UM CASO SINGULAR E OUTROS CASOS SINGULARES

Publicado na Folha de S.Paulo, sexta-feira, 29 de janeiro de 1926

Neste texto foi mantida a grafia original

Hontem, à noite, no Municipal, os "futuristas" de São Paulo, escondidos a um canto, mordiam os beiços. O maestro Alessio, mettido numa casaca de ultima hora, gosava o exito da peça. Ao seu lado, o dr. Cardim piscava através dos oculos pretos. O Naso coçava as barbas do Mello Nogueira. O Polilla, disfarçado em "dança do fogo", tomava absyntho em secco.

Chegou-se ao bando o sr. Helios e, passando a mão pelos cabellos louros, exclamou:

- Eu não disse? Vocês leram o meu artigo? Pois é isso mesmo: a Arte nacional está seguindo maravilhosamente a sua trajectoria de luz. É o apogeu. Sim, senhores, estamos no apogeu!

Tornou a passar a mão pela testa, acertou o pionce-nez e todo a banhar-se num sorriso de beatitude:

- Poeta é propheta. Poeta não se engana. Estes applausos, esta oração, este delírio, eu já os tinha previsto no ensaio de quinta-feira. Poeta não se engana...

Mas havia na róda um perverso. E esse perverso interrompeu-o:

- Realmente. Poeta não se engana. São as Tortolas Valencias que os enganam...

Foi o primeiro caso singular daquella noite de glorias


*

A Camara Municipal compareceu em peso. Lá estavam, espalhados pela platéa, os desconhecidos illustres. Eram os unicos pontos de interrogação no meio de todas as interjecções que resoavam pelo theatro. O poeta que despiu a "fada" murmurava ao ouvido do collega que descobriu rimas toantes no Cantico dos Canticos:

- Amigo, estou inspirado... Sinto-me inspirado...

O outro, que a muito custo se continha para não soltar um "bestia" num dos intervallos, parece que não percebeu a inspiração do companheiro.

- Estou inspirado... Lá vae verso... E declamou em voz baixa:

"Mario ou Maria, que importa?

Minh'alma está presa à tua.

Vês esta porta? É a porta

por onde surgiste nu'a...

Foi esse o segundo caso singular daquella noite de flôres.


*

O bibliothecario da rainha tambem compareceu, acompanhado dos seus catalagos. Mas as suas vibrações mentaes ameaçavam perturbar a festa. Percebia-se que o ambiente era pequeno de mais, excessivamente pequeno para conter os planos que lhe borbulhavam no cerebro.

O Mondego, quando o viu apparecer na platéa, perdeu o compasso. A batuta cahiu das mãos do maestro Alessio e os oculos do dr. Cardim mudaram de côr. Havia vibrações por todos os cantos...

Foi esse o terceiro caso singular daquella noite de sonho.


*

O major Magricella lá estava firme. Firme no seu "smocking" de emergencia. Como presidente honorario daquelle Irmandade que nós bem sabemos, a exa. não poderia faltar. E, de facto, não faltou. O diabo é que, num dos intervallos, enquanto os grupos commentavam a delicadeza da partitura, o major quiz mostrar que aos seus ouvidos afinados não havia escapado nenhuma subtileza do formoso episodio lyrico. Foi mesmo o diabo. O major approximou-se do dr. Luciano Gualberto e, com os olhos molhados pelas lagrimas da satisfação, commentou:

- Quanto mais se vive mais se apprende, não é verdade, doutor? Quando é que eu havia de imaginar que o nosso amigo doutor Cardim escrevia tão bem "italiano"? E a pronuncia do Mondego? O damnado fala italiano perfeitamente! Sim, senhor, gostei muito da letra! Entendi tudo... Palavra de honra, tive saudades da minha bella Italia! Oh! a Italia! O doutor já esteve na Italia?

O dr. Luciano Gualberto achou realmente que o major tinha entendido tudo...

Foi esse o quarto caso singular daquella noite de triumpho.


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