DIARIO INEDITO DE BEETHOVEN
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Publicado
na Folha da Manhã, domingo, 27 de setembro de 1936
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Neste texto foi mantida a grafia original
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Nos fins do século passado, encontraram-se, em Berlim, varios
cadernos volumosos do diario intimo de Beethoven. A escripta do genial
musico era quasi que absolutamente indecifravel. Apesar disso, alguns
investigadores empreenderam a tarefa de estudal-a, trabalho que durou
annos. Publicamos aqui uma parte desta interessante obra, que será
publicada em Munich:
Além
de minha pessima saúde, de tres annos para cá, ouço
cada vez menos. Para te dar uma idéa desta surdez extraordinaria,
basta dizer que no theatro preciso ficar quasi encostado à
orchestra para ouvir os artistas. Basta afastar-me um pouco para
não ouvir mais nada: nem os instrumentos, nem as vozes dos
executantes. É assombroso que muita gente, ao falar commigo,
não perceba - provavelmente attribue à minha distracção.
Acontece-me, tambem, muitas vezes, ouvir as pessoas que me falam
devagar, mas apesar de distinguir os tons não entendo as
palavras. Não obstante, quando alguem grita, perco a cabeça.
Só Deus sabe o que me vae acontecer. Muitas vezes maldigo
o Creador e minha permanencia neste mundo. Plutarcho me trouxe a
resignação."
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"...
E fujo de todos" |
"Posso dizer que vivo em completo isolamento. Desde ha perto
de dois annos fujo de toda a convivencia... Mas se eu tivesse outra
profissão; mas na minha é um caso extraordinario. Que
irão dizer meus inimigos, cujo numero não é insignificante?
Jamais te poderia dizer como está triste e vazia minha vida,
ha dois annos. A fraqueza do ouvido me persegue por todas as partes,
como um fantasma, e fujo de todos, que devem em julgar um mysnathropo,
apesar de nunca o ter sido, em absoluto.
Se não fosse minha surdez, teria ha muito tempo visitado a
metade do universo, pois não ha para mim prazer maior do que
exhibir publicamente minha arte.
Se não tivesse lido algures que o homem não póde
abandonar este mundo enquanto puder ser util em alguma coisa, já
não seria, possivelmente, deste mundo. Sem esta desgraça,
poderia abraçar, estreitar a terra inteira. Minha juventude
- sim, sinto que mal começa em mim - minhas forças physicas
imperam mais do que nunca e o mesmo acontece com meu espirito.
Coragem! Apesar da fraqueza de meu corpo, meu espirito deve triumphar.
Oh, seria tão bello viver mil vezes a vida! Mas uma vida tranquila
- não! estou certo de que este não é o meu caso!
Não me considere como um infeliz, não poderia suportal-o.
Terás notado muitas vezes que, quando estou entre muita gente,
sou como um peixe na areia, um peixe que se retorce impotente, até
o momento em que Galathéa, bondosa, atira-o de novo ao mar
que ruge.
Enfim, os homens ainda me tratam com muita paciencia, porque no estado
em que vivo não posso viver e trabalhar como antes, apesar
de ainda me chamar Beethoven. Posso dizer que vivo quasi solitario
no grande territorio da Allemanha e estou forçado a permanecer
separado de todos aquelles que amo ou que poderia amar algum dia.
Não, a amizade e outros sentimentos parecidos não produzem
senão golpes, e desgostos! Não esperes, pois, pobre
Beethoven, nenhuma alegria do exterior. Crêa a tu mesmo tudo,
das fibras mais secretas, pois sómente no mundo ideal encontrarás
alguma felicidade.
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"...
Jamais alcançará o cimo" |
Espero proporcionar ainda algumas grandes obras à humanidade
e depois terminarei meus dias, acolhido por alguma pessôa de
bom coração.
Cada dia mais me approximo do fim que procuro, mas me é impossivel
descrevel-o. Repouso? Desconheço, salvo em sonho e me faz soffrer
muito comprovar que agora devo consagrar-lhe mais tempo do que nunca.
Um verdadeiro artista não tem nenhum orgulho, mas como vê,
infelizmente, que a arte não tem limites, sente de um modo
indubitavel que jámais o cimo. E embora seja, provavelmente,
admirado por seus contemporaneos, chora interiormente por não
poder chegar até onde brilha o Genio, com a luz de um sol longinquo
e inaccessivel.
Uma alegria exuberante me impelle, às vezes, com uma insistencia
não menos violenta, a encerrar-me em mim mesmo.
Por mais brilhantes que sejam alguns aspectos da gloria, o artista
se vê assediado muitas vezes pelas necessidades quotidianas,
que o arrancam frequentemente e com brutalidades dessas regiões
ethereas.
Reis e principes põem-se a nomear professores e dignatarios,
assim como pódem distribuir titulos e condecorações.
Mas, não obstante o seu poder, são impotentes para fazer
grandes homens, grandes espiritos, que se elevem acima das miserias
humanas. Quando dois sêres como Goethe e eu, por exemplo, seguramo-nos
na mão, os senhores deste mundo percebem, por fim, o que é
que elle vale para nós.
A estima, o amor e a veneração que tive desde a mais
tenra idade por Goethe vivem sempre em meu coração;
unicamente sou incapaz de exprimil-os com palavras, pobre ignorante
que sou, pois apenas posso fazer-me entender pela musica.
Sempre me tenho collocado entre os maiores admiradores de Mozart e
o serei até o ultimo alento de minha vida. A bôa acolhida
com que receberam "Don Juan" me alegra como se se tratasse
de uma obra minha.
Haendel é um maestro inimitavel. Estudem-no para aprender como
o minimo dos meios póde exprimir o maximo de effeitos.
Nada poderá jamais tirar os laureis de um Haendel, de um Haydn
ou de um Mozart. Estes lhes pertencem com justiça, mas ainda
não me correspondem.
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O
eterno temor |
As paredes de meu quarto estão cobertas de retratos de Haendel,
Bach, Cluck, Mozart e Haydn.
Não é "Bach" (riacho) o nome que lhe competia,
mas sim "meer" (mar), pois é immenso em sua arte
nos tons e sem limites sua riqueza de harmonias.
Acontece-me muitas vezes chegar quasi à loucura ao pensar em
minha gloria, da qual não sou digno. A felicidade me procura
assiduamente, mas eu temo que uma nova desgraça caia sobre
mim.
Sabes que escrever não é meu forte. Até meus
melhores amigos passam sem minhas cartas durante annos. Não
vivo senão em minhas notas, que se succedem de tal modo que
não deixam espaço entre ellas. Meus pensamentos se incubam
durante muito tempo, até que eu possa expôl-os no papel.
Apesar disso, minha memoria é tão fiel que me permitte
recordar os themas depois de muito tempo. Mudo muitas coisas, abandono
e tomo outras, até que fico mais ou menos contente. É
só então que começa em minha mente o verdadeiro
trabalho, em amplidão, em profundidade e em altura e a idéa
principal não me abandona jámais: sóbe, toma
vôo e vejo-a, ouço-a erguer-se sózinha em meu
espirito, não me ficando mais do que o trabalho de transcripção
pura e simplesmente.
Donde tiro minhas idéas? Não poderia dizel-o exactamente.
Vêm-me sem que eu as procure, directa ou indirectamente; às
vezes sou capaz de tocal-as com minhas proprias mãos, circulam
no ar, no bosque, em meus passeios, no silencio da noite, na frescura
da manhã, cheias de matizes diversos que exprimem em palavras
no escriptor e em melodias, em mim. Sôam, murmuram, precipitam-se
em tumulto até que as vejo imobilizar-se, em notas, diante
de mim.
Quando procuro de tempos em tempos dar uma fórma musical aos
meus sentimentos em effervescencia, encontro-me terrivelmente decepcionado;
cheio de despeito, atiro ao sólo minha folha borrada, absolutamente
persuadido de que as celestes imagens, introduziveis na musica, povôam
minha excitada fantasia.
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