RICARDO BONALUME NETO
A Bíblia
é um livro fascinante. Ou melhor, são vários
livros, escritos por vários autores. Meu primeiro contato
mais demorado com esses livros foi na adolescência. Fiquei
surpreso principalmente com o Antigo Testamento. Como tem sexo e
violência! Toda hora tem alguém "coabitando"
com alguém, ou interessado na coisa. E guerras? Os pobres
dos filisteus viraram palavrão de tanto brigarem com o povo
dito eleito, os hebreus.
Lendo a respeito, descobri que só no século passado
é que surgiu a noção de que os autores dos
livros teriam sido inspirados divinamente pelo Espírito Santo
-ou seja, o próprio Deus seria o autor dos livros.
Teria essa sido uma reação aos estudos que começavam
a ser feitos da Bíblia. Ali existe, por exemplo, muita informação
de valor histórico e literário.
Pensando nisso é que um editor britânico lançou
várias edições com prefácios escritos
por um cientista, um bispo e vários escritores -e boa parte
desse pessoal é constituída de ateus assumidos.
A iniciativa serve para mostrar que a Bíblia pode ser lida
e interpretada de vários modos. E que o mais perigoso deles
é o modo fundamentalista, que acha que aquilo é a
palavra de Deus e pronto, temos que seguir literalmente tudo que
está ali.
O próprio bispo de Edimburgo, na Escócia, em um dos
prefácios, deu um "alerta sadio" sobre os perigos
da interpretação literal dos textos.
O curioso é que se tratam de livros escritos por autores
da antiguidade, que revelam de modo fascinante as influências
que os judeus e cristãos tiveram de suas épocas e
de povos vizinhos. Ou seja: a Bíblia e seus autores foram
mais flexíveis do que os fanáticos fundamentalistas
que a lêem hoje.
Por exemplo, a data 25 de dezembro era o nascimento do deus persa
Mitra, da luz e da sabedoria. E foi tomada de empréstimo
pelos cristãos para o aniversário de Jesus. Outras
influências na Bíblia e nas duas religiões vêm
de babilônios, sumérios, do zoroastrismo e das filosofias
gregas.
Uma maneira de mostrar esses riscos é usar ironia. É
o caso do americano Jacques Musy, que mora perto de Tampa, na Flórida,
e cuja caixa postal é 666 (o "número da besta",
associado ao demônio). Uma das coisas que mais o irrita nos
EUA é a obtusidade dos cristãos fundamentalistas,
que acham que tudo o que a Bíblia diz está 100% correto.
Um exemplo: o caso do israelita que Moisés mandou ser morto
a pedradas por ter coletado gravetos no sabá (dia de descanso
judaico). Cometer tal pecado hoje, ironiza Musy, pode ter graves
consequências para a humanidade. Ele recomenda aos pastores
que informem isso a suas congregações. "Não
deixe os Estados Unidos se tornarem novas Sodomas e Gomorras!",
diz Musy aos fundamentalistas. "Parem de coletar gravetos nos
sábados!"
O fanatismo não é coisa só de cristãos.
A foto de um indonésio muçulmano arrastando um cristão
linchado, reproduzida pela Folha recentemente, é um bom aviso
dos riscos dessa atitude.
Por que isso prospera? Por que o misticismo e a religião
têm um lado extremamente reconfortante para muita gente. É
aquilo que os marxistas chamavam de "ópio do povo"
(não sei se ainda chamam, já que um reduto marxista
hoje é a Igreja Católica). Ópio não
no sentido mais óbvio de uma droga que aliena as pessoas
da realidade, mas sim no sentido de um bálsamo, de algo que
ajuda a curar. Os opiáceos são antes de tudo anestesias.
Havendo essa necessidade, notadamente nas camadas mais pobres -as
que têm em geral mais problemas com saúde, trabalho,
lazer, dinheiro etc., é natural que surjam pessoas interessadas
em explorar isso, sejam eles padres carismáticos, pastores
evangélicos com programas de TV ou frades e freis amigos
de Fidel Castro.
|