VIDA E PAIXÃO SEM MORTE DO CARNAVAL BRASILEIRO


Publicado na Folha da Manhã - São Paulo, domingo, 24 de fevereiro de 1952

Neste texto foi mantida a grafia original

O Entrudo - As manifestações de Rua - A Alma Dorida dos Morros - As Escolas de Samba - As reuniões Grã-Finas nos Clubes Elegantes - Um Dominador Comum

QUANDO e onde nasceu no Brasil, o Carnaval? Claro que no Rio de Janeiro e consoante historidades que se deram ao trabalho de registrar os festejos de Momo em nosso país, a causa foi por 1641, por ocasião das festas comemorativas da aclamação de d. João IV: "Realmente para festejar aquele grande acontecimento, a 31 de março, foi organizado um prestito no qual tomaram parte 116 cavaleiros, entre os quais o proprio governador, merecendo os mais entusiasticos aplausos da multidão dois grandes carros profusamente ornamentados de flores e que desfilaram pelas ruas da cidade, ao som da charanga do licenciado Jorge Fernandes da Fonseca."
Pela descrição se vê que temos aqui o embrião do Carnaval. Muito longe de seu esplendor vindouro com corso nas ruas, lança-perfumes, mascaras, serpentinas, confetes, fantasias, bailes - toda a gama de pequenos delirios individuais que somados dão a grande loucura coletiva do triduo consagrado.

O Entrudo

Mas antes do Carnaval o que houve propriamente foi o entrudo. Anota Luís Edmundo: "Já nos tempos do sr. D. João VI, Debret observava que o Carnaval carioca, como o do resto do Brasil em nada se parecia com o que ele vira na França, uma vez que era organizado sem bailes de mascara e, mesmo, sem cortejos populares, com gente a pé, a cavalo ou em carruagens, pelas ruas. Era, como ele proprio observava, um carnaval dagua, três dias de folia desenfreada e chambã, sem musica, sem cortejo e sem bailados. Eram, alem de folganças de copo e mesa, de bebedeiras e de indigestões, chocarrices e facecias mais ou menos violentas e brutais, copia fiel dos velhos entrudos lisboetas que, ainda no começo da ultima centuaria não haviam mudado."

A Morte do Entrudo

O Entrudo durou até 1852. Por sua violencia e selvageria era fonte de grandes conflitos. Chegou, afinal, o Carnaval de 1853, e, com espanto de todos, os jornais publicavam o seguinte:
"Fica proibido o jogo do entrudo; qualquer pessoa que jogar incorrerá na pena de quatro a doze mil réis; e não tendo com que satisfazer, sofrerá de dois a oito dias de prisão. Sendo escravo, sofrerá oito dias de cadeia, caso seu senhor não o mandar castigar no calabouço com cem açoites, devendo uns e outros infratores serem conduzidos pelas rondas policiais à presença do juiz para julgar à vistas das partes ou testemunhas que presenciaram a infração."
"As laranjas de entrudo que forem encontradas pelas ruas ou estradas serão inutilizadas pelos encarregados das rondas fiscais. Aos fiscais com seus guardas tambem fica pertencendo a execução desta pena. E para constar faço publico o cumprimento da citada portaria. Rio de Janeiro, 4 de fevereiro de 1853. (a) André Mendes da Costa, fiscal da freguesia da Candelaria."
Neste ano anotam outros cronistas do carnaval: "Malgrado essa proibição o povo, às escondidas, jogava limões de cheiro, quando não eram baldes de agua suja."
"O proprietario do Hotel Inglês, que morava na rua de São José, teve que reagir a pauladas contra um caixeiro de um estabelecimento da rua do Ouvidor, por ter atirado sobre ele uma porção de agua já servida."
"Entretanto não se deixou de obedecer em parte ao edital, pois foi muito restrito, neste ano, o jogo do entrudo."
"Entre as casas, que vendiam mascaras e vestes carnavalescas, a mais notavel era a casa do Eugenio, que ficava na rua dos Latoeiros n.o. 87, hoje Gonçalves Dias, esquina da rua do Rosario."
"O Eugenio anunciava que em seu estabelecimento tinha todas as especies de vestimentas carnavalescas: dominós de cetim, trajes de Debardeurs, de Chicards, de palhaço e mascaras de arame, cetim, cera e papelão."
"Dizia tambem que havia escolhido, para se estabelecer, aquele local, a pedido de varias pessoas, por ter saida oculta e muitas não gostaram de ser vistas."
"Quanto a bailes carnavalescos, poucos foram os deste ano. Assinalam os jornais, o do Teatro Provisorio e o do Paraiso, no Hotel do Nicola."
"O proprietario desse hotel declarava que o custo de cada ceia era e de 1$600, por pessoa, e que a mesma se compunha de três pratos, a escolher, uma garrafa de Bordéus ou de Lisboa e pão à vontade. Parece que os foliões era ali que iam dar expansões aos seus prazeres."
No ano de 1854, o entrudo estava em franca decadencia, graças a energia do chefe de Policia Alexandres Joaquim de Siqueira, podendo dizer-se que foi nessa data que ele desapareceu para sempre.
Houve bailes no Provisorio e espetaculo no São Pedro, que levou a peça "A Dama de S. Tropez", sendo o papel de Mauricio desempenhado por João Caetano.
O espetaculo foi completado pela comedia "Um Passo a Dois e Outro a Quatro" e pela força "Os Dois Tambores".
Comenta o livro de Melo Barreto Filho e Hermeto Lima: "A Historia da Policia do Rio de Janeiro: - O Eugenio continuava a vender as suas mascaras e vestimentas na rua dos Latoeiros. Nesse ano ele fez o seu anuncio em versos:
"Rapazes, alerta, alerta,
Folgazões, bons pagodeiros,
Correi à casa do Eugenio
Na esquina dos Latoeiros.

Lá vereis, com galhardia,
Ricos pierrôs debardores,
Polichinelos, druidas,
Guerreiros e mais pastores.

Dominós e vivandeiras,
Turcos e americanos,
Hotentoes e mais chineses
Com seus cachimbos e abanos.

Muitas outras vestimentas
Seria longo narrar;
Mascaras, penachos e fitas
Não se pode ali contar.

A respeito de aluguel
O careca é barateiro
É manchacaz generoso
Gosta muito de dinheiro."

Às vezes se fala em decadencia do Carnaval. Mas a impressão mais verdadeira que se pode ter é a de que o Carnaval pode mudar de feições, continuando essencialmente o mesmo. O mesmo principalmente no seu sentido simbolico de manifestação de nossas componentes mais enraizadamente romanticas, mais anarquicamente libertas, desrespeitadoras de tudo o que em nossa organização social pudesse haver de disciplina e senso de hierarquia. Carnaval violento sob a forma primitiva de entrudo, carnaval de rua com as escolas de samba, descendo delirantemente dos morros e contaminando a cidade de sua orgia e de seus sestros; carnaval grã-fino de clube elegante, há em todas as suas manifestações possiveis, através do tempo e através do espaço, um denominador comum, reflexo das mais sinceras e mais doloridas realidades do povo brasileiro. Doloridas, embora se extravase sob a forma de extroversão e euforia...


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