TOME CUIDADO COM A BÍBLIA


Publicado na Folha de S. Paulo, domingo, 29 de novembro de 1998

RICARDO BONALUME NETO

A Bíblia é um livro fascinante. Ou melhor, são vários livros, escritos por vários autores. Meu primeiro contato mais demorado com esses livros foi na adolescência. Fiquei surpreso principalmente com o Antigo Testamento. Como tem sexo e violência! Toda hora tem alguém "coabitando" com alguém, ou interessado na coisa. E guerras? Os pobres dos filisteus viraram palavrão de tanto brigarem com o povo dito eleito, os hebreus.
Lendo a respeito, descobri que só no século passado é que surgiu a noção de que os autores dos livros teriam sido inspirados divinamente pelo Espírito Santo -ou seja, o próprio Deus seria o autor dos livros.
Teria essa sido uma reação aos estudos que começavam a ser feitos da Bíblia. Ali existe, por exemplo, muita informação de valor histórico e literário.
Pensando nisso é que um editor britânico lançou várias edições com prefácios escritos por um cientista, um bispo e vários escritores -e boa parte desse pessoal é constituída de ateus assumidos.
A iniciativa serve para mostrar que a Bíblia pode ser lida e interpretada de vários modos. E que o mais perigoso deles é o modo fundamentalista, que acha que aquilo é a palavra de Deus e pronto, temos que seguir literalmente tudo que está ali.
O próprio bispo de Edimburgo, na Escócia, em um dos prefácios, deu um "alerta sadio" sobre os perigos da interpretação literal dos textos.
O curioso é que se tratam de livros escritos por autores da antiguidade, que revelam de modo fascinante as influências que os judeus e cristãos tiveram de suas épocas e de povos vizinhos. Ou seja: a Bíblia e seus autores foram mais flexíveis do que os fanáticos fundamentalistas que a lêem hoje.
Por exemplo, a data 25 de dezembro era o nascimento do deus persa Mitra, da luz e da sabedoria. E foi tomada de empréstimo pelos cristãos para o aniversário de Jesus. Outras influências na Bíblia e nas duas religiões vêm de babilônios, sumérios, do zoroastrismo e das filosofias gregas.
Uma maneira de mostrar esses riscos é usar ironia. É o caso do americano Jacques Musy, que mora perto de Tampa, na Flórida, e cuja caixa postal é 666 (o "número da besta", associado ao demônio). Uma das coisas que mais o irrita nos EUA é a obtusidade dos cristãos fundamentalistas, que acham que tudo o que a Bíblia diz está 100% correto.
Um exemplo: o caso do israelita que Moisés mandou ser morto a pedradas por ter coletado gravetos no sabá (dia de descanso judaico). Cometer tal pecado hoje, ironiza Musy, pode ter graves consequências para a humanidade. Ele recomenda aos pastores que informem isso a suas congregações. "Não deixe os Estados Unidos se tornarem novas Sodomas e Gomorras!", diz Musy aos fundamentalistas. "Parem de coletar gravetos nos sábados!"
O fanatismo não é coisa só de cristãos. A foto de um indonésio muçulmano arrastando um cristão linchado, reproduzida pela Folha recentemente, é um bom aviso dos riscos dessa atitude.
Por que isso prospera? Por que o misticismo e a religião têm um lado extremamente reconfortante para muita gente. É aquilo que os marxistas chamavam de "ópio do povo" (não sei se ainda chamam, já que um reduto marxista hoje é a Igreja Católica). Ópio não no sentido mais óbvio de uma droga que aliena as pessoas da realidade, mas sim no sentido de um bálsamo, de algo que ajuda a curar. Os opiáceos são antes de tudo anestesias.
Havendo essa necessidade, notadamente nas camadas mais pobres -as que têm em geral mais problemas com saúde, trabalho, lazer, dinheiro etc., é natural que surjam pessoas interessadas em explorar isso, sejam eles padres carismáticos, pastores evangélicos com programas de TV ou frades e freis amigos de Fidel Castro.


© Copyright Empresa Folha da Manhã Ltda. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Empresa Folha da Manhã Ltda.