FREI BETTO
"Excelência,
precisamos dar uma punição exemplar aos que incentivam
os saques", sugere em audiência, no fim da tarde, o ministro
da Justiça.
"Não seria mais eficaz prender a fome?", pondera
o presidente, alisando a aba de cetim do smoking.
"Prender a fome?", espanta-se o ministro. "Vê-se
que Vossa Excelência não a conhece. Eu, que sou nordestino,
sei o quanto ela é indomável. Por medo de que a fome
me alcance, gosto de uma boa mesa."
A crítica suscita a ira do presidente: "Como não
a conheço? Não leu os meus livros? Fiz mestrado e
doutorado sobre a fome, estudei os tratados que visavam erradicá-la
da América Latina, provei que uma economia dependente se
torna refém dela. Graças à fome, aposentei-me
na universidade aos 38 anos".
Constrangido, o ministro recua, preocupado com o horário
apertado do presidente: "Entendo, Excelência, o quanto
a fome foi útil à sua carreira. Mas não posso
mandar a Polícia Federal prender a fome. Ela é imprescindível
ao Nordeste. Sem ela, desestabiliza-se a oligarquia que domina meu
Estado natal, fecham-se as autarquias criadas para administrá-la
e se debilita a bancada governista no Congresso, pois nossos correligionários
correm o risco de não ser reeleitos nas áreas atingidas
pela seca".
Ansioso com o compromisso que o aguarda no Itamaraty, o presidente
vê, pelas vidraças de seu gabinete, a noite descer
sobre a capital.
"Quer dizer que não convém dar fim à fome?",
indaga ao ministro.
"A fome é nossa aliada, Excelência. Sem ela, não
temos por que distribuir cestas básicas e criar frentes de
trabalho. Sem tais expedientes, ficamos sem votos. Por isso, é
mais aconselhável prender os que incentivam os saques."
A secretária estende ao presidente o fax do Itamaraty com
o cardápio da recepção: coquetel de camarões,
lagosta a termidor, crepe de maçã flambado com sorvete
de acerola.
"Então, ministro, prenda quem incentiva os saques, pois,
se a turba prosseguir invadindo armazéns e expropriando caminhões,
em breve não haverá mais fome. Temo que alcancem os
armazéns do governo, nos quais guardamos os estoques reguladores
de preços. Nesse caso, haverá sérios efeitos
nos índices do mercado."
"Prender todos, Excelência?", pondera o ministro.
"Há bispos e deputados que se manifestam a favor dos
saques."
"Ora, ministro, é claro que não nos convêm
mais atritos com a igreja. Nem com o Congresso, em que sofremos
a derrota da Previdência. Os políticos são favoráveis
aos saques por demagogia; o clero, por culpa de Tomás de
Aquino."
"Tomás de Aquino?", repete o ministro. "Darei
ordens para indiciá-lo."
"Não há mais tempo, ministro. Ele morreu em 1274."
"Então indiciarei os líderes do MST, a começar
pelo Stedile. Antes, porém, quero estar seguro de que tal
medida não terá reflexos negativos em sua campanha
para a reeleição."
"De modo algum, ministro. Na falta de pão, só
resta dar pau. Estou às vésperas de meu segundo mandato.
Meu nome ficará gravado para sempre na história deste
país. Você acredita que alguém se lembrará
dos líderes dos sem-terra?"
Ao lado, a secretária pensa em Zumbi, Tiradentes, Angelim,
Joana Angélica, Antonio Conselheiro, Marighella, Lamarca,
Chico Mendes -mas se mantém calada. Não convém
meter-se onde não é chamada nem atrasar a saída
do presidente para o banquete no Itamaraty.
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