A POESIA ATUAL OMITE E ESQUECE A INFLUÊNCIA DA MPB


Publicado na Folha de S.Paulo, sábado, 26 de janeiro de 1991

Nelson Ascher
Da equipe de articulistas

Ezra Pound dizia que, longe da música, a poesia degenerava. Pode-se concordar ou discordar, mas a questão colocada é sempre atual. Ela acaba de ser novamente proposta por Walter Franco em seu novo show "A 60 Minutos por Hora". Cantor e compositor, sua fama esteve no auge durante os anos 70. Foi quando ele se lançou, utilizando nas letras recursos da vanguarda poética: permutações, combinações, paronomásias, jogos de palavras e, até mesmo, uma espécie de visualidade musical. Tais recursos incorporaram-se também tanto à música quanto à interpretação. Walter Franco continua a trabalhar desenvolva e deliciosamente nesse registro. Uma canção que dedica a Dorival Caymmi, onde o compositor baiano é homenageado através da paráfrase musical e temática, demonstra-o clara, aliás, sonoramente.
A influência da moderna poesia brasileira (de 22 em diante) sobre a MPB já foi bastante discutida. Mas e sua recíproca? Em várias ocasiões no ano passado, muitos poetas mais ou menos jovens puderam falar ou escrever sobre sua obra e sobre as influências que receberam. Praticamente todos lembraram nomes como Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, Murilo Mendes, João Cabral de Melo Neto. Quase ninguém falou da MPB. Desmemória ou ingratidão: tanto faz. É um fato, porém, que quem tem menos de, digamos, 40 ou 45 anos deve ter tido seus primeiros contatos com o metro, ritmo e rima, para não falar de certos temas e outras tantas imagens e figuras de linguagem, através da MPB. Aqueles que tiveram seus primeiros contatos com a cultura na virada dos anos 50 para os anos 60, assistiram, em rádio e/ou TV, o surgimento da bossa nova. Outros, mais jovens ainda, cresceram durante a época dos grandes festivais e cantarolavam "Alegria, Alegria" ou "Roda Viva" antes da adolescência.
Não se trata meramente de um acidente cronológico. A partir da eclosão da bossa nova até pelo menos meados dos anos 70, cerca de 15 anos portanto, a MPB não apenas namorou com uma poesia mais refinada, como contribuiu para, de certa forma, divulgá-la para um público maior. Há muitos poetas jovens que ouviram "Garota de Ipanema" antes de terem lido qualquer livro de Vinícius de Morais. A própria bossa nova resulta, em partes iguais, da evolução "normal" da MPB e do acidente feliz de ter o modernismo criado uma linguagem poética capaz de se associar, com suas letras mais maleáveis e enganadoramente ingênuas, às tendências de então da música popular internacional. A jovem guarda e o tropicalismo, à sua maneira, atualizariam esse processo ao operar com outras correntes musicais e poéticas.
Na poesia de Paulo Leminski, por exemplo, a influência da MPB é tão clara que o poeta paranaense só poderia mesmo tê-la reconhecido escrevendo belas letras de música, como "Verdura". Um dos primeiros poemas de Régis Bonvicino homenageia Lou Reed, e o poeta paulista compôs uma letra para Walter Franco. Arnaldo Antunes, além de fazer poesia, participa do conjunto Titãs. E aqui estão representadas três gerações da poesia brasileira atual.
A influência não se dá, porém, só de uma maneira amigável e direta. Às vezes ela é tão osmótica que certos poetastros nem reparam que seu metro favorito, a redondilha maior (verso de sete sílabas métricas) é o mais "cantabile" e hegemônico na MPB. Outras - e Sebastião Uchoa Leite é um bom exemplo - ela se traduz na busca de padrões estilísticos intencionalmente antimusicais ou, pelo menos, anti-MPB.
O levantamento biográfico de dados e anedotas não basta para dar conta desse complexo de interrelações. A sensibilidade poética de músicos e letristas é mais evidente, pois estes, por necessidade de ofício, sempre terão um ouvido melhor que a esmagadora maioria de críticos profissionais. Precisa-se, no momento, de uma minuciosa análise crítica da influência da MPB (e de como a poesia moderna anterior atuou através dela) sobre a poesia atual. Esse seria um exercício saudável para os ingratos ou desmemoriados poetas jovens.


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