Hontem,
à noite, no Municipal, os "futuristas" de São
Paulo, escondidos a um canto, mordiam os beiços. O maestro
Alessio, mettido numa casaca de ultima hora, gosava o exito da peça.
Ao seu lado, o dr. Cardim piscava através dos oculos pretos.
O Naso coçava as barbas do Mello Nogueira. O Polilla, disfarçado
em "dança do fogo", tomava absyntho em secco.
Chegou-se ao bando o sr. Helios e, passando a mão pelos
cabellos louros, exclamou:
- Eu não disse? Vocês leram o meu artigo? Pois é
isso mesmo: a Arte nacional está seguindo maravilhosamente
a sua trajectoria de luz. É o apogeu. Sim, senhores, estamos
no apogeu!
Tornou a passar a mão pela testa, acertou o pionce-nez
e todo a banhar-se num sorriso de beatitude:
- Poeta é propheta. Poeta não se engana. Estes
applausos, esta oração, este delírio, eu
já os tinha previsto no ensaio de quinta-feira. Poeta não
se engana...
Mas havia na róda um perverso. E esse perverso interrompeu-o:
- Realmente. Poeta não se engana. São as Tortolas
Valencias que os enganam...
Foi o primeiro caso singular daquella noite de glorias
*
A Camara Municipal compareceu em peso. Lá estavam, espalhados
pela platéa, os desconhecidos illustres. Eram os unicos
pontos de interrogação no meio de todas as interjecções
que resoavam pelo theatro. O poeta que despiu a "fada"
murmurava ao ouvido do collega que descobriu rimas toantes no
Cantico dos Canticos:
- Amigo, estou inspirado... Sinto-me inspirado...
O outro, que a muito custo se continha para não soltar
um "bestia" num dos intervallos, parece que não
percebeu a inspiração do companheiro.
- Estou inspirado... Lá vae verso... E declamou em voz
baixa:
"Mario ou Maria, que importa?
Minh'alma está presa à tua.
Vês esta porta? É a porta
por onde surgiste nu'a...
Foi esse o segundo caso singular daquella noite de flôres.
*
O bibliothecario da rainha tambem compareceu, acompanhado dos
seus catalagos. Mas as suas vibrações mentaes ameaçavam
perturbar a festa. Percebia-se que o ambiente era pequeno de mais,
excessivamente pequeno para conter os planos que lhe borbulhavam
no cerebro.
O Mondego, quando o viu apparecer na platéa, perdeu o
compasso. A batuta cahiu das mãos do maestro Alessio e
os oculos do dr. Cardim mudaram de côr. Havia vibrações
por todos os cantos...
Foi esse o terceiro caso singular daquella noite de sonho.
*
O major Magricella lá estava firme. Firme no seu "smocking"
de emergencia. Como presidente honorario daquelle Irmandade que
nós bem sabemos, a exa. não poderia faltar. E, de
facto, não faltou. O diabo é que, num dos intervallos,
enquanto os grupos commentavam a delicadeza da partitura, o major
quiz mostrar que aos seus ouvidos afinados não havia escapado
nenhuma subtileza do formoso episodio lyrico. Foi mesmo o diabo.
O major approximou-se do dr. Luciano Gualberto e, com os olhos
molhados pelas lagrimas da satisfação, commentou:
- Quanto mais se vive mais se apprende, não é verdade,
doutor? Quando é que eu havia de imaginar que o nosso amigo
doutor Cardim escrevia tão bem "italiano"? E
a pronuncia do Mondego? O damnado fala italiano perfeitamente!
Sim, senhor, gostei muito da letra! Entendi tudo... Palavra de
honra, tive saudades da minha bella Italia! Oh! a Italia! O doutor
já esteve na Italia?
O dr. Luciano Gualberto achou realmente que o major tinha entendido
tudo...
Foi esse o quarto caso singular daquella noite de triumpho.