DEUS
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Publicado
na Folha de S.Paulo, quarta-feira, 28 de agosto de 1963
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Neste texto foi mantida a grafia original
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A pergunta fundamental, a unica que realmente é pergunta -
pois todas as demais são respostas disfarçadas - é
a da existencia de Deus. Se Deus existe ou não - é o
problema da filosofia. Se eu creio ou não em Deus - é
o meu problema. Todos os outros problemas giram em torno deste. E
é em torno dele que a vida vai grudando seus pedaços
estanques até compor - ou não compor - um sentido.
Ao terminar um romance ("Informação ao Crucificado")
coloquei na boca de um personagem a frase que podia ser minha: Deus
acabou. Não fiz o seminarista afirmar: "Deus não
existe". Ou: "Não creio mais em Deus". Faço-o
dizer simplesmente, como eu mesmo me digo nas horas de angustia e
tedio: Deus acabou.
Ano passado fui a um programa de televisão, não em Marienbad,
mas aqui mesmo no Rio. Ari Barroso mantinha uma especie de debate
sobre determinados assuntos. Fui lá com mestre Austregesilo
de Ataide debater esta questão: Deus existe? Mestre Ataide
defendeu a afirmativa, eu a negativa. Evidente, discutimos uma tese
e não um problema pessoal. Ressuscitamos velhas questões
metafisicas, o principio de causalidade, os cinco famosos argumentos
de São Tomás, a teoria da realidade manifesta - o debate
foi erudito e não se chegou a nenhuma conclusão. Mestre
Ataide saiu de lá crendo, eu saí não crendo e
Ari Barroso saiu ora crendo, ora não crendo.
Confesso hoje, de peito aberto: não fui sincero naquele programa.
Não que realmente acredite em Deus, mas escamoteei meu verdadeiro
pensamento. Pois a verdade é simples: não me interessa
saber se Deus existe ou inexiste. O que importa é que Deus
acabou para mim. Tive Deus e gastei Deus demais. Fui perdulario de
Deus.
Errei nos meus calculos. Gastei demasiadamente um capital que julgava
inesgotavel. Ora, cada um de nós tem uma determinada cota de
Deus. Meu capital não era tão grande como pensava, e
eu gastei muito e depressa. Como o filho prodigo, fui impaciente de
gozos e me atirei a gozar a fundo. Um dia, amanheci pobre e nu, disputando
com os porcos os restos de comida que sobravam, da mesa dos mais prudentes.
Há homens que usam Deus a conta-gotas, quando viajam de avião,
quando caem os raios, quando os parentes morrem. Guardam avaramente
a herança: às vezes chegam a morrer ricos, pois o capital
rende juros. Não foi esse o meu caso. Tive pouco e esbanjei
muito. O capital acabou e não tive pena nem colera de ter gastado
tanto e por tão pouco.
Podia rematar esta cronica com uma citação de Teilhard
de Chardin. Mas brevemente cometerei uma serie de cronicas sobre o
jesuita cujas teorias estão à beira da excomunhão.
Lendo "Le Phenoméne Humain", muitos interpretadores
da teoria chardiniana chegaram a esta surpreendente conclusão:
Deus não existe ainda, mas está em gestação.
Mesmo admitindo-se a remota esperança -Deus ainda existirá
- nem assim me animo a esperá-lo. Talvez, em algum lugar, esteja
sendo engordada a melhor ovelha para o banquete da volta. Mas não
tenho para que voltar. Como o jogador avaro de emoções,
a lucidez e o gosto de ruína em minha boca compensam a danação
de ter jogado e perdido.
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