José Geraldo Couto
Mario Cesar Carvalho
Da Reportagem Local
Mário de Andrade era um mistério. Ele próprio
ajudou a construir essa imagem. "Eu sou trezentos... sou trazentos-e-cinquenta",
escreveu no "Remate de Males" (1930). O verso até
agora serviu para interpretar suas múltiplas atividades,
de poeta a etnógrafo. Mas um exame mais detalhado de sua
correspondência e de suas amizades revela que o homem era
mais do que 350, às vezes era 351, como o próprio
Mário corrigiu em carta à poeta mineira Henriqueta
Lisboa: o 351° era o "indivíduo infame, diabólico,
que eu carrego toda a vida comigo".
Não foi a única vez que Mário se referiu a
essa sina. A José Bento Ferraz, seu secretário particular
entre 1934 e 1945, costumava dizer: "Há um lado hediondo
no meu caráter". Aos 80 anos, José Bento diz:
"Eu não acho que o Mário tenha algum lado hediondo
em seu caráter". Não se sabe por quê, mas
foi esse o dogma que ficou na história do modernismo. Enquanto
Oswald de Andrade era o devasso, o piadista, Mário era o
"scholar", o erudito, o monumento moral, imagem que incomodava
o próprio escritor: "Me vejo convertido a erudito"
respeitável e, o que é pior, respeitado. Isso me queima
de vergonha", escreveu em 1942 ao jornalista e crítico
Moacir Werneck de Castro.
De santo e erudito, Mário até tinha muito. nascido
numa família católica, foi congregado mariano, ia
à missa todos os domingos até o final dos anos 20,
carregava vela em procissão e cantava no coro da Igreja Santa
Ifigênia, no centro de São Paulo. Mesmo se afastando
da igreja, conservou-se cristão até a morte, em 1945.
Sua erudição pode ser medida pela extensão
e variedade de sua obra (58 livros, entre poesia, ficção,
ensaio e correspondência) e pelo tamanho de sua biblioteca
(17 mil volumes, principalmente de música, arte, literatura,
etnologia e folclore).
Mas Mário não era só santo e erudito. Sob o
clichê sacralizado se esconde um "vulcão de complicações",
segundo autodefinição de 1925. Era vaidoso, sensual,
gostava de tomar seus porres, experimentava drogas "com um
interesse apaixonado" e dizia ter uma "espécie
de pansexualismo".
Só usava ternos de casimira inglesa ou linho branco S-120.
Em casa andava de robe de seda (alguns desenhados por ele). Mandava
seu secretário comprar a loção francesa Rêve
Rose para passar na careca, usava pó-de árroz na face
para atenuar o tom amulatado da pele, herança das avós
materna e paterna, ambas mulatas.
Porres e experiência com drogas Mário reservava principalmente
para as viagens. No Carnaval de 1929, na sua segunda viagem ao Nordeste
(a primeira foi entre 1927 e 1928), cheirou éter e cocaína
"loucamente" com seus amigos de Recife, entre os quais
o pintor Cícero Dias e o escritor Ascenso Ferreira. "Passei
a noite sob efeitos reprovocados de coca e éter, uma luxúria
até 6 da manhã", conta em "O Turista Aprendiz".
Radicado em Paris desde 1937, Cícero Dias. 85, diz hoje que
há um "certo exagero" sobre a cocaína: "Usava-se
mais porre de éter".
Foi no Rio, onde viveu de julho de 1938 a fevereiro de 1941, trabalhando
no Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional, que Mário se "desmandou" na bebida, como
diz seu secretário Bento. Foi a primeira e única vez
que morou fora de São Paulo, de onde saiu depois de chefiar
três anos o Departamento de Cultura.
Os pileques de choque eram na Taberna da Glória, onde se
reunia com Carlos Lacerda, Moacir Werneck de Castro, Murilo Miranda
e Lúcio Rangel. Apesar de Mário dizer que chegou a
perder três vezes a consciência, Maria Amélia
Buarque de Holanda, 83, viúva do historiador Sérgio
Buarque de Holanda, recorda que "ele bebia forte mas não
era dos mais porristas". Quando Paris foi ocupada pelos alemães,
em junho de 1940, Mário e Sérgio esvaziaram uma garrafa
de uísque.
A pista sobre o Mário sensual foi dada pelo próprio:
"Há também um outro elemento, delicado de tratar,
mas que tem uma importância decisória em minha formação:
a minha assombrosa, quase absurda - o Paulo Prado já chamou
de 'monstruosa' - sensualidade", escreveu à musicóloga
Oneyda Alvarenga em 1940. Essa sensualidade se dirigia a objetos
(sobretudo livros e obras de arte), à natureza ("descobri
que seria capaz de ter relações sexuais com uma árvore
!", contou ao escritor Rosário Fusco em carta de 1934)
e a seres humanos de ambos os sexos.
Aí, em torno de sexualidade de Mário de Andrade, esbarra-se
no tabu dos tabus. Quase 50 anos depois da morte do escritor, um
único libro aborda, embora timidamente, sua homossexualidade:
"Mário de Andrade - Exílio no Rio", de Moacir
Werneck de Castro. O autor parte das análises literárias
de João Luiz Tafetá (no livro "Figuração
da Intimidade - Imagens na Poesia de Mário de Andrade")
e da correspondência do escritor para concluir que "na
raiz do drama existencial de Mário de Andrade jaz a angústia
da sexualidade reprimida e transformada em difusa pansexualidade".
Hoje com 78 anos, Werneck lembra que na sua roda de amigos não
se suspeitava que Mário pudesse ser homessexual. "Supúnhamos
que fosse casto ou que tivesse amores secretos. Se era ou não
isso não afeta sua obra, nem seu caráter".
A dúvida é tão antiga quanto o modernismo.
Já em 1923, Mário comentava sua fama de "pederasta"
em carta a Sérgio Miliet: "Já sabia da reputação.
Não me surpreendeu. Será a celebridade que se aproxima?
Eis-me elevado à turva e apetitosa dúvida que doira
a reputação de Rimbaud Verlaine, Shakespeare, Miguel
Anjo, Da Vinci".
Em 1929, quando rompe com o escritor Oswald de Andrade, a dúvida
cresce mais ainda, impulsionada pelo que o ensaísta Antonio
Candido chamou de "piadas sangrentas" de Oswald. Uma delas:
Mário é "muito parecido pelas costas com Oscar
Wilde".
A curiosidade é estimulada por um pedido de Mário:
as cartas que recebeu, hoje trancadas em cofre no Instituto de Estudos
Brasileiros da USP, só podem ser abertas em 25 de fevereiro
de 1995, 50 anos após sua morte. Uma carta do próprio
Mário ao poeta Manuel Bandeira também está
vetada até 1995. O mistério está guardado na
Fundação Casa de Rui Barbosa, no Rio.
Só em 1990 Antonio Candido, que conviveu com os dois Andrades,
tocou de forma mais direta no assunto: "O Mário de Andrade
era um caso muito complicado, era um bissexual, provavelmente",
afirmou em depoimento ao Museu da Imagem e do Som de São
Paulo. "Os únicos casos concretos que a gente tem sobre
a vida afetiva dele são casos com mulheres que a gente sabe
quais foram. Ele tinha uma sensibilidade de homossexual, isto é
fora de dúvida, vê-se pela obra dele".
Mário diz no poema "Girassol da Madrugada" que
teve quatro "amores eternos": "O primeiro era a moça
donzela,/ O segundo ...eclipse, boi que fala, cataclisma,/ O terceiro
era a rica senhora,/ O quarto és tu...", O "tu"
era R.G., a quem o poema é dedicado. Mário revelou
seu nome completo a Manuel Bandeira, que teve o cuidado de suprimi-lo
quando o publicou em 1958 as cartas que Mário lhe mandara.
Dos outros amores sabe-se que "a rica senhora" é
Carolina Penteado da Silva Telles, filha de Olívia Guedes
Penteado. Durante dez anos, de 1924 a 1934, Mário frequentou
os saraus no casarão de Olívia e via Carolina quase
semanalmente, casada com Gofredo Teixeira da Silva Telles.
"Ele sempre foi muito cavalheiro, muito respeitoso, uma pessoa
corretíssima", lembra Carolina hoje com 99 anos, "Só
fui saber que eu era a paixão da vida dele quando a Tarsila
me contou na missa de sétimo dia de Mário. Eu nunca
soube de nada". Tarsila, a pintora Tarsila do Amaral, foi outro
amor platônico de Mário nos tempos heróicos
do modernismo, época em que era casada com Oswald.
O episódio Carolina ilustra como Mário era "um
homem difícil, que só lentamente rompia suas barreiras
defensivas", como escreveu o crítico Mário da
Silva Brito. Embora sempre cercado de amigos, parentes e administradores,
o próprio escritor parecia condenar-se a uma solidão
sem remédio. Na última carta que escreveu à
pintora Anita Malfatti, em 26 de julho de 1939, confessou: "Ninguém
poderia chegar a gostar inteiramente de mim, porque com meu jeitão
feiúdo e a forma pouco esperta e ácida do meu espírito
não dou bem-estar a ninguém".
O represamento afetivo, não raro, virava tormenta. Foi no
período que viveu no Rio que seus dilemas se intensificaram.
Acima de tudo, Mário se atormentava com a distância
da mãe, Maria Luísa, com quem morou até a morte:
"Estou literalmente desesperado, não aguento mais esta
vida do Rio, e ou acabo comigo ou não sei. Às vezes
sinto que a única salvação é voltar
pra S. Paulo de uma vez. Lá eu tenho de perto a imagem de
minha mãe, que de longe não é suficientemente
forte pra vencer meus desesperos", queixava-se a Paulo Duarte
em 1939.
Havia também a Guerra. Embora nunca tenha ido à Europa
(só saiu do Brasil uma vez, em 1927, quando foi ao Peru),
lamentava a destruição de bens culturais e valores
que prezava.
Por tudo isso, Mário se dilacerava em, dúvidas: não
sabia se devia se dedicar exclusivamente à ficção,
à pesquisa mais erudita ou à participação
direta na vida política (vivia-se a ditadura de Vargas).
Em 1942, quando já voltara a São Paulo, as dúvidas
transformam-se em "mea culpa", uma espécie de autoflagelação
intelectual. Na conferência sobre os 20 anos do modernismo,
faz ataques ao movimento ("era nitidamente aristocrático")
e considerava-se pessoalmente um fracassado: "Tendo deformado
toda minha obra por um antiindividualismo dirigido e voluntarioso,
toda a minha obra não é mais que um hiperindividualismo
implacável. É melancólico chegar assim no crepúsculo
sem contar com a solidariedade de si mesmo".
Tinha 48 anos à época. Vivia se queixando de doenças
e da falta de dinheiro. O poeta Carlos Drummond de Andrade reuniu
trechos de 114 cartas a vários destinatários nas quais
Mário descreve seus males - úlcera, hemorróidas,
sinusite, enxaqueca, dores nos rins, colite, gripes frequentes,
estafas e depressões nervosas. Debochava das doenças,
vivia prevendo que morreria aos 50 ou 55 anos e chegou a escrever
a Paulo Duarte em 1942; "Estou me suicidando aos poucos".
Morreu a 25 de fevereiro de 1945 de infarto, aos 51 anos.
Dois anos antes, admitia "melancólico" suas vaidades:
"Sou bastante artista, pelo menos até o ponto de desejar
essa besteira inacreditável e inexplicável de continuar
querido depois de cadáver, osso, pó filho da puta".
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