NÓS E O CASTELO
Leia
o primeiro capítulo do romance "O Castelo", escrito
pelo tcheco Franz Kafka.
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Publicado
na Folha de S.Paulo, domingo, 28 de fevereiro de 1999
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FRANZ KAFKA
Era tarde da noite quando K. chegou. A aldeia jazia na neve profunda.
Da encosta não se via nada, névoa e escuridão
a cercavam, nem mesmo o clarão mais fraco indicava o grande
castelo. K. permaneceu longo tempo sobre a ponte de madeira que levava
da estrada à aldeia e ergueu o olhar para o aparente vazio.
Depois caminhou à procura de um lugar para passar a noite;
no albergue as pessoas ainda estavam acordadas, o dono não
tinha quarto para alugar mas, extremamente surpreso e perturbado com
o hóspede retardatário, propôs deixá-lo
dormir sobre um saco de palha na sala e K. concordou. Alguns camponeses
ainda estavam sentados tomando cerveja mas ele não queria conversar
com ninguém, pegou pessoalmente o saco de palha no sótão
e deitou-se perto da estufa. Estava quente ali, os camponeses quietos,
ele os examinou ainda um pouco com os olhos cansados e em seguida
adormeceu.
Mas pouco tempo depois já foi despertado. Um jovem, em trajes
de cidade, rosto de ator, olhos estreitos, sobrancelhas fortes, encontrava-se
ao seu lado com o dono do albergue. Os camponeses também ainda
estavam lá, alguns tinham voltado suas cadeiras para ver e
ouvir melhor. O jovem desculpou-se muito cortesmente por ter acordado
K., apresentou-se como filho do castelão e depois disse:
- Esta aldeia é propriedade do castelo, quem fica ou pernoita
aqui de certa forma fica ou pernoita no castelo. Ninguém pode
fazer isso sem permissão do Conde. Mas o senhor não
tem essa permissão, ou pelo menos não a apresentou.
K. tinha erguido a metade do corpo, alisado os cabelos para trás
com os dedos; olhou os dois de baixo para cima e disse:
- Em que aldeia eu me perdi? Então existe um castelo aqui?
- Certamente -disse o jovem devagar, enquanto aqui e ali alguém
balançava a cabeça em relação a K. - O
castelo do senhor Conde Westwest.
- E é preciso ter permissão para pernoitar? -perguntou
K. como se quisesse se convencer de que não tinha por acaso
sonhado com as recentes informações.
- É preciso ter a permissão -foi a resposta e havia
um desdém grosseiro por K. quando o jovem, com o braço
esticado, perguntou ao dono do albergue e aos fregueses: - Ou será
que não é preciso ter permissão?
- Então tenho de ir buscar a permissão -disse K. bocejando
e empurrou a coberta como se quisesse levantar-se.
- Sim, mas de quem? -perguntou o jovem.
- Do senhor Conde -disse K. - Não resta outra coisa a fazer.
- Agora, à meia-noite, buscar a permissão do senhor
Conde? -exclamou o jovem e recuou um passo.
- Isso não é possível? -perguntou K. impassível.
- Por que então me acordou?
Mas desta vez o jovem ficou fora de si.
- Isso são maneiras de vagabundo! -bradou ele. - Exijo respeito
pela autoridade do Conde. Eu o acordei para comunicar-lhe que o senhor
deve abandonar imediatamente o condado.
- Chega de comédia -disse K. em voz ostensivamente baixa, deitou-se
e puxou a coberta. - O senhor está indo um pouco longe demais,
jovem, e amanhã eu ainda volto a falar do seu comportamento.
O dono do albergue e aqueles senhores são testemunhas, se é
que preciso de testemunhas. Mas de resto deixe-me dizer-lhe que sou
o agrimensor que o Conde mandou chamar. Meus ajudantes chegam amanhã
na carruagem com os aparelhos. Eu não quis perder a oportunidade
de fazer uma caminhada pela neve, mas infelizmente me desviei algumas
vezes do caminho e por isso cheguei tão tarde. Eu sabia por
conta própria, ainda antes que o senhor me ensinasse, que era
tarde demais para me apresentar agora no castelo. Por isso também
me contentei com este pouso noturno que o senhor -dito com suavidade-
teve a indelicadeza de perturbar. Com isso estão encerradas
minhas explicações. Boa noite, senhores.
E K. voltou-se para o lado da estufa.
- Agrimensor? -ouviu ainda perguntarem com hesitação
às suas costas, depois o silêncio foi geral.
Mas o jovem recompôs-se logo e disse ao dono do albergue num
tom suficientemente abafado para soar como consideração
pelo sono de K. e alto o suficiente para ser entendido por ele:
- Vou pedir informações pelo telefone.
Como, havia também um telefone neste albergue de aldeia? Estavam
providos de excelentes instalações. Surpreendido no
caso particular, no geral K. certamente o esperava. Evidenciou-se
que o telefone estava colocado quase sobre sua cabeça, na sua
sonolência ele não o tinha visto. Se o jovem precisava
telefonar, então não podia nem com a melhor das boas
vontades poupar o sono de K., tratava-se apenas de saber se K. o deixaria
telefonar e ele decidiu que sim. Mas também não tinha
sentido algum fazer o papel de quem dormia e por isso ele voltou a
ficar deitado de costas. Viu os camponeses se reunirem timidamente
e confabularem, a chegada de um agrimensor não era pouca coisa.
A porta da cozinha se abrira, lá estava, ocupando todo o espaço,
a poderosa figura da dona do albergue, na ponta dos pés o dono
se aproximou dela para informá-la. E então começou
a conversa telefônica. O castelão estava dormindo, mas
um subcastelão, um dos subcastelões, um senhor Fritz,
atendeu. O jovem, que se apresentou como Schwarzer, contou de que
modo havia encontrado K., um homem dos seus trinta anos, bastante
esfarrapado, dormindo tranquilamente sobre um saco de palha, tendo
por travesseiro uma minúscula mochila e ao alcance da mão
um cajado cheio de nós. Naturalmente ele lhe parecera suspeito
e uma vez que o dono do albergue tinha claramente negligenciado o
dever, fora dever dele, Schwarzer, ir ao fundo da questão.
Ser acordado, ouvir o interrogatório e a ameaça -no
caso, de rigor- de expulsão do território do Conde,
tudo isso K. recebeu de má vontade, aliás, como no final
se evidenciou, talvez com razão, pois afirma ser um agrimensor
requisitado pelo senhor Conde. Naturalmente é no mínimo
dever formal averiguar essa afirmação e por isso Schwarzer
pede ao senhor Fritz que se informe na chancelaria central se realmente
um agrimensor assim é esperado e dê logo resposta pelo
telefone.
Depois houve silêncio, do outro lado Fritz se informava e aqui
se esperava a resposta, K. ficou na mesma posição, não
se virou uma só vez, não parecia nem um pouco curioso,
continuou olhando o vazio à sua frente. O relato de Schwarzer,
na sua mistura de maldade e prudência, deu-lhe uma idéia
da formação de certo modo diplomática de que
no castelo mesmo gente miúda como Schwarzer dispunha com facilidade.
E lá também não faltava zelo -a chancelaria central
tinha um serviço noturno. E manifestamente respondia bem rápido,
pois logo Fritz estava tocando. Este informe entretanto pareceu muito
breve, pois imediatamente Schwarzer bateu o fone com fúria.
- Bem que eu disse -gritou. - Nem sinal de agrimensor, um reles e
mentiroso vagabundo, provavelmente algo pior.
Por um instante K. pensou que todos, Schwarzer, camponeses, dono e
dona do albergue iriam se atirar sobre ele, para se desviar pelo menos
do primeiro assalto deslizou inteiro por baixo da coberta, aí
-esticou devagar, outra vez para fora, a cabeça-, aí
o telefone soou novamente e, conforme pareceu a K., com uma força
especial. Embora fosse improvável que dissesse de novo respeito
a K., ficaram todos paralisados e Schwarzer voltou ao aparelho. Ali
ouviu até o fim uma explicação mais longa e depois
disse em voz baixa:
- Um engano, então? Isso é bastante desagradável
para mim. O próprio chefe do escritório telefonou? Estranho,
estranho. Mas como devo agora explicar ao senhor agrimensor?
K. ficou escutando atentamente. Então o castelo o havia designado
agrimensor. Por um lado isso era desfavorável a ele, pois indicava
que no castelo se sabia tudo o que era preciso a seu respeito, as
relações de força tinham sido pesadas e aceitavam
a luta sorrindo. Mas por outro lado isso também era propício,
pois a seu ver provava que o subestimavam e que ele teria mais liberdade
do que de início podia esperar. E se acreditavam com esse seu
reconhecimento como agrimensor -do ponto de vista moral, sem dúvida
superior- conservá-lo num estado de medo contínuo, então
eles se enganavam: isso lhe dava um leve tremor, mas era tudo.
Com um sinal K. despachou Schwarzer que se aproximava timidamente,
recusou-se a passar para o quarto do dono do albergue, para o qual
o pressionavam, só aceitou dele uma bebida para dormir, da
dona do albergue uma bacia com sabão e toalha e nem precisou
exigir que a sala fosse esvaziada, pois todos foram juntos para fora
com os rostos virados, provavelmente para não serem reconhecidos
no dia seguinte, a lâmpada foi apagada e finalmente ele ficou
em paz. Dormiu profundamente até de manhã, quase sem
ser perturbado uma ou duas vezes pelos ratos que passavam fugidios
por ele.
Depois do café da manhã, que segundo informações
do dono do albergue devia ser pago pelo castelo, como aliás
todas as despesas de K., ele quis ir logo à aldeia. Mas como
o dono do albergue -com quem até então tinha falado
apenas o estritamente necessário, por conservar na memória
o seu comportamento de ontem- não parava de circular em torno
dele com uma súplica muda, ficou penalizado e mandou-o sentar-se
um instante à sua mesa.
- Ainda não conheço o Conde -disse K. - É verdade
que ele paga bem um bom trabalho? Quando alguém como eu viaja
para tão longe da mulher e do filho, quer levar para casa alguma
coisa.
--Com isso o senhor não precisa se preocupar, não se
ouve queixa de mau pagamento.
- Bem -disse K.-, não me incluo entre os tímidos e posso
dizer o que penso até para um Conde, mas naturalmente é
bem melhor entender-se em paz com os senhores.
O dono do albergue estava sentado diante de K. na beira do banco da
janela, não ousava sentar-se mais comodamente e fitava K. o
tempo todo com grandes olhos castanhos e medrosos. Primeiro ele tinha
querido impor sua presença a K. e agora a impressão
era de que preferia fugir dali. Temia ser indagado sobre o Conde?
Temia a falta de confiabilidade do "senhor" por quem ele
tomava K.? K. tinha que distrair sua atenção. Olhou
para o relógio e disse:
- Logo chegam meus ajudantes, pode abrigá-los aqui?
- Sem dúvida -disse ele. - Mas eles não vão morar
com o senhor no castelo?
Renunciava tão fácil e de bom grado aos hóspedes
e em particular a K., a quem despachava sem mais para o castelo?
- Isso ainda não é certo -disse K. - Primeiro preciso
saber que trabalho eles têm para mim. Se por exemplo eu tiver
de trabalhar aqui em baixo, será mais sensato também
morar aqui em baixo. Temo também que não me agrade a
vida lá em cima no castelo. Quero estar sempre livre.
- Você não conhece o castelo -disse em voz baixa o dono
do albergue.
- Sem dúvida -disse K. - Não se deve julgar prematuramente.
Por enquanto a única coisa que sei do castelo é que
lá eles são capazes de procurar o agrimensor certo.
Talvez ainda haja outros méritos lá.
E levantou-se para se livrar do dono do albergue que mordia inquieto
os lábios. Não era fácil conquistar a confiança
desse homem.
À saída chamou a atenção de K. um retrato
escuro, numa moldura escura, pendurado na parede. Já do seu
pouso ele o havia notado, mas da distância não tinha
distinguido os pormenores e acreditado que o retrato propriamente
dito fora removido da moldura e só se podia ver a tampa preta
da parte de trás. Mas era de fato um retrato, como agora se
evidenciava - busto de um homem de cerca de 50 anos. Conservava a
cabeça tão afundada sobre o peito que mal se via alguma
coisa dos olhos; a testa alta e pesada e o forte nariz adunco pareciam
decisivos para essa inclinação. A barba cheia, esmagada
no queixo em consequência da postura do crânio, se reerguia
em baixo. A mão esquerda estava espalmada sobre os pêlos
cerrados, mas não conseguia mais suspender a cabeça.
- Quem é? -perguntou K. - O Conde?
K., em pé diante do retrato, não se virou para dirigir
o olhar ao dono do albergue.
- Não, o castelão.
- Eles têm um belo castelão no castelo, não há
dúvida -disse K. - Pena que o filho tenha se desviado tanto.
- Não -disse o dono do albergue, puxou K. um pouco para si
e sussurrou-lhe no ouvido: - Schwarzer ontem exagerou, o pai dele
é apenas um subcastelão, e até mesmo um dos últimos.
Nesse instante, o dono do albergue pareceu a K. uma criança.
- O patife! -disse K. rindo, mas o dono do albergue não riu
com ele e disse:
- O pai dele também é poderoso.
- Ora, ora, disse K. - Você considera todo mundo poderoso. A
mim também, talvez?
- Você -disse ele, tímido mas sério-, você
eu não considero poderoso.
- Então sabe observar bem as coisas -disse K. - Digo em confiança
que de fato não sou poderoso. Consequentemente é provável
que diante dos poderosos eu não tenha menos respeito que você,
só que não sou tão honesto como você e
não é sempre que quero admitir isso.
E para consolar o dono do albergue e fazer-se mais simpático
deu-lhe um tapinha na face. Ele então sorriu um pouco. Era
realmente jovem, com o rosto macio e quase sem barba. Como tinha chegado
àquela mulher encorpada e envelhecida que se via ali ao lado,
atrás de uma janelinha, com os cotovelos distantes do corpo,
lidando na cozinha? Mas agora K. não queria insistir mais fundo
com ele, nem afugentar o sorriso afinal conquistado, por isso fez-lhe
mais um sinal para que abrisse a porta e saiu para a bela manhã
de inverno.
Agora via lá em cima o castelo nitidamente recortado no ar
claro, mais nítido por causa da neve que, amoldando-se a todas
as formas, se estendia numa camada fina depositada por toda a parte.
No alto da encosta, aliás, parecia haver muito menos neve do
que aqui na aldeia, onde K. avançava com esforço não
menor que o de ontem na estrada. Aqui a neve chegava às janelas
das choupanas e pouco acima pesava sobre o telhado baixo, mas na altura
da encosta tudo se alçava livre e leve para cima, ou ao menos
assim parecia visto de cá.
No conjunto o castelo, tal como se mostrava da distância, correspondia
às expectativas de K. Não era nem um burgo feudal nem
uma residência nova e suntuosa, mas uma extensa construção
que consistia de poucos edifícios de dois andares e de muitos
outros mais baixos estreitamente unidos entre si; se não se
soubesse que era um castelo seria possível considerá-lo
uma cidadezinha. K. viu apenas uma torre mas não era possível
discernir se pertencia a uma habitação ou a uma igreja.
Bandos de gralhas circulavam ao seu redor.
Com os olhos voltados para o castelo K. continuou andando, nada além
disso o preocupava. Mas ao se aproximar o castelo o decepcionou, na
verdade era só uma cidadezinha miserável, um aglomerado
de casas de vila, que se distinguiam apenas por serem todas talvez
de pedra, mas a pintura tinha caído havia muito tempo e a pedra
parecia se esboroar. K. lembrou-se fugazmente da sua pequena cidade
natal, em comparação com este suposto castelo ela dificilmente
ficava atrás, se K. tivesse vindo só para visitá-lo
teria sido uma pena a longa peregrinação, ele teria
agido mais sensatamente revendo o berço antigo, aonde não
ia fazia tanto tempo. E comparou mentalmente a torre da igreja da
terra natal com a torre lá em cima. Aquela se estreitando definida,
sem hesitação, reta para o alto e acabando num telhado
largo de telhas vermelhas, uma construção terrena -o
que mais podemos construir?- mas com um alvo mais elevado que o amontoado
de casas e uma expressão mais clara que a do turvo dia de trabalho.
A torre aqui em cima -a única visível-, torre de uma
moradia, como agora se via, talvez do corpo principal do castelo,
era uma construção redonda e uniforme, em parte piedosamente
coberta de hera, com janelas pequenas que agora cintilavam ao sol
-havia nisso algo alucinado- e terminando numa espécie de terraço
cujas ameias denteavam o céu azul, inseguras, irregulares,
quebradiças como se desenhadas pela mão medrosa ou negligente
de uma criança. Era como se algum morador deprimido, que por
justa razão devesse permanecer preso no cômodo mais remoto
da casa, tivesse rompido o telhado e se levantado para mostrar-se
ao mundo.
K. estacou de novo, como se imóvel tivesse mais força
de julgamento. Mas foi perturbado. Atrás da igreja da aldeia,
ao lado da qual havia parado -na verdade era apenas uma capela, ampliada
à maneira de um celeiro, para poder acolher a comunidade-,
estava a escola. Um prédio baixo e comprido, unindo curiosamente
o caráter do provisório e do muito antigo, ficava atrás
de um jardim cercado de grades, agora um campo de neve. Naquele momento
as crianças saíam com o professor. Elas o rodeavam num
denso aglomerado, todos os olhares dirigiam-se a ele, palravam sem
parar de todos os lados, K. não entendia absolutamente sua
fala rápida. O professor, um homem moço, pequeno, de
ombros estreitos, mas -sem que isso fosse ridículo- muito aprumado,
já havia captado K. com o olho, à distância; de
qualquer modo, excetuando-se o seu grupo, K. era a única pessoa
à vista. Por ser estrangeiro, K. cumprimentou primeiro, principalmente
diante de um homenzinho tão autoritário.
- Bom dia, professor -disse ele.
De um só golpe as crianças emudeceram, na certa esse
silêncio súbito devia agradar ao professor como introdução
às suas palavras.
- Está olhando o castelo? -perguntou, mais brando do que K.
havia esperado, mas num tom de quem não aprovava o que K. estava
fazendo.
- Sim -disse K. - Sou de fora, estou aqui só desde ontem à
noite.
- Não gosta do castelo? -perguntou rápido o professor.
- Como? -replicou K. um pouco desconcertado e repetiu a pergunta numa
forma mais suave: - Se gosto do castelo? Por que acha que não
gosto?
- Nenhum forasteiro gosta -disse o professor.
Para não falar nada inoportuno, K. desviou a conversa e perguntou:
- O senhor decerto conhece o Conde.
- Não -disse o professor e fez menção de ir embora.
Mas K. não cedeu e perguntou mais uma vez:
- Como, o senhor não conhece o Conde?
- Como iria conhecê-lo?- disse o professor em voz baixa e acrescentou
alto em francês: - Leve em consideração a presença
de crianças inocentes.
K. sentiu-se então no direito de perguntar:
- Poderia visitá-lo, senhor professor? Vou ficar mais tempo
aqui e já agora me sinto um pouco abandonado, não tenho
relação com os camponeses nem pertenço ao castelo.
- Não há diferença entre os camponeses e o castelo
-disse o professor.
- Pode ser -disse K. - Isso não muda em nada minha situação.
Poderia fazer-lhe uma visita?
- Moro na Rua do Cisne, na casa do açougueiro.
Na realidade isso era mais uma informação de endereço
do que um convite, no entanto K. disse:
- Muito bem, eu irei.
O professor fez um aceno de cabeça e continuou a andar com
o bando de crianças que logo começaram a gritar outra
vez. Em breve desapareceram numa ruazinha que descia abruptamente.
Mas K. estava distraído, e irritado com a conversa. Pela primeira
vez desde a chegada ele sentiu um cansaço real. O longo caminho
até aqui parecia a princípio não tê-lo
afetado -como havia vagueado tranquilo aqueles dias, passo a passo!-
mas agora mostravam-se as consequências do esforço desmedido,
sem dúvida na hora errada. Sentia-se irresistivelmente impelido
a buscar novos contatos, mas cada conhecimento novo acentuava a fadiga.
Se no estado em que se encontrava ele se obrigasse a esticar o passeio
pelo menos até a entrada do castelo teria feito mais que o
suficiente.
Assim, seguiu em frente, mas era um extenso caminho. Pois a rua em
que estava, a principal da aldeia, não levava à encosta
do castelo, apenas para perto dela e depois, como que de propósito,
fazia uma curva e, embora não se afastasse do castelo, também
não se aproximava dele. K. estava sempre esperando que ela
afinal tomasse o rumo do castelo e só porque o esperava é
que continuava a andar; evidentemente por causa do cansaço
ele hesitava em abandonar a rua, espantava-se também com a
extensão da aldeia, que não tinha fim, sem parar as
casinhas, os vidros das janelas cobertos de gelo, a neve, o vazio
de gente -finalmente ele escapou dessa rua paralisante, uma viela
estreita o acolheu, neve mais profunda ainda, era uma tarefa árdua
erguer os pés que afundavam, o suor brotava, de repente ele
parou e não pôde mais continuar.
Bem, não estava isolado, à direita e à esquerda
havia cabanas de camponeses, fez uma bola de neve e atirou-a contra
uma janela. Imediatamente abriu-se a porta -a primeira que se abria
em todo o trajeto da aldeia- e lá estava um velho camponês
de gibão de pele marrom, a cabeça inclinada para o lado,
amistoso e frágil.
- Posso entrar um pouco na sua casa? -disse K. - Estou muito cansado.
Não ouviu absolutamente o que o velho disse, aceitou agradecido
quando foi empurrada ao seu encontro uma tábua que logo o salvou
da neve e com alguns passos estava dentro de casa.
Um grande cômodo na penumbra. Quem vinha de fora a princípio
não via nada. K. cambaleou contra uma tina, a mão de
uma mulher o segurou. De um canto chegavam muitos gritos de criança.
De outro saíam rolos de fumaça e transformavam a meia-luz
em escuridão: K. parecia estar em pé no meio de nuvens.
- Ele está bêbado -disse alguém.
- Quem é o senhor? -bradou uma voz imperiosa e, sem dúvida
dirigida para o velho, disse: - Por que você o deixou entrar?
Pode-se deixar entrar tudo o que fica rondando pelas ruas?
- Sou o agrimensor do Conde -disse K., procurando desse modo justificar-se
diante da pessoa que continuava invisível.
- Ah, é o agrimensor -disse uma voz de mulher e depois seguiu-se
um silêncio total.
- Então me conhecem? -perguntou K.
- Certamente -disse a mesma voz, ainda lacônica.
O fato de que se conhecia K. parecia não recomendá-lo.
Por fim a fumaça se dissipou um pouco e K. pôde lentamente
orientar-se. Parecia ser um dia de limpeza geral. Perto da porta lavava-se
roupa. A fumaça porém vinha do canto esquerdo onde,
numa tina de madeira de um tamanho que K. ainda nunca tinha visto
-mais ou menos o de duas camas-, dois homens se banhavam na água
que soltava vapor. Mas mais surpreendente ainda, sem que se soubesse
exatamente no que consistia a surpresa, era o canto da direita. De
uma grande fresta, a única na parede dos fundos, chegava, provavelmente
do pátio, uma pálida luz de neve, que dava um brilho
como se fosse de seda ao vestido de uma mulher bem no canto, quase
deitada de cansaço numa poltrona de espaldar alto. Ela segurava
ao seio um bebê. À sua volta brincavam algumas crianças,
filhos de camponeses, como se podia ver, mas ela não parecia
pertencer ao seu meio, certamente a enfermidade e o cansaço
refinam até os camponeses.
- Sente-se -disse um dos homens, de barba cheia e além disso
um bigode sob o qual ele, ofegante, conservava a boca sempre aberta;
apontou -o que era cômico de se ver- com a mão sobre
a borda da tina para uma arca e nesse ato respingou de água
quente o rosto todo de K.
Sobre a arca já estava sentado, olhando sonolentamente para
a frente, o velho que tinha admitido K. na casa. K. estava grato por
finalmente poder sentar-se. Agora ninguém mais se preocupava
com ele. A mulher que lavava roupa na tina, loira, de uma opulência
juvenil, cantava em voz baixa enquanto trabalhava, os homens no banho
batiam com os pés e giravam o corpo, as crianças queriam
se aproximar deles, mas eram constantemente rechaçadas pelos
possantes espirros de água que também não poupavam
K., a mulher na poltrona continuava como se estivesse inanimada, não
baixava o olhar nem mesmo para a criança ao seio, mas dirigia-o
para um alvo indefinido no alto.
K. contemplou-a longamente, uma imagem bela e triste que não
se alterava, mas depois deve ter adormecido, pois quando, chamado
por uma voz alta, se sobressaltou, sua cabeça se apoiava no
ombro do velho ao lado. Os homens haviam terminado o banho -na banheira
agora agitavam-se as crianças vigiadas pela mulher loira- e
estavam vestidos diante de K. Via-se que o barbudo vociferante era
o menos importante dos dois. O outro, não mais alto que ele,
mas com muito menos barba, era um homem quieto, de pensamento lento,
uma figura larga, o rosto também largo, e conservava a cabeça
baixa.
- Senhor agrimensor -disse ele-, o senhor não pode ficar aqui.
Perdoe a indelicadeza.
- Eu não queria ficar -disse K. - Só queria descansar
um pouco. Já descansei e agora vou embora.
- O senhor provavelmente está admirado com a pouca hospitalidade
-disse o homem-, mas a hospitalidade não é costume entre
nós, não precisamos de hóspedes.
Um pouco recomposto do sono, o ouvido mais aguçado que antes,
K. alegrou-se com as palavras francas. Movia-se mais livremente, apoiando
ora aqui, ora ali, seu cajado, aproximou-se da mulher na poltrona,
era aliás o maior fisicamente no recinto.
- Sem dúvida -disse K.-, que necessidade têm de hóspedes?
Mas de vez em quando precisa-se de um, por exemplo de mim, o agrimensor.
- Isso eu não sei -disse o homem com lentidão. - Se
chamaram, então provavelmente precisam do senhor, com certeza
é uma exceção, mas nós, os pequenos, respeitamos
as regras, o senhor não pode nos levar a mal por isso.
- Não, não -disse K.-, só posso agradecer, ao
senhor e a todos aqui.
E sem que ninguém esperasse K. virou-se literalmente num salto
e ficou em pé diante da mulher. Com olhos cansados e azuis
ela fitou K., um lenço de seda transparente descia-lhe até
o meio da testa, o bebê dormia no seu seio.
- Quem é você? -perguntou K.
Com menosprezo -não estava claro se o desdém cabia a
K. ou às suas próprias palavras- ela disse:
- Uma moça do castelo.
Tudo isso tinha durado só um instante, à direita e à
esquerda de K. já se postavam os dois homens, ele foi puxado
para a porta em silêncio mas com toda a força, como se
não existisse outro meio de entendimento. Alguma coisa nisso
alegrou o velho e ele bateu palmas. Também a lavadeira riu
entre as crianças que de repente começaram a fazer barulho
como loucas.
Mas logo K. estava na rua, os homens o vigiavam da soleira da porta,
a neve caía outra vez, no entanto parecia estar um pouco mais
claro. O homem de barba cheia gritou impaciente:
- Aonde quer ir? Este lado dá para o castelo, este para a aldeia.
K. não lhe respondeu, mas para o outro, que apesar da superioridade
parecia o mais acessível, ele disse:
- Quem são vocês? A quem devo agradecer a minha estada?
- Sou o mestre-de-curtume Lasemann -foi a resposta. - Mas o senhor
não tem de agradecer a ninguém.
- Está bem -disse K. - Talvez ainda nos encontremos.
- Não creio -disse o homem.
Nesse momento o barbudo bradou com a mão erguida:
- Bom dia, Artur, bom dia, Jeremias!
K. voltou-se: então nesta aldeia ainda havia gente na rua!
Da direção do castelo vinham dois jovens de estatura
média, ambos muitos esbeltos, as roupas justas, os rostos também
muito semelhantes, a pele moreno-escura, mas nela se destacava o cavanhaque
com sua especial cor negra. Andavam com espantosa rapidez para as
condições da rua e moviam em compasso as pernas delgadas.
- O que vão fazer? -gritou o barbudo.
Só gritando era possível comunicar-se com eles, de tão
depressa e sem parar que iam.
- Negócios -responderam rindo.
- Onde?
- No albergue.
- Vou indo para lá também -gritou K. mais alto que os
outros.
Tinha um grande desejo de ser levado pelos dois; não parecia
que conhecê-los oferecesse grande vantagem, mas evidentemente
eram uma companhia boa e estimulante. Eles ouviram as palavras de
K., porém só acenaram com a cabeça e logo se
foram.
K. ainda estava no meio da neve, tinha pouca vontade de erguer o pé
para afundá-lo outra vez um pouquinho adiante; o mestre-de-curtume
e seu companheiro, satisfeitos por terem finalmente despachado K.,
recuaram para dentro de casa, devagar, através da porta apenas
entreaberta, sempre olhando para trás na direção
de K. e este ficou sozinho na neve que o envolvia.
- Ocasião para um pequeno desespero -ocorreu-lhe- se estivesse
aqui por acaso e não intencionalmente.
Abriu-se então na choupana à sua esquerda uma janela
minúscula -fechada ela parecera de um azul profundo, talvez
no reflexo da neve; era tão minúscula que, agora que
estava aberta, não se podia ver o rosto todo de quem olhava
para fora, só os olhos velhos e castanhos.
- Lá está ele -ouviu uma trêmula voz feminina
dizer.
- É o agrimensor -disse uma voz de homem.
Aí o homem foi à janela e perguntou, num tom que não
era hostil, mas certamente interessado em que na rua estivesse tudo
em ordem diante da sua casa:
- Quem está esperando?
- Um trenó que me leve embora -disse K.
- Aqui não passa trenó -disse o homem. - Não
há tráfego aqui.
- Mas este é o caminho que dá para o castelo.
- Não importa, não importa -disse o homem com uma certa
implacabilidade. - Aqui não há tráfego.
Depois ambos silenciaram. Mas o homem evidentemente pensava em alguma
coisa, pois continuou mantendo aberta a janela de onde fluía
fumaça.
- Um caminho ruim -disse K. para ajudá-lo.
Mas ele disse apenas:
- Sem dúvida.
Um pouco depois porém ele falou:
- Se quiser posso levá-lo no meu trenó.
- Faça-me esse favor -disse K. muito satisfeito. - Quanto quer
por isso?
- Nada -disse o homem.
K. ficou muito admirado.
- O senhor é o agrimensor -explicou o homem -e pertence ao
castelo. Aonde quer ir?
- Ao castelo -respondeu K. rápido.
- Então eu não vou -disse o homem imediatamente.
- Mas eu pertenço ao castelo -disse K. repetindo as próprias
palavras do homem.
- Pode ser -disse o homem num tom de recusa.
- Então me leve até o albergue -disse K.
- Está bem -disse o homem. - Saio já com o trenó.
Nada disso dava a impressão de uma amabilidade especial, mas
antes de algum tipo de empenho muito egoísta, ansioso e quase
obsessivo em tirar K. de frente da casa.
O portão se abriu e por ele saiu um pequeno trenó para
carga leve, inteiramente plano e sem nenhum assento, puxado por um
cavalinho frágil, atrás o homem, que não era
velho mas fraco, curvado, mancando, o rosto magro, vermelho e resfriado
que parecia particularmente pequeno por causa de um xale de lã
enrolado firme em torno do pescoço. O homem estava visivelmente
doente e tinha saído só para transportar K. dali. K.
mencionou algo nesse sentido, mas ele encerrou o assunto com um aceno.
Ficou sabendo apenas que era o carroceiro Gerstäcker, e que tinha
apanhado aquele trenó incômodo porque ele estava pronto
e teria levado muito tempo para tirar outro para fora.
- Sente-se -disse e apontou com o chicote para a parte de trás
do trenó.
- Vou me sentar ao seu lado -disse K.
- Eu vou a pé -disse Gerstäcker.
- Mas por quê? -perguntou K.
- Vou a pé -repetiu Gerstäcker e teve um acesso de tosse
que o sacudiu tanto que ele precisou fincar as pernas na neve e segurar
com as mãos a borda do trenó.
K. não falou mais nada, sentou-se na parte de trás do
trenó, a tosse se acalmou aos poucos e eles partiram.
O castelo lá em cima, já curiosamente escuro, que K.
havia esperado alcançar ainda hoje, distanciava-se outra vez.
Mas como se ainda fosse preciso dar um sinal para a despedida provisória,
ali soou um toque de sino alado e alegre, que pelo menos por um momento
fez seu coração estremecer, como se o ameaçasse
-pois o toque era também doloroso- a realidade daquilo a que
incertamente aspirava. Logo porém esse grande sino emudeceu
e foi substituído por um sininho fraco e monótono, talvez
ainda lá em cima, mas talvez já na aldeia. Esse tilintar
evidentemente se adaptava melhor à viagem vagarosa e ao carroceiro
digno de pena, mas implacável.
- Escute -bradou K. de repente.
Eles já estavam na proximidade da igreja, o caminho para o
albergue já não era muito grande, K. podia arriscar
alguma coisa.
- Muito me admira que você ouse me levar de um lado para outro
sob sua própria responsabilidade. Tem o direito de fazer isso?
Gerstäcker não se importou e continuou caminhando tranquilamente
ao lado do cavalinho.
- Ei -gritou K., juntou um pouco de neve no trenó e com uma
bola acertou em cheio o ouvido de Gerstäcker.
Este então parou e se voltou; mas quando K. o viu de tão
perto -o trenó tinha avançado mais um pouco-, essa figura
curvada, por assim dizer maltratada, o rosto vermelho, cansado e estreito,
com as maçãs de algum modo diferentes, uma plana, a
outra encovada, a boca aberta e atenta na qual havia só alguns
dentes isolados, K. teve de repetir por compaixão o que antes
havia dito por maldade, se Gerstäcker não podia ser punido
pelo fato de transportá-lo.
- O que está querendo? -perguntou Gerstäcker sem compreender,
mas também sem esperar explicação instigou o
cavalinho e seguiram em frente.
Quando estavam quase no albergue -K. reconheceu isso numa curva do
caminho- para seu espanto já havia escurecido completamente.
Tinha saído há tanto tempo? Segundo seus cálculos
fazia apenas uma ou duas horas. Partira de manhã. E não
tivera nenhuma necessidade de comer. Até há pouco a
luz do dia tinha sido regular, só agora aquela escuridão.
- Dias curtos, dias curtos -disse a si mesmo, escorregou do trenó
e se dirigiu ao albergue.
No alto da pequena escada externa da casa estava o dono do albergue,
muito bem-vindo, que iluminava o caminho com a lanterna erguida. Lembrando-se
por um instante do carroceiro K. parou em algum lugar no escuro e
ouviu-se uma tosse, era ele. Bem, em breve iria vê-lo outra
vez. Só quando estava em cima, com o dono do albergue que o
cumprimentava humildemente, é que percebeu dois homens, um
de cada lado da porta. Pegou a lanterna da mão do dono do albergue
e iluminou os dois; eram os homens que já havia encontrado
e que tinham sido chamados de Artur e Jeremias. Agora eles o saudavam
com uma continência. Recordando-se do seu tempo de serviço
militar, aqueles tempos felizes, ele riu.
- Quem são vocês? -perguntou, olhando de um para outro.
- Seus ajudantes -responderam.
- São os ajudantes -confirmou em voz baixa o dono do albergue.
- Como? -perguntou K. - São vocês os antigos ajudantes
que mandei me seguirem e que eu estava esperando?
Eles responderam afirmativamente.
- Isso é bom -disse K. depois de um curto intervalo. - É
bom que tenham chegado.
Depois de mais uma pausa falou:
- Aliás vocês se atrasaram muito. São muito negligentes.
- Era um longo caminho -disse um deles.
- Longo caminho -repetiu K. - Mas eu os encontrei quando vinham do
castelo.
- Sim -disseram sem mais explicações.
- Onde estão os aparelhos? -perguntou K.
- Não temos nenhum aparelho -disseram eles.
- Os aparelhos que eu confiei a vocês -disse K.
- Não temos nenhum -repetiram os dois.
- Ah, que gente! -exclamou K. - Entendem alguma coisa de agrimensura?
- Não -disseram eles.
- Mas se são meus antigos ajudantes teriam de entender -disse
K.
Eles silenciaram.
- Venham então -disse K. e empurrou-os à frente para
dentro da casa.
Tradução de Modesto Carone.
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