A VIDA NA ROMA ANTIGA
|
Publicado
na Folha da Manhã, domingo, 26 de maio de 1946
|
|
Neste texto foi mantida a grafia original
|
Para se viver em Roma, no tempo de Augusto, era preciso ter coragem,
muita coragem. Uma pessoa nervosa não resistiria aos abalos
a que o cidadão romano estava sujeito. Os terremotos frequentemente
sacudiam a cidade. O Tibre, periodicamente, subia, inundava, submergindo
casas e arrastando homens e animais. Os incendios constantes destruiam
quarteirões inteiros. E, para completar a lista das calamidades
romanas, existia o permanente perigo dos desabamentos de casas.
Havia tambem outros riscos, e não menores, como, por exemplo,
caminhar altas horas da noite pelas vielas escuras e desertas. Podia-se
topar com os facinoras que agiam protegidos pelas trevas, ser roubado
e sucumbir com um punhal atravessado à garganta. Podia-se,
igualmente, encontrar um filho-de-papai rico, de regresso da orgia,
ainda embriagado, com o seu bando de alegres rapazes, e precedido
dos servos portadores de tochas e de lanternas. Aqui o perigo era
ser vitima da brincadeira chamada sagatio, muito do gosto dos mocinhos
grãfinos de então. Consistia o divertimento em agarrar
o pacifico transeunte noturno, atirá-lo muitas vezes para o
ar, aparando-o num manto seguro por todos. Os sustos e as emoções
do pobre viandante, ora a subir como para o céu e ora a cair
no manto, muito alegravam a rapaziada boemia de Roma, após
as libações duma farra à maneira classica. Por
essa desagradavel função de peteca passou Sancho Pança,
como narra Cervantes no episodio da estalagem que D. Quixote tomou
por um castelo. Cervantes não reproduz senão uma diversão
já muito apreciada pelos moços afortunados da antiga
Cidade Eterna. Outro perigo que o passante corria era receber o conteudo
de vasos jogado de dentro das casas para as ruas, à noite.
A cidade de Roma pousava sobre barrancos e colinas. Formava-se, em
geral, de ruas tortuosas e estreitas, atravancadas de quiosques. É
certo que havia os belos palacios, monumentos magnificos, parques
e bosques esplendidos, praças pontilhadas de estatuas de bronze,
de marmore, templos e porticos ornados das mais raras obras de arte.
Mas o panorama geral, a paisagem da cidade verdadeiramente do povo,
mostrava um conjunto de vielas sinuosas escalando colinas, com o telhado
das residencias fronteiras quase se tocando um no outro - espetaculo,
em suma, nada empolgante.
As casas, altas, mal edificadas, não raro vinham abaixo, matando
ou ferindo quem estivesse sob seu teto. Em toda casa se padecia do
terror de morrer esmagado; as pessoas estavam sempre alertas, prontas
para fugir ao menor estalo ou sinal de desmoronamento.
Os senhorios romanos eram homens de muita ganancia. Mandavam fazer
casas, para alugar, com material de baixa qualidade e de pouco preço,
não somente para obter maiores rendas, como tambem porque temiam
empregar capital de vulto e perdê-lo inteiramente nos incendios,
que ocorriam amiude. Manifestavam pouca estima pela vida dos inquilinos,
porque as habitações, assim erguidas, não ofereciam
nenhuma segurança.
Os pavimentos superiores das casas, bem como os telhados, eram de
madeira, e as ruas estreitissimas. Isso tudo facilitava a propagação
dos incendios, tão frequentes em Roma, alguns dos quais se
tornaram celebres, como o que Nero mandou atear, carregando depois
a culpa da hecatombe nos cristãos. E tanto foram os incendios
que se acredita que o solo de Roma se ergueu com os escombros, sendo
hoje mais alto.
Pelas ruas transitavam mascates, cargueiros e carros. Os mercadores
gritavam os seus pregões, os almocreves berravam com os animais
que conduziam. Nas oficinas rompiam as serras, batiam a bigorna nas
numerosas ferrarias urbanas. Juntavam-se a isso o alarido duma multidão
frenetica os gritos do poviléo disposto sempre aos tumultos,
às algazarras. A cada passo o trafego se obstruia, dada a estreiteza
das vias publicas; fugisse então quem tivesse ouvidos melindrosos,
porque nas discussões que nasciam reboavam os palavrões
mais asperos. Tal é o quadro duma rua populosa da Roma antiga.
Mas, o trafego de carroças somente era permitido à noite.
Isso, acrescido das arruaças da soldadesca em folga e por vagabundos
em grupos, prolongava o barulho pela noite a dentro, perturbando o
sono dos pobres. Dizemos dos pobres, porque somente as casas pobres
tinham quartos dando para as ruas. Nas residencias dos ricos, os dormitorios
ficavam no interior dos edificios, ao abrigo do barulho noturno. Tambem
aumentavam o desassossego noturno as serenatas que os apaixonados
organizavam junto das casas de suas amadas. Diz-se que, tomados de
paixão, não raro esses seresteiros, ajudados por amigos
e parentes, ou unicamente por sua propria audacia, buscavam pela violencia
penetrar nas casas e sequestrar as namoradas.
Escreve um autor que as ruas da Cidade Eterna, quando, afinal, o barulho
esmorecia, assumiam um aspecto sinistro. Abundavam assaltantes; era
mister que as portas fossem bem escoradas. Convinha, nessas horas
lugubres, não sair de casa. Era o que faziam as pessoas prudentes.
|
©
Copyright Empresa Folha da Manhã Ltda. Todos os direitos
reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em
qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização
escrita da Empresa Folha da Manhã Ltda.
|
|