PÁSCOA, HISTÓRIA E UTOPIAS


Publicado na Folha de S.Paulo, sexta-feira, 28 de março de 1997

FREI BETTO

A Páscoa é a principal festa das igrejas cristãs: celebra a ressurreição de Jesus. Em sua origem, é a grande festa judaica que comemora a libertação dos hebreus da escravidão no Egito, em 1250 a.C., sob o reinado do faraó Ramsés 2º.
Curioso é que, ao contrário das religiões persas e mesopotâmicas, babilônicas e gregas, o judaísmo e o cristianismo não celebram mitos, e sim fatos históricos.
É histórico que Moisés conduziu o processo que levou os hebreus a se livrarem do jugo em que viviam. E, malgrado as obras de Feuerbach e Renan e, posteriormente, o rasteiro ateísmo stalinista, hoje nenhum historiador de respeito nega a existência histórica de Jesus, atestada por historiadores não-cristãos que lhe foram contemporâneos, como Flávio Josefo e Tácito.
Aliás, há mais documentos científicos sobre a existência de Jesus que sobre a de Sócrates, que só conhecemos via Platão. O que ultrapassa a historiografia é a crença em sua ressurreição, que pertence à esfera da(o) a(fé)(to).
Os evangelhos registram a presença de Jesus em Jerusalém por ocasião das festas pascais. Foi numa delas, a do ano 30, que ele, preso por blasfêmia e subversão, recebeu a pena capital e morreu crucificado. Tinha 36 ou 37 anos de idade, pois hoje sabemos que o monge Dionísio, o Pequeno, se equivocou, no século 4º, ao calcular o início de nossa era.
A visão do tempo como processo histórico marca profundamente a nossa cultura. A Bíblia herdou-a dos persas e, assim, quebrou a circularidade grega. Três grandes pilares de nossos atuais paradigmas o demonstram: Jesus, Marx e Freud, todos os três judeus.
Para Jesus, a nossa felicidade (salvação) decide-se por nossa capacidade de amar no terreno da história. O reino de Deus não é algo ''lá em cima'', mas sim lá na frente, no futuro, em que a história atinge a sua plenitude _num mundo livre de opressões_ e também o seu limite, pela irrupção da presença divina entre nós.
Marx analisa o capitalismo a partir das formações sociais que o precedem e vislumbra, após a sua superação, um futuro de partilha e harmonia. Freud, nas mesmas águas da historicidade, vai buscar no inconsciente, marcado por nossas experiências primevas, a explicação para o nosso atual perfil psicológico, tendo em vista o resgate da saúde mental.
Ora, um dos efeitos mais nefastos do neoliberalismo está condensado no famoso vaticínio de Fukuyama: ''A história acabou''. É claro que o nipo-americano, funcionário do Departamento de Estado, sabe muito bem que as empresas transnacionais não pensam em deter seu ganancioso processo de acumulação do capital e, portanto, sua história de cobiça e espoliação. O que pretende sugerir é que nós, pobres mortais, devemos, como diria Dante hoje, abandonar à porta do mercado toda esperança.
Na lata de lixo da história, que recolhe os escombros do Muro de Berlim, devemos jogar também nossos ideais, utopias e sonhos de um mundo diferente e, conformados, sujeitar-nos ao império da livre concorrência e da globalização, o novo nome do antigo colonialismo, pois faz do planeta uma colônia sob a hegemonia de meia dúzia de nações ricas acolitadas pelo FMI e pelo Banco Mundial.
A Páscoa cristã sinaliza que, malgrado tanta miséria e desesperança, em Cristo temos a certeza da vitória da justiça sobre a injustiça e da vida sobre a morte.
Aceitar que ''a história acabou'' é cair no engodo da eternização do presente: a malhação que nos promete eterna juventude; o apego aos bens como se fôssemos imortais; a acumulação como se levássemos terras e tesouros para o além-túmulo; as drogas como sucedâneo diabólico de uma geração que não aprendeu a sonhar com Jesus, Gandhi, Luther King e Che Guevara.
É isto que a Igreja celebra na Páscoa: Cristo vive, e sua vitória sobre os poderes deste mundo é a garantia de que os sonhos brotados do coração e da fé são semente de ''um novo céu e uma nova terra'', como prenuncia o Apocalipse. E, como diz a canção, um sonho que muitos sonham se faz realidade.

Carlos Alberto Libânio Christo (frei Betto), 52, é frade dominicano e escritor, autor de ''Cotidiano & Mistério'' (editora Olho D'Água), entre outros livros.


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