Mil e setecentos metros acima do nível do mar e em meio ao
silêncio dos pinheiros e da floresta da serra que leva a Campos
do Jordão, um circo em retalhos vive com lirismo e teimosia
seus últimos dias. É o Circo Manhambai, que existe
há 17 anos.
"Todo mundo se admira que a gente esteja aqui na beira do caminho
de São Bento do Sapucaí", diz orgulhoso Walter
Rodrigues, dono do circo. "Não é brincadeira,
todas essas 600 curvas para chegar aqui, com duas famílias
de cinco adultos e quatro crianças, só as duas menores
que não trabalham, o resto tudo tem uma função".
"Todo mundo se admira", repete êle. "A gente
aqui no meio do mato, o circo tão pobre que nem lugar seguro
tem para sentar, só nós de artistas, mais ninguém,
a não ser os de radio que de vez em quando a gente contrata
e, quase sempre, levam quase tudo o que se ganha. Mas é a
melhor praça do mundo, com todo esse povo que vem, de calça
branca e chapéu de palha, pra ver a gente. E eles dão
risada porque não têm mais de que rir e ficam alegres
porque, afinal, alguém pensou em lhes trazer distração".
"É realmente a melhor praça que já tivemos",
intervem Maria Isabel, a mulher das caricaturas e de Walter, o dono
do circo, o homem que comeu fogo por muitos anos nos vários
circos onde trabalhou. "E continua comendo", graceja a
mulher, "apesar dos Cr$ 4 mil que já ganhamos neste
pinheiral. Até estamos pensando em comprar um novo pano e
um alto-falante para melhorar os espetáculos e a vida de
todos".
A mulher sorri mostrando os pacotes de dinheiro guardados dentro
do vestido, enquanto Rosangela, de 10 anos e sua filha adotiva,
equilibra-se de cabeça sobre três pequenas latas muito
sujas. Walter Rodrigues, porém, parece não ver o pouco
publico, as fantasias rotas de seus artistas, o pano do circo em
retalhos, as cadeiras velhas e quebradas, as arquibancadas feitas
em madeira tão fraca e antiga que até dá medo
apoiar-se nelas, quanto mais sentar. O dono do circo, 37 anos, filho
de um contra-regra de teatro do Rio, parece imerso num sonho fantástico:
"Êste numero de Rosangela é inédito no
País. Não há quem o faça com tanta perfeição
e facilidade. A menina, como todo o meu pessoal, tem muito talento
para a arte. Nós queremos fazer um bom circo. Eu exijo: não
há nada no mundo tão bom como ficar, à noite,
no meio desta serra, pensando nas coisas novas que vou treinar com
meus artistas. Êste povo merece o melhor!"
Walter Rodrigues não sorri nenhuma vez. "Meu circo começou
quando, aos 20 anos, fui empregado por Maria Isabel para comer fogo.
Na época, ela era dona do Circo Brasil, que fez muito sucesso.
Fiquei dois dias de empregado, depois arrendei o circo, mas o arrendamento
durou uma semana. Acabamos gostando um do outro, namoramos, noivamos
e um mês depois eu era o dono do circo e da dona também".
O homem conversa com simplicidade: "Foi tudo direitinho, embora
Maria já tivesse sido casada e tivesse um filho de três
anos. Agora ele é Lambreta, o palhaço".
"É, pois é, diz Maria Isabel. Meu marido era
da Policia Militar do Espírito Santo. Aliás, toda
a minha família sempre foi gente muito culta. Só eu
que nasci para o circo e, ao que parece, vou morrer com ele".
"E que vida existe fora dele?, pergunta o comedor de fogo quase
que para si mesmo. "Aqui a gente trabalha três vezes
por semana, ganha de Cr$ 40,00 a 50,00 por noite, às vezes
nem isso, mas, afinal, alguma coisa temos para dizer e dizemos.
Não é à toa que já comemos broto de
bambu com angu dias e dias a fio. É melhor, muito melhor,
viver a vida que se gosta, na liberdade, sob o sol e sob a lua,
do que ficar trancado por aí, faturando muito e morrendo
mais a cada minuto".
"É, é melhor ficar "mambenbando", concorda
Maria Isabel apalpando com prazer os dois pacotes de dinheiro guardados
dentro do vestido.
No picadeiro, Lambretinha, de dois anos, neto do casal, faz piruetas.
O pequeno publico aplaude sem entusiasmo exigindo em côro
o início dos dramas da noite.
Lá fora, sob a luz de um lampião, um grande cartaz
anuncia o espetáculo: Não percam: hoje, sensacional
apresentação teatral dupla: "A Casa Fantasma"
e "O Morto que não Morreu".
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