O FOLCLORE NEGRO NA LITERATURA NORTE-AMERICANA


Publicado na Folha da Manhã, domingo, 28 de setembro de 1947

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A idéia do negro assustadiço, patologicamente supersticioso, já deu varias vezes a volta ao mundo, nas asas da literatura. O cinema, onde raramente aparece um afro-americano que não faça palhaçadas, acaricie a "patinha de coelho" ou se espante com fantasmas, encarregou-se de recolher essa patranha.
No entanto, a brilhante tradição revolucionaria dos filhos de Cam - afirma o sr. Nestor R. Ortiz Oderigo, no interessante artigo sobre o folclore negro na literatura americana, que publicou na revista argentina Nosostros - deram ao mundo figuras admiraveis como as de Toussaint Louverture e Falucho, Maceo e Denmark Vessey, Nat Turner e Barcala, Ansina e John Brown.
Muitos historiadores se empenharam em afirmar que, durante a guerra civil norte-americana, os negros não lutaram nos exercitos do norte, ficando, apenas, a cuidar das casas, enquanto os senhores iam à frente de batalha. Sobram, porem, documentos comprobatorios do contrario.
As danças, a musica, a poesia e as narrações que, por tradição, correm de boca em boca, exerceram poderosa atração sobre a critica e o publico do mundo inteiro, notando-se na densa trama da literatura norte-americana diversos traços do folclore afroamericano.
Na Cabana do Pai Tomás, no capítulo intitulado "Uma noite na cabana de Pai Tomás", aparecem versos do cancioneiro de Alabama, do escritor Carl Cramer; os dramas de acerbo conteudo social, como Dont't You Want to be Free?, de Langston Hughes, por exemplo, em cujas paginas deslizam melancolicos blues, estão todos saturados de criações de arte negras.
Referindo-se aos escritores jovens, principalmente os regionalistas e nativistas, diz Ortiz Oderigo que se nota neles a salutar tendencia de dar aos negros o lugar que merecem. A maioria dos que se dedicam a esses generos conhece perfeitamente o material de que se serve.
Entre os primeiros escritores que trataram do assunto, está Dorothy Scarborough, que publicou, há dois decenios, a novela In the Land of Cotton, que tem como cenario as plantações de algodão do Estado de Texas. A autora, que conhece a fundo as canções de trabalho dos negros humildes, pois as estudou com carinho em suas numerosas viagens, teceu com elas, em seu livro, uma trama vivida, que se entrelaça ao enredo, dando à sua obra um carater de indiscutivel conteudo humano.
Ao grupo de escritores provenientes da Carolina do Sul pertencia o novelista e dramaturgo DuBose Heyward, falecido em 1940, cujos livros refletem a vida dos negros "gullah""(termo derivado de Angola, segundo o etnologo A. E. González) em seu "ghetto" da cidade de Charleston, denominado "Catfish Row". Porgy (1925) e Mamba's Daughters (1927), que constituiram extraordinario exito nos palcos de Nova York, se desenvolvem dessa moldura.
Pertence, também, ao grupo da Carolina do Sul, a novelista Julia Peterkin, dona da plantação Lang Syne, nesse Estado norte-americano. Seus livros refletem os velhos conceitos que sobre a raça negra tinham os senhores do sul. Não obstante, revelam rica fonte de ensinamentos sobre os curiosos rituais e tradições praticados pelos escravos e seus descendentes. A autora desenvolve com notavel desembaraço o tema folclorico. Em Black April (1927) descreve, com riqueza de material, as superstições do homem do campo, suas interpretações dos fenomenos fisicos, seus pressentimentos, distanciando-se da tecnica novelistica para aproximar-se do denso estudo do folclore. A sua obra mais importante, Scarlet Sister Mary, apareceu em 1928, sendo-lhe outorgado, pela sua realização, o premio "Pulitzer" de literatura desse ano.
Roark Bradford tambem se dedicou profundamente ao folclore em seus contos, novelas e obras teatrais. Embora pertença às ultimas gerações de escritores, encontra em seu ponto de vista de lastro dos autores sulistas do seculo passado, para os quais o negro constituia objeto decorativo. Sem chegar ao plano reacionario de Octavius Roy Cohen, Bradford adultera o material folclorico, deturpa-o, como os menestréis desvirtuavam as canções afro-americanas. Em This Side of Jordan, Bradford narrar a vida dos negros nos campos que o imenso Mississippi banha e fertiliza, rio que é, ao mesmo tempo, o Nilo e o Jordão dos homens de côr. Há, nesse livro, grande abundancia de "folk songs". Os "revival meetings" - os batismos nas calidas aguas do rio descoberto por De Soto - são descritos com grande riqueza de pormenores.
Em seu estudo, Ortiz Oderigo transcreve a seguinte canção, que aqui reproduzimos para os leitores brasileiros:
Não tenho dinheiro,
Não tenho blusa,
Não tenho "overalls",
Mas agradeço a Deus,
Porque possuo uns empoeirados,
Empoeirados, empoeirados sapatos!
Quanto às tendências do autor de This Side of Jordan, podemos ter delas uma idéia através dos versos por ele escolhidos, pois o livro não inclui nenhum dos cantos de protesto ante o trato dos brancos e as injustiças sofridas pela gente de côr. Pertence ao mesmo autor a serie de narrações intitulada Ol'man Adam an'his Chillun, concebidas sobre cenas do Antigo Testamento nas quais a inclusão de "Spirituals" se justifica plenamente.
O dramaturgo Marc Connelly inspirou-se nesses contos de Bradfort para conceber a sua farsa Green Pastures, muito popular nos Estados Unidos, e da qual se fez uma versão cinematografica. Nesse trabalho, os argumentos se misturam, de maneira indissoluvel, com o material e os cantos folcloricos, constituindo um todo sobremaneira homogeneo.
Zora Neale Hurston é o nome de outra cultura do folclore. O notável etnologo Franz Boas, da Universidade de Columbia, considera-na como a melhor entre os escritores que reconheceram em seus livros as tradições, os cantos, as danças e as superstições do afroamericano do campo. Prenhe de conteudo folclorico é a sua novela intitulada Jonah's Gourd Vine, em que narra a vida de um humilde negro de Alabama.
Embora em plano diferente do de Zora Neale Hurston, a escritora Edna Ferber tambem contribuiu para a divulgação do tema literario folclorico, utilizando em seu melodrama Show Boat, de maneira discreta, cantos dos remadores do Mississippi, derivados dos "cantos de remar" dos africanos.
Na parte final do seu artigo, Ortiz Oderigo refere-se ao interesse de Eugene O'Neill, o maior dramaturgo norte-americano, pelo tema negro folclorico, do qual se utilizou, pela primeira vez, em 1918, em sua peça The Moon of the aribees que trata dos afroantilhanos, iniciando com essa obra o seu "ciclo negro". Lançou, em seguida, Emperor Jones (1920), conhecida no Brasil, tambem, através da versão cinematografica de Paul Robeson. Dreamy Kid (1921) e All God's Chillun Got Wings encerram esse ciclo.
Dentre as figuras folcloricas da gente de côr dos Estados Unidos que entraram na novela, na narração, no palco, na poesia - diz Oderigo - a que despertou maior interesse entre os escritores foi John Henry, figura legendaria, recortada pela fantasia inesgotavel do povo, mas com inquestionavel fundo humano e real, personificada por um negro operario da construção do tunel Big Bend, em West Virginia. John Henry viveu há mais de meio seculo, sendo admirado pelos trabalhadores negros dos Estados Unidos pela sua capacidade de trabalho, pois "podia trabalhar por seis homens", e pela sua tragica morte, lamentadissima, ocorrida na defesa dos seus afazeres. Seu perfil, refletiu-se na poesia, na musica, no teatro e na novela folcloricos norte-americanos.
Terminando o seu estudo sobre o tema folclorico afro-americano, Ortiz Oderigo menciona diversos poetas raciais, entre os quais Langston Hughes, Sterling Brown, Alexander e James Weldon Johnson, e, entre os brancos que se dedicam à poesia negra, Carl Sandburg, DuBose Heyward Clemente Wood e E. L. Adams.

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