SENHORAS E SENHORES: ERA UMA VEZ O CIRCO


Publicado no Folha de S. Paulo, terça-feira, 2 de fevereiro de 1971

Neste texto foi mantida a grafia original


Mil e setecentos metros acima do nível do mar e em meio ao silêncio dos pinheiros e da floresta da serra que leva a Campos do Jordão, um circo em retalhos vive com lirismo e teimosia seus últimos dias. É o Circo Manhambai, que existe há 17 anos.
"Todo mundo se admira que a gente esteja aqui na beira do caminho de São Bento do Sapucaí", diz orgulhoso Walter Rodrigues, dono do circo. "Não é brincadeira, todas essas 600 curvas para chegar aqui, com duas famílias de cinco adultos e quatro crianças, só as duas menores que não trabalham, o resto tudo tem uma função".
"Todo mundo se admira", repete êle. "A gente aqui no meio do mato, o circo tão pobre que nem lugar seguro tem para sentar, só nós de artistas, mais ninguém, a não ser os de radio que de vez em quando a gente contrata e, quase sempre, levam quase tudo o que se ganha. Mas é a melhor praça do mundo, com todo esse povo que vem, de calça branca e chapéu de palha, pra ver a gente. E eles dão risada porque não têm mais de que rir e ficam alegres porque, afinal, alguém pensou em lhes trazer distração".
"É realmente a melhor praça que já tivemos", intervem Maria Isabel, a mulher das caricaturas e de Walter, o dono do circo, o homem que comeu fogo por muitos anos nos vários circos onde trabalhou. "E continua comendo", graceja a mulher, "apesar dos Cr$ 4 mil que já ganhamos neste pinheiral. Até estamos pensando em comprar um novo pano e um alto-falante para melhorar os espetáculos e a vida de todos".
A mulher sorri mostrando os pacotes de dinheiro guardados dentro do vestido, enquanto Rosangela, de 10 anos e sua filha adotiva, equilibra-se de cabeça sobre três pequenas latas muito sujas. Walter Rodrigues, porém, parece não ver o pouco publico, as fantasias rotas de seus artistas, o pano do circo em retalhos, as cadeiras velhas e quebradas, as arquibancadas feitas em madeira tão fraca e antiga que até dá medo apoiar-se nelas, quanto mais sentar. O dono do circo, 37 anos, filho de um contra-regra de teatro do Rio, parece imerso num sonho fantástico: "Êste numero de Rosangela é inédito no País. Não há quem o faça com tanta perfeição e facilidade. A menina, como todo o meu pessoal, tem muito talento para a arte. Nós queremos fazer um bom circo. Eu exijo: não há nada no mundo tão bom como ficar, à noite, no meio desta serra, pensando nas coisas novas que vou treinar com meus artistas. Êste povo merece o melhor!"
Walter Rodrigues não sorri nenhuma vez. "Meu circo começou quando, aos 20 anos, fui empregado por Maria Isabel para comer fogo. Na época, ela era dona do Circo Brasil, que fez muito sucesso. Fiquei dois dias de empregado, depois arrendei o circo, mas o arrendamento durou uma semana. Acabamos gostando um do outro, namoramos, noivamos e um mês depois eu era o dono do circo e da dona também".
O homem conversa com simplicidade: "Foi tudo direitinho, embora Maria já tivesse sido casada e tivesse um filho de três anos. Agora ele é Lambreta, o palhaço".
"É, pois é, diz Maria Isabel. Meu marido era da Policia Militar do Espírito Santo. Aliás, toda a minha família sempre foi gente muito culta. Só eu que nasci para o circo e, ao que parece, vou morrer com ele".
"E que vida existe fora dele?, pergunta o comedor de fogo quase que para si mesmo. "Aqui a gente trabalha três vezes por semana, ganha de Cr$ 40,00 a 50,00 por noite, às vezes nem isso, mas, afinal, alguma coisa temos para dizer e dizemos. Não é à toa que já comemos broto de bambu com angu dias e dias a fio. É melhor, muito melhor, viver a vida que se gosta, na liberdade, sob o sol e sob a lua, do que ficar trancado por aí, faturando muito e morrendo mais a cada minuto".
"É, é melhor ficar "mambenbando", concorda Maria Isabel apalpando com prazer os dois pacotes de dinheiro guardados dentro do vestido.
No picadeiro, Lambretinha, de dois anos, neto do casal, faz piruetas. O pequeno publico aplaude sem entusiasmo exigindo em côro o início dos dramas da noite.
Lá fora, sob a luz de um lampião, um grande cartaz anuncia o espetáculo: Não percam: hoje, sensacional apresentação teatral dupla: "A Casa Fantasma" e "O Morto que não Morreu".



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