas reproduzidas nos monumentos,
rememorando o crime, não há apunhalamento, mas estrangulamento.
Dado que a maior parte do trabalho tenha sido feito, como é
verossimil, ainda em vida de D. Pedro, como aceitar que o apaixonado
monarca tivesse permitido esse erro gravíssimo, essa inverdade
flagrante? A tradição valerá por ventura, mais
que o documento vivo que são as imagens dos túmulos?
Não terá o estrangulamento uma base fundamentada no
motivo de evitar os gritos que a infeliz, naturalmente, levantaria
ao receber tão injusta paga à sua dedicação?
Sabe-se - dí-lo a tradição, pelo menos - que
Affonso IV, depois duma grande luta, na sua conciência, entre
as razões de Estado, que os ministros lhe apontavam e a sua
piedade de pai e de avô, se afastara desencorajado deixando
assim cobardemente, aos ministros algozes a liberdade de agir, impulsionados
pelo seu ódio e pela sua ambição. O rei devia
andar por perto. Os sagazes políticos, manhosos e previdentes
como todos os fanáticos da política, não quereriam
que aos ouvidos reais chegassem os gritos que poderiam motivar um
último gesto de piedade e de perdão. Daí o
estrangulamento rápido e decisivo.
Há ainda um pormenor interessante, um subsídio científico,
que merece não se por à margem: o da decomposição
do cadaver que não foi tão rápida como aconteceria
aos corpos mortos a ferro. A morte por estrangulamento decompõe
o cadaver com menos rapidez. Não vale apontar aquí
as razões do caso, que são, aliás, do conhecimento
geral. D. Pedro andava caçando pelo norte. Mediaram alguns
dias, antes que ele corresse a Coimbra a providenciar sobre os cuidados
a prestar ao cadaver da amante, para que um dia fosse possivel sentá-la
ao seu lado, no trono que seria seu por direito.
Como quer que seja, o problema, embora em nada amplie a hediondez
do gesto dos homens cruéis, merecia ser resolvido para completar
a tragédia e dar-lhe o tom preciso. A crítica já
o tratou, mas sem assentar definitivamente numa solução
clara, que aliás não nos parece difícil, considerando
que o material, com que se procura fundamentar o estrangulamento,
está ainda bem patente nos belíssimos túmulos
de Alcobaça.
O problema é de tentar, não a nós que estamos
longe, mas aos que bem perto do local dos acontecimentos e dos monumentos
e arquivos, poderiam por a claro pormenor de tão alto valor
na reconstituição do nefando atentado. A trágica
morte da linha fidalga galega é o mais belo e mais grandioso
drama de amor real que atravessa a história medieval da nação
portuguesa. Não foi preciso que o Poeta Máximo o rememorasse
em estrofes de ouro; já antes outros lhe teciam grinaldas
de piedade. Os versos da Garcia de Rezende não são
inferiores, em inspiração, às estâncias
do III canto dos "Lusíadas". A dolorosa tragédia
do "colo de garça" tem enchido páginas belíssimas
dos mais geniais artistas do mundo latino, e o teatro, a pintura,
a estatuária, consagraram-lhe obras de alto mérito.
Ignez de Castro e o seu sacrifício amoroso estão na
galeria das grandes dores humanas, e a figura encantadora dessa
criatura formosa e desgraçada é um dos tipos universais
da lenda do belo feminino. E para que não se estiolasse na
torre de marfim dos eleitos da Arte a sua lenda popularizou-se,
encheu-se dessa teia leve de fantasia popular que a não deixará
morrer.
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