O BANQUETE


"A fome é nossa aliada, Excelência. Sem ela, não temos por que distribuir cestas básicas e criar frentes de trabalho"

Publicado na Folha de S.Paulo, terça-feira, 24 de maio de 1998

FREI BETTO

"Excelência, precisamos dar uma punição exemplar aos que incentivam os saques", sugere em audiência, no fim da tarde, o ministro da Justiça.
"Não seria mais eficaz prender a fome?", pondera o presidente, alisando a aba de cetim do smoking.
"Prender a fome?", espanta-se o ministro. "Vê-se que Vossa Excelência não a conhece. Eu, que sou nordestino, sei o quanto ela é indomável. Por medo de que a fome me alcance, gosto de uma boa mesa."
A crítica suscita a ira do presidente: "Como não a conheço? Não leu os meus livros? Fiz mestrado e doutorado sobre a fome, estudei os tratados que visavam erradicá-la da América Latina, provei que uma economia dependente se torna refém dela. Graças à fome, aposentei-me na universidade aos 38 anos".
Constrangido, o ministro recua, preocupado com o horário apertado do presidente: "Entendo, Excelência, o quanto a fome foi útil à sua carreira. Mas não posso mandar a Polícia Federal prender a fome. Ela é imprescindível ao Nordeste. Sem ela, desestabiliza-se a oligarquia que domina meu Estado natal, fecham-se as autarquias criadas para administrá-la e se debilita a bancada governista no Congresso, pois nossos correligionários correm o risco de não ser reeleitos nas áreas atingidas pela seca".
Ansioso com o compromisso que o aguarda no Itamaraty, o presidente vê, pelas vidraças de seu gabinete, a noite descer sobre a capital.
"Quer dizer que não convém dar fim à fome?", indaga ao ministro.
"A fome é nossa aliada, Excelência. Sem ela, não temos por que distribuir cestas básicas e criar frentes de trabalho. Sem tais expedientes, ficamos sem votos. Por isso, é mais aconselhável prender os que incentivam os saques."
A secretária estende ao presidente o fax do Itamaraty com o cardápio da recepção: coquetel de camarões, lagosta a termidor, crepe de maçã flambado com sorvete de acerola.
"Então, ministro, prenda quem incentiva os saques, pois, se a turba prosseguir invadindo armazéns e expropriando caminhões, em breve não haverá mais fome. Temo que alcancem os armazéns do governo, nos quais guardamos os estoques reguladores de preços. Nesse caso, haverá sérios efeitos nos índices do mercado."
"Prender todos, Excelência?", pondera o ministro. "Há bispos e deputados que se manifestam a favor dos saques."
"Ora, ministro, é claro que não nos convêm mais atritos com a igreja. Nem com o Congresso, em que sofremos a derrota da Previdência. Os políticos são favoráveis aos saques por demagogia; o clero, por culpa de Tomás de Aquino."
"Tomás de Aquino?", repete o ministro. "Darei ordens para indiciá-lo."
"Não há mais tempo, ministro. Ele morreu em 1274."
"Então indiciarei os líderes do MST, a começar pelo Stedile. Antes, porém, quero estar seguro de que tal medida não terá reflexos negativos em sua campanha para a reeleição."
"De modo algum, ministro. Na falta de pão, só resta dar pau. Estou às vésperas de meu segundo mandato. Meu nome ficará gravado para sempre na história deste país. Você acredita que alguém se lembrará dos líderes dos sem-terra?"
Ao lado, a secretária pensa em Zumbi, Tiradentes, Angelim, Joana Angélica, Antonio Conselheiro, Marighella, Lamarca, Chico Mendes -mas se mantém calada. Não convém meter-se onde não é chamada nem atrasar a saída do presidente para o banquete no Itamaraty.


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