O FOLCLORE LUÍS DA CÂMARA CASCUDO
RECEBE HOJE EM NATAL O TROFÉU "JUCA PATO", COMO
INTELECTUAL DO ANO 1977
Um mestre na vida do povo brasileiro
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Publicado
na Folha de S.Paulo, sexta-feira, 26 de maio de 1978
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NATAL (Do Correspondente) - O escritor Luís da Câmara
Cascudo receberá hoje às 21 horas na Academia Norte-Rio-Grandense
de Letras, o Troféu "Juca Pato", por ter sido eleito
o "Intelectual do Ano de 1977" num concurso promovido pela
Folha em colaboração com a União Brasileira de
Escritores, seção de São Paulo. A entrega será
feita por José Américo de Almeida, ganhador do troféu
no ano anterior, numa solenidade presidida por Raimundo de Menezes
com a participação de Francisco Rangel Pestana, representante
da Folha.
Cascudo é o décimo-sexto "Intelectual do Ano",
eleito em concurso de âmbito nacional, do qual participaram
mais de 1.200 eleitores. Pela primeira vez o "Juca Pato"
está entregue fora de São Paulo.
Aos 80 anos, Luiz da Câmara Cascudo é considerado a maior
autoridade brasileira em folclore. Autor de mais de cem livros, ele
dedicou toda sua vida ao estudo dos temas e da vida popular. Numa
entrevista concedida à "Manchete" há vários
anos, declarava: "Eu sou o único homem no Brasil, para
mim, fiel à vocação, daí não ter
sido deputado federal nem senador, nem secretário de Estado
nem nada, porque era peixe fora da água. Eu só levo
vantagem nisso, fiquei até o fim. Mas quando comecei a lidar
com folclore acharam que eu era doido".
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Reunindo
e espalhando lições |
A entrega do "Juca Pato" a Luís da Câmara Cascudo
ocorre no final da I Semana de Cultura Nordestina, que está
sendo realizada em Natal desde o último Domingo, e se encerra
hoje, reunindo intelectuais de todo o País. Um dos debates
foi sobre a obra e a figura de Cascudo, com uma comunicação
do professor Manoel Diegues Júnior que reproduzimos:
"Talvez nenhum intelectual do Brasil de hoje tenha tido, ou tenha
a versatilidade de assuntos em sua obra como Luís da Câmara
Cascudo. Versatilidade, contudo, acentuada na preferência com
que se dedicou aos temas da cultura popular do que resultou o enriquecimento
dos estudos brasileiros nessa área.
"O importante a considerar, de modo prioritário, é
que na maneira como chegou a outros campos, faz neles figurar a cultura
popular. O que caracteriza sua obra, principalmente como o pesquisador
e o analista, é justamente sua vocação para a
pesquisa, estudar e interpretar a cultura popular em suas diversas
manifestações no conto, no adagiário, na poesia,
no romanceiro, enfim nas diferentes formas com que ela se apresenta
e pode ser pesquisada, analisada e interpretada.
"A tônica na obra de historiador, de antropólogo,
de romancista de Luís da Câmara Cascudo se situa na área
da cultura popular. Ou seja, na pesquisa, na análise, na interpretação
dos fatos populares, na poesia dos trovadores anônimos ou na
dos cantadores populares ou na narrativa espontânea dos contadores
de histórias ou na tradição dos episódios
que o espírito popular interpreta.
"É de considerar, em primeiro lugar, que a cultura popular
sempre acompanhou a evolução histórica do país,
não só registrando como também interpretando
os próprios fatos históricos, de certo modo à
sua maneira, mas de qualquer forma situando-os no contexto daquilo
que poderíamos chamar sua interpretação. Foi
neste sentido ou principalmente neste sentido, que se dirigiram os
estudos de Cascudo. A princípio, no registro e na interpretação
de fatos históricos; depois na utilização da
cultura popular para registrá-los e interpretá-los.
E a seguir a própria pesquisa dos temas populares, a interpretação
cultural de fatos ou figuras, que o povo cria, registra e interpreta,
de que é exemplo o "Dicionário do Folclore Brasileiro"
ou o ainda recente "Locuções Populares do Brasil".
"É neste sentido que se situa a presença da cultura
popular na obra de Cascudo. E sua principal temática, e seu
fecundo campo de pesquisa, e o seu mundo não só de registro
e de análise como também de interpretação.
Com o que proporciona à nossa cultura a mais importante contribuição
de pesquisa e de interpretação em torno dos fenômenos
e dos temas de nossa criatividade popular. Daí a importância
dessa contribuição, o alto significado do material reunido,
o elevado espírito de interpretação com que os
casos e fatos são assinalados, registrados e analisados."
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Contribuição
à cultura |
"Em sua bibliografia avultam as contribuições de
natureza teórica e ressaltam as de natureza analítica
ou interpretativa da cultura popular. No primeiro caso, por exemplo.
"Civilização e Cultura" ou "Dicionário
do Folclore Brasileiro", no segundo temos toda sua rica contribuição
de levantamento e registro de fatos da cultura popular e sua respectiva
análise e interpretação; é caso da literatura
oral ou de vaqueiros e cantadores. E não falta ainda o levantamento
das principais fontes e autores na área do folclore, com sua
excelente "Antologia de Folclore Brasileiro".
"Vale ressaltar também sua contribuição
a um campo específico, numa região determinada: é
a pesquisa com que registrou as tradições populares
da pecuária nordestina. E ainda no que ele chamou de romance
como é o caso de "Canto do Muro", já todo
um levantamento folclórico pelo que observou e registrou. É
outra faceta de Cascudo: o romancista. Mas ainda aí o romancista
preso às manifestações populares, utilizando,
no desenvolver a narrativa, aspectos e expressões da cultura
popular regional.
"Em literatura oral encontramos páginas ricas e cristalinas
de ensinamento, precisas na observação erudita, positivas
no registro dos fatos inclusive na confissão sincera de desconhecer
isto ou aquilo. O que me parece uma das coisas mais valiosas do livro,
pois o mundo do nosso folclore seria difícil de ser abraçado
por uma só pessoa.
"Aliás, para a velha a interminável fogueira de
conceituação do folclore, Cascudo oferece novas lenhas.
Principalmente na fixação dos limites etnografia e folclore,
seus conceitos e suas observações vêm reabrir
a discussão que é Etnografia, que é folclore,
qual a diferença entre uma e outra. Seria infindável
repisar aqui o que se tem discutido. Seu ponto de vista assenta no
conceito de que o folclore é o campo espiritual e a etnografia
o material da cultura.
"O que há de folclórico, como manifestação
da criatividade do povo, num ato popular conservado, mantido através
dos tempos, pelo grupo, transmitido pela memória coletiva,
há também de folclórico, na manutenção
de uma técnica - a do fabrico de bonecos, por exemplo, tanto
de cerâmica como de pano - com os mesmos traços, as mesmas
características de ancestralidade, o primitivo herdado oralmente
dos antepassados.
"O que há de folclórico num elemento material -
as carrancas do São Francisco, por exemplo - há igualmente
num fato de natureza espiritual - o canto de um brinquedo de roda.
A distinção que se pode fazer entre etnografia e folclore
não repousa aí; ao contrário é bastante
sutil, e envolve peculiaridades que muitas vezes escapam à
nossa percepção. Ou seja: a maneira como um grupo humano
usa cada palavra, como a aplica para definir, para uns, a etnografia,
e para outros, o folclore. Seria supérfluo a esta altura envolver-nos
em discussão desta natureza quando na realidade, se distinção
há, está muito longe de perturbar o estudo das manifestações
de criatividade popular, seja esta uma dança ou uma flor de
papel.
"Tudo é cultura, cultura que manifesta no grupo, mantida
e conservada por este, transmitida pela herança ou pelo contacto
prosseguida pelos tempos afora, modificada ou alterada com instruções
de elementos novos, revivendo sob novos aspectos. A continuidade do
grupo, suas tradições, suas técnicas, seu poder
de união de sentimentos de religiosidade de vida em família
é a cultura que mantém, que leva de geração
em geração."
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Cascudo
e suas lições |
"Toda a obra de Cascudo, no campo da cultura popular, reune e
espalha lições. Não lições teóricas,
mas essencialmente as da própria vida, o mundo em que vivemos
não o mundo global de todas as terras e de todas as gentes,
mas o mundo em que nos movimentamos, ouvindo locuções
familiares aos nossos ouvidos, vendo gestos que nos cercam, ouvindo
histórias que entendemos, cantando canções que
nos falam diretamente ao coração. Enfim, tudo dentro
do que vivemos e nos movimentos graças às nossas condições
sociais e às influências culturais recebidas.
"Este é um dos assuntos mais interessantes a estudar no
folclore brasileiro: as suas confluências culturais. Na realidade,
não se pode dizer que cada tema de nosso folclore seja exclusivo
dessa ou daquela origem. Ao contrário: já é hoje
um resultado transculturativo, oriundo dos elementos trazidos pelas
correntes étnicas, participes de nossa formação
antropológica tanto física como cultural. A procedência
principal, em muitos casos, pode estabelecer-se, mas ela não
se fixou só e única. Recebeu contribuições
dos outros grupos, aclimatou-se ao nosso meio, elementos locais nele
se incluíram, elementos variados lhe deram novas características,
e o tema surge novo, forte e viçoso.
"A criatividade humana é rica, e não se restringe
a um grupo. O povo cria em qualquer ambiente desde que surjam as condições
adequadas para que seu espírito criativo possa manifestar-se.
Daí canto ou dança que pode ser criado em cada grupo.
Claro que essa criatividade pode receber outros elementos, outras
influências e surgir então um elemento novo em que se
reunem ou se misturam elementos comuns a estes grupos. Ou não
raro comuns a grupos estranhos que então se procura limitar.
O caso do coco do Nordeste: dança inicialmente africana a que
se agregam elementos lusitanos e indígenas para exprimir um
sentimento comum em sua formação. O que expressa a criatividade
do grupo. Ou a criatividade de que é capaz qualquer grupo humano.
"De modo que uma conclusão exata se pode estabelecer:
não se pode rigorosamente isolar indígena, negro ou
português na formação cultural do Brasil, e, em
particular de seu folclore. O estatuto atual do conhecimento dos grupos
humanos evidencia a capacidade de assimilação de todos
os homens, independente de raça ou de meio. Todos os grupos
são aptos a uma interpretação cultural, e daí
os resultados que os processos de relações culturais
apresentam na miscigenação de traços culturais,
na fusão de elementos de que cada um é portador no surgimento
de uma característica nova.
"Os nossos folguedos, ou, de maneira geral, o nosso folclore,
vão buscar suas riquezas no processo dessas relações,
fixando, sobre o alicerce lusitano (como grupo mais adiantado) as
marcas características de seu espírito, de suas tendências,
de sua significação. Significação que
traduz um processo cultural e que representa também uma expressão
social.
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Luta
clero x povo |
"Gostaria de destacar um aspecto particular, por exemplo, quanto
ao padre na chegança e o frade no fandango. No fandango do
Rio Grande do Norte, informa Cascudo, não há o frade,
que aparece, porém, no das Alagoas. Tanto um - o padre - como
outro - o frade - encontram sua fonte em aspecto particular da Península,
dos velhos tempos de luta entre o clero e o povo. Ambos aparecem como
gaiatos, fazendo pilhérias. E a criatividade brasileira os
incorporou aos autos populares como reminiscência do que aconteceu
em Portugal.
"Num de seus livros, creio que em literatura oral, Cascudo recorda,
entre seus brinquedos de infância o de ter sido embaixador da
La Condessa, na brincadeira infantis com irmãos e primos. O
que já por si lhe dá uma autoridade de também
intérprete, e não apenas de observador ou de estudioso.
Que autoridade maior se lhe poderia cobrar como autor de excelentes
estudos de cultura popular, mestre hoje que consagramos e aplaudimos?"
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