OS AMORES DE JULIO VERNE


Publicado na Folha da Manhã, quinta-feira, 28 de março de 1929

Neste texto foi mantida a grafia original

Julio Verne, o potente creador de tantas ilhas fluctuantes e artificiaes, cujas novellas e prodigiosas antevisões contribuiram tão efficazmente para que certos homens de sciencia puzessem ao serviço da humanidade alguns dos innumeraveis recursos que a natureza nos offerece, possue debaixo de suas apparencias de homem frivolo e leviano um forte temperamento romantico.

Em sua época estudantil, Julio Verne se enamora perdidamente de sua prima Carolina, jovem formosa que, apenas sahida do collegio, consegue reunir em torno de sua pessoa uma infinidade de pretendentes, attrahidos não só por sua belleza como pelo pingue dote que seus paes lhe concederam. No meio da embriaguez de seus exitos mundanos a bella Carolina não presta maiores attenções ás declarações que em prosa e verso lhe dirige seu primo, e um dia em que este, sentado ás escanchas sobre o muro exterior de suas propriedades em Nantes, lhe lia um ardente poema composto em sua honra, não pôde resistir á hilariedade da scena comica, e deu uma estrondosa gargalhada. Julio, que no fundo possuia grande timidez, sobre tudo quanto se encontrava em presença de mulheres formosas, dissimula seu enjôo e fingindo tratar-se de um incommodo, foge a implorar de seus paes lhes permittam dirigir-se a Paris, afim de proseguir em seus estudos.

Mezes mais tarde, já na capital, respondera ao convite para assistir ao casamento de sua prima, da seguinte maneira:

"Era certo! Este deploravel casamento effectuar-se-á! O dito de Eschilo viria a calhar. Prefiro, porém, dizer-lhe simplesmente: "Perdoae-lhes, senhor, elles não sabem o que fazem!" Demais, hei de me vingar. Matarei seu gato branco, na primeira occasião em que o encontre a geito".

*

Annos mais tarde, quando já começava a abrir caminho no mundo literario, volta a sentir velleidades de formar um lar. Seus paes o apresentam á senhorita Laurencie Jauner, formosa jovem de rosto fresco e palido, ornado com um belissimo par de olhos de terciofelo negro.

Dizem que possue um caracter phantastico, porém parece haver-se deixado conquistar por Verne.

O presidente da Côrte de Amiens, Javier de la Motte, dá um grande baile á phantasia, no qual se apresenta Julio Verne, trajado de "Incrivel", tornando-se assim um conquistador irresistivel, segundo declaram todas as mães das jovens casadoiras. Laurencie disfarçada de cigana o envolve em languidos olhares. Num intervallo do baile Verne junto a dois amigos, representa um "intermezzo", do qual é autor. Seus formosos versos são longamente applaudidos e agradecidos pelos bellos olhos da gitana. O feliz casal é o alvo de todos os olhares.

Repentinamente, porém, atrás dos galanteios, surge uma tirada humorista do joven autor. Laurencie acaba de confessar muito em segredo a uma de suas amigas que seu namorado, muito estabanado, lhe ferira o busto. Julio, que apanhou a phrase no ar, não poude resistir ao proprio genio brincalhão, e, inclinando-se ante a bella offendida, faz graciosa allusão a respeito. O pae de Laurencie indigna-se. A mamã enrubesce. O correcto Duverger, aproveitando-se desta desgraça, rouba Laurencie ás barbas do rival.

Os terciofelados olhos da gitana pousam tristemente sobre o rosto do poeta buffo, e este tem a impressão de que esta conquista lhe escapa das mãos.

Ao dia seguinte, o pae de Verne, enviado como amigavel intercessor, volta desconsolado:

— Meu filho, nada se póde fazer. Tua piada, sobre as baleias, foi considerada offensiva... Laurencie casar-se-a com Duverger...

Julio chora amargamente, porém só lhe fica o recurso de resignar-se e voltar á capital, cançado, moido, desilludido...

*

São passados tres annos.

Nas bodas de seu amigo Lelarge com a senhorita de Vianna, trava relações com a seihora Honorina Viana, viuva de Morel, formosa mulher de 26 annos e mãe de duas preciosas creaturas.

Com seu porte elegante, sua pelle resplandecente, seus olhos risonhos, seu caracter alegre e sua deliciosa voz de soprano ligeiro, conquista rapidamente a Julio Verne. A decisão deste é irrevogavel. Desposará Honorina. Mas, ha um inconveniente: a modicidade de seus proventos literarios não lhe permitte estabelecer uma casa, e então tratará de encarreirar sua vida por outros caminhos. Estimulado por seu futuro cunhado, solicita que o sr. Verne lhe facilite a somma necessaria para poder comprar um cargo de corretor de bolsa. Sem desfallecimentos executa durante mezes o assalto á bolsa paterna, com toda a furia de um homem que quer e lucta por amor. Argumenta com todos os methodos de um individuo que desde seu nascimento está habituado a ver os "considerando" alinhar-se methodicamente sobre o papel de officio.

Numa carta dirigida a seu pae ao fim do anno 56, Julio Verne lhe dizia: "Acho que já é tempo: não serei franco dizendo-te o contrario.

Redige o teu pedido official, meu querido pae, emprega tua mais bella letra; aquella com a qual solicitaste a mão de mamãe".

Si a carta do sr. Verne foi redigida em termos solennes, a resposta com a qual acceitava a incumbencia, não a desmerecia; mas, si os paes gostavam do estylo protocollar, o filho guardava sua independencia de redacção.

"Escrevo-te do meu quarto do hotel de Amiens, onde a temperatura faz nascer esquimaus e ursos brancos. Herminia e eu desejamos nos casar o mais depressa e o mais simplesmente possivel.

Ella possue um mobiliario muito pobre: sofá, duas poltronas, quatro cadeiras, um relogio de estufa com terciofelo vermelho e bronze. Não é o sofá que é de bronze, nem o relogio que é de terciofelo vermelho".

O casamento deverá realisar-se em Paris, e só assistirão a elle os paes e as irmãs de Verne. A seus amigos de Amiens lhes annuncia que se casará em Nantes, e os daqui que a cerimonia realisar-se-á nas Antifodas.

"Convidar amigos a uma missa de esponsaes? - escreve, - Meus cabellos se eriçam de pavor só de pensal-o. Não desejamos nenhum apparato. Minhas irmãs, para serem formosas, lhes basta apresentar-se ao natural. Depois da cerimonia iremos todos juntos almoçar num hotel qualquer a tanto por cabeça, e tudo estará acabado".

Como não podem encontrar habitações, resolvem deixar as crianças em casa dos avós e irem passar a lua de mel no quarto de solteiro do sexto andar.

Sem embargo, esse navegante que vislumbra ao longe a Ilha dos Prazeres, se estremece pensando que suas illusões podem desvanecer-se como uma bolha de sabão. Na ultima carta de homem livre que envia a seu pae, inserta esta phrase cheia da secreta inquietação que nunca o abandonará no transcurso de sua dilatada existencia.

"Alcanço a felicidade! A menos que algo a venha desmantellar".

A 10 de Janeiro de 1857 poude ver-se o mais feliz dos mortaes casar-se na maior simplicidade e alegria com a senhora Honorina Ana Hebe Freyson de Viana de Morel:

"Eu era o noivo — escreve Julio Verne. — Vestia um terno branco e luvas negras! Não comprehendi nem entendi nada, porém paguei a todo o mundo: empregados do registro civil, bedel, sacristão, cura. Chamavam: o noivo era eu! Graças a Deus, só havia 12 espectadores".

Julio deu seu coração por toda a vida á sua Honorina, que enchia o abysmo tão completamente quanto difficil o parecia ser. Em seus primeiros passeios, o jovem casal correu ao museu do Louvre, e ante a Venus de Milo, Julio fez a Honorina esta solenne declaração:

— Eis aqui a unica mulher da qual poderá ter ciumes!

E manteve sua palavra, pois até sua morte, ocorrida a 24 de março de 1905, foi o companheiro fiel e amantissimo que jurara ser.


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