AMORES CELEBRES: DANTE E BEATRIZ


Publicado na Folha da Manhã, Domingo, 26 de abril de 1953

Neste texto foi mantida a grafia original

O pequeno Dante se agita, inquieto, entre as mãos da jovem que acaba de acariciá-lo. Parece incomodar-se com essas pequenas atenções e os movimentos em torno dele. Sua impaciencia aumenta e ameaça converter-se em choro, quando aparece, na porta do aposento, uma formosa mulher vestida de branco. A simples presença da mulher consegue acalmar o menino, que sorri encantado, ao mesmo tempo que caminha em sua direção.
- Meu querido, é melhor que você mude de roupa, pois na festa de Folco Portinari estará a fina flor de Florença.
- Vista-me você.
- Estou muito ocupada, Laura cuidará de você. Apresse-se, que papai já vem nos buscar.
Enquanto não desaparece a ultima prega de roupa de sua mãe, o menino não se deixa vestir. Em seus olhos se reflete a adoração que sente por ela.
Na casa do senhor Portinari está reunido, com efeito, o que há de mais seleto na sociedade florentina, que, como todos os anos, apresta-se para celebrar a chegada da Primavera. As mulheres florentinas, famosas por sua beleza, exibem seus melhores vestidos e competem com a natureza, num torneio encantador. Assiste-se então na Italia a um verdadeiro renascimento literario, com o aparecimento da chamada escola dos trovadores. Estes poetas, inspirados em fontes arabes e mouras, criaram uma poesia que gira em torno de um novo culto: a mulher. Esta deixa de ser, nestes casos, a mãe, a irmã ou a amante, para converter-se na Dama, geralmente imaterial e inacessivel.

Beatriz vestida de vermelho

Apenas entraram na mansão de Folco Portinari, o pequeno Dante se viu arrancado das alvas mãos de sua mãe, e não teve outro remedio senão ingressar na inquieta nuvem de garotos que punham uma mancha colorida nos jardins.
No entanto Dante se mantinha um tanto afastado dos folguedos. Logo se aproximou dele uma menina, em cujos traços se percebia uma rara expressão de serenidade. Disse-lhe ela:
- Eu sou Bice. E você?
- Você quer dizer Beatriz - corrigiu, gravemente, o pequeno - Eu me chamo Dante Alighieri.
- Ah!... Então, você é o filho dessa formosa dama vestida de branco?
Nenhuma outra frase poderia tê-la aproximado com tanto calor do coração do menino. A partir desse momento, Dante tratou a pequena Bice com a deferencia imposta pelas novas normas de galantaria.
A menina se distinguia das outras garotas de sua idade pelo porte algo severo, majestoso, que, reunido à sua pele de palidez transparente, dava-lhe um certo ar de predestinação. Não obstante sua idade, já era Dante um receptaculo vivo de poesia, e esta imagem ficou gravada em sua mente. Chegada a hora do crespusculo, os convidados começaram a retirar-se da formosa mansão em que residiam os Portinari.
- Dante, meu querido Dante, já está na hora de irmos embora.
- Mamãe, esta é Beatriz Portinari.
- Eu a conheço. É uma linda menina. Despeça-se e vamos.
O menino não se decidia a despedir-se, e sua mãe teve de insistir.
- Dante, já está fazendo frio e seu pai nos espera.
Saudou então a sua amiguinha e desceu as escadarias que conduziam ao grande "hall". Ia atrás de sua mãe. Ao chegar à porta, voltou-se e avistou a menina, que, imovel ficara a observá-lo.
- Como está linda com seu vestido colorido! - pensou - E aquilo que brilha no seu peito, que será? - Ah!... É o medalhão!...
Dante ergueu a mão num gesto de saudação, a menina respondeu com um gesto suave e a festa se esfumou no sono profundo de uma criatura de nove anos.

Sonhos como prenuncios

Do mundo deslocado dos sonhos surge uma escada, uma grande escada ao termino da qual uma formosa mulher de cabelos dourados sauda com a mão. Cerca-a uma resplandescente aureola de cirios. Dante se mantem na mais absoluta obscuridade. Não vê mais do que a escada e a mulher nimbada de luz. O menino começa a subir pela ampla escada, mas, à medida que avança, a mulher parece distanciar-se, subir. Subir!
Segui-la se torna fatigante. Com o peito oprimido por uma sensação de angustia, arquejante, sobe e sobe Dante sem chegar a alcançá-la.
Suavemente, se desfaz a escada e desaparece a menina. Uma forma branca se vai defenindo então. Vem do infinito, com a mão direita estendida para a frente, como se chamasse alguem.
- Dante! Meu pequeno Dante! - parece ouvir o menino, que corre para segurar a mão que lhe é estendida.
Esta figura não foge, não desaparece. Ao contrario, vai-se definindo mais nitidamente. É a mãe de Dante que avança flutuando. O primeiro sentimento de alegria que o moveu a correr a seu encontro desaparece repentinamente.
Existe algo na sua imagem que o aterra. Não pode defini-lo. Será a maneira de andar? a mão estendida? os olhos azuis? Os longos cabelos estão cobertos de lagrimas que lembram perolas.
- Dante! Meu pequeno Dante! - volta a ouvir o menino.
Dominando o terror, ele procura aproximar-se e segurar a mão estendida, porem ao tocá-la a figura desvanece. Sobressaltado, desperta aos gritos - Mamãe! Mamãe!
No quarto de seus pais havia luz, e dali vinham murmurios, ruidos de idas e vindas apressadas, Dante pensou que sua mãe acudiria ao seu chamado, porem foi a criada quem apareceu.
- Durma, meu filho. Amanhã, você verá sua mãe.
No dia seguinte, Dante soube que sua mãe tinha morrido.
Apenas cumprido o luto de rigor, o pai de Dante tomou uma nova esposa, da qual teve varios filhos. O pequeno nunca pode acostumar-se com aquela que considerava como uma intrusa, e como era o único a prestar tributo à memoria da morta, foi-se isolando de toda familia. Só, entre muita gente, deu vida interior ao mundo criado pela sua fantasia, e nesse interior, povoado a seu gosto, a imagem de branco reinava constantemente. Outra pequena imagem, a de uma menina de cabelos de ouro, visitava amiude esse pequeno universo. E como ambas conversavam e eram amigas, o menino se sentia feliz. Nesse ambito se vivia "uma vida diferente". Era o coração quem falava e não a razão. Possivelmente ali se encontrava a obra que, depois, o mundo conheceu com o nome de "A Divina Comedia".
Com o decorrer dos anos, o menino se fez rapaz. Não era aquela epoca para languidez, mesmo num poeta. Robusto, alto, viril e com sangue peninsular circulando-lhes nas veias, Dante não se perde na pura especulação filosofica ou poetica, As mulheres florentinas têm a pele fina, o olhar espesso e os labios maduros. Rima sorrisos e desdens e passa de uma a outra, sempre fiel a sua condição de enamorado: E diz:
"Sou alguem que quando
O amor o inspira, com a mão o traça o que no peito tem palpitando."
Ao voltar de uma farra, algo desalinhado e em companhia pouco recomendavel, passa Dante pelas ruas de Florença, em meio de um coro de risos e cantos.
Imediatamente, se detem.
- Se a terra me tragasse neste instante! - medita.
Mas já é tarde. Já foi visto.
- Como vai, Dante Alighieri? - pergunta a jovem, sorrindo encantadoramente.
- Feliz por ver-te, Beatriz Portinari - respondeu o poeta, contemplando-a fascinado.
O tempo não fez senão aumentar a graça e a beleza da jovem, embora sua pele palida parecesse estar tocada pela asa do fugaz, do que desaparece antes que se apague o explendor.
A jovem se despede graciosamente e se afasta com suas amigas. Dante a acompanha com o olhar; de repente, começa a correr; alcançando-a e pergunta:
- Diga-me, Beatriz, você nunca sonha comigo?...
Agitado pela carreira, aberto o gibão, o rosto aceso e os gestos um tantos entorpecidos, apresenta o jovem um aspecto diferente, que intimida a moça. As amigas, julgando-o ebrio, aconselham-na a retirar-se.
- Vamos querida Bice, deixe-o.
- Não, não vá! Responda-me - insiste Dante, aproximando-se ainda mais. Beatriz retrocede e se afasta rapidamente.
- Sempre é assim! Nos sonhos tambem não consigo alcança-la. Tem a pele demasiadamente branca.
Logo após este encontro, suas diversões têm o carater de orgias. Dante beija todas as bocas formosas que encontra, rima odes, bebe e chama de Beatriz a todas as mulheres.
- Num homem existe o anjo e o demonio - explica ele a um companheiro. Mas eu possuo uma caracteristica especial: tenho o anjo separado do demonio. O anjo se chama Beatriz, o diabo sou eu. Os dois juntos somos um.
- Você tem razão - replica o amigo, que está tão ebrio quanto ele. - Mas algum dia você se juntará ao seu anjo; não podem ficar sempre separados.
- O anjo tem a pele muito branca, e para se aproximar-se dele teria de começar uma vida nova... "La vite nuova".
Ah!... As veias azuis!... Finalizava o seculo XIII, e neste momento se desmoronava o vetusto sistema feudal imperante na Europa, a fim de dar lugar às primeiras tendencias republicanas. A nobreza e o povo disputavam o poder. Florença passava por momentos de crise e lutas politicas. E, enquanto as antigas classes dirigentes e o povo se enfrentavam em sangrenta luta, o verdadeiro dono da cidade era o bando dos comerciantes enriquecidos que ostentava o florin como emblema.
Foi nesta epoca que começou a participar da vida publica nosso poeta. Sua situação foi quase insignificante; mas surpreendido em meio de acontecimentos transcedentais, sofreu as consequecias dos odios e das injustiças que assolavam Florença. Foi condenado, pelo crime de "baratteria", ou seja, concussão e venalidade, a sofrer a pena de desterro. E, mais tarde, por se ter negado a atender uma citação judicial, foi incluido na seguinte sentença: "Toda pessoa designada na presente lista e detida no territorio da Republica será queimada a fogo lento até causar-lhe a morte".
A partir desse momento, começa o longo desterro para Dante. No exilio, nega-se a alistar-se nas fileiras dos que pensam tomar Florença de assalto, pois ama a Republica e não quer combatê-la.
"Anda, pequena canção ferina, anda,
Talvez vejas Florença, minha patria,
A cruel, a sem coração e sem piedade,
A que não quer saber de mim."
Desta forma termina uma de suas mais formosas canções.
O drama de sua vida se repete. Foi sempre um solitário, e agora as circunstancias o obrigam a continuar assim, a voltar-se ainda mais para o seu interior, nesse mundo ilimitado onde continuam reinando as mulheres.
Na encruzilhada dos caminhos, sempre é facil encontrar outros desterrados. Os que estão ausentes há mais tempo pedem noticias aos recém-chegados. Os membros da familia, os amigos... Dante encontra Casella, companheiro de badernas, musico e cantor, que lhe dá abundantes noticias.
- Lembra de Cecco Angliolieri, nosso poeta? Morreu.
- Morreu? - repete Dante.
- Ah!... E aquela formosa mulher que um dia encontramos, a filha de Folco Portinari?
- Que?... - interroga ansiosamente.
- Morreu!
- Morreu! - apos uma longa pausa. Dante reage e pergunta impetuosamente: - "De que morreu? Onde? Quando? Conte-me... conte-me!
- Morreu de uma doença muito rara - informou Casella. - Pouco depois da morte do pai, começou a declinar. Perdeu peso, e a sua alva pele se tornava cada vez mais transparente, parecia um vidro sobre a fina pele de suas veias.
- Basta... - interrompe o poeta - você está martirizando!
Beatriz!... Beatriz!... A única mulher que pode estar ao lado de minha mãe!
- Ignorava que a amasse tanto!...
- Eu mesmo o ignorava! Só agora sei!...
O que não conseguiu a Beatriz viva conseguiu a Beatriz morta. A mulher eterea e translucida ocupou no coração do poeta o lugar da decima musa, que, na verdade, é a única e primeira.
- Hei de dizer dela o que nunca se disse de mulher alguma - prometeu.
- "Apenas um ser nos falta e tudo está deserto."
Mas, não. Já nunca mais haveria de estar só o poeta. Pois a lembrança de Beatriz o acompanharia sempre. Inexoravel destino de uma mulher formosa e pura: ser o material da canção, já suave ou apagada, da delicada flauta, intima, já reverdecida ou jubilosa.

Anibal de La Vharga
 

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