BERNANOS DANÇANDO NO PARAÍSO


Publicado na Folha de S.Paulo, domingo, 24 de dezembro de 1995

por Bernardo Carvalho

"Ao longo de toda a noite de 24 de dezembro de 1941, longe da guerra e do resto da humanidade, mas também da família, que teve de ceiar sem ele, o escritor católico Georges Bernanos foi visto às gargalhadas no meio do campo perto da fazenda de Cruz das Almas, repetindo incessantemente e aos berros: 'Satã! Satã!'"

Na noite de 24 de dezembro de 1941, o escritor francês Georges Bernanos, autor de "Sob o Sol de Satã", em que um padre perdido no campo topava com o diabo em seu caminho, e de "A Impostura", entre outros, exilado no interior de Minas Gerais, saiu da fazenda de Cruz das Almas, que lhe pertencia, em direção ao sítio de um amigo, onde já o esperavam a mulher e os filhos para a ceia de Natal. Tinha decidido ir depois, a pé, apesar da doença. Ficou para trás relendo e dando os últimos retoques em sua célebre "Carta aos Ingleses", que terminara havia cerca de um mês e seria publicada em 42, primeiro no Rio de Janeiro e depois, clandestinamente, na Europa. Saiu sozinho às oito horas e seguiu pela estradinha de terra diante do imenso horizonte de morros nus e selvagens que se acavalavam uns sobre os outros por centenas de quilômetros, para despencarem no mar ao sul e se perderem ao norte, pouco a pouco, no sertão sem fim, como escrevera. Passou pela cruz de madeira, a bendita cruz das almas, que marcava o massacre, havia mais de cem anos, de selvagens que deceparam e devoraram seus "irmãos batizados", como escrevera. Ia sob a lua cheia, por onde não podia haver vivalma, recitando em voz alta, carrancudo e com a indignação necessária, a sua "Carta aos Ingleses": "Homens da Europa, que lhes restará de suas experiências atrozes senão a certeza de terem sido mais ou menos logrados?..." Já cheio daquela estrada e por causa do atraso, a meio caminho o escritor católico decidiu tomar um atalho pelo vale, que seria mais rápido. "Homens da Europa! Homens da Europa! É verdade que quem não detiver o segredo de sua história e de seus destinos não os poderá ver sem repugnância a devorarem uns aos outros... Homens da Europa, vocês escandalizaram o mundo... Desconfiem da Europa, americanos!", ia dizendo. E por seguir disperso no texto que declamava, de cor e aos brados, só depois de uma hora pela mata e os pastos Bernanos compreendeu que havia muito tinha passado a trilha do sítio do amigo, estava perdido e ofegante. Tentou correr entre os arbustos, voltar atrás, mas já não sabia como. Sentiu o corpo doente, pesado e horrendo. Sentou-se sobre uma pedra e rezou, longe da guerra e do resto da humanidade, pediu a Deus que lhe mostrasse o caminho. Passada quase uma hora, ao ouvir um homem que a alguns metros, de repente e do nada, mascando um cigarro de palha, lhe perguntava se precisava de ajuda, Bernanos, que estava com o rosto caído entre as mãos, virou-se com os olhos em chamas para o caipira e, levantando-se num pulo, abriu os braços e correu em sua direção, como quem reconhece um amigo. Diante daquela figura monstruosa, com olhos de fogo, que aos trancos se aproximava falando uma língua estranha, o jeca arregalou os olhos e ficou paralisado por um instante para ao final, ao que parece, correr também, só que para o outro lado, gritando: "Satã! Satã!". Quando compreendeu o que dizia o camponês a sua frente, o que lhe custou ainda alguns metros em desabalada correria, o escritor começou a rir e teve que parar no meio do pasto, por não poder fazer uma coisa e outra ao mesmo tempo. Riu sem parar, a noite inteira, e, de tanto rir, foi arrancando com o calor as próprias roupas, como quem quer se livrar de alguma coisa que é o próprio corpo mas ao mesmo tempo já se regozija com sua descoberta. A família, que de nada soube, em parte por respeito e em parte pelas dificuldades de explicar-lhes na língua que fosse cena tão peculiar e complexa, teve que se contentar com a versão mais simples e incompleta da história, que tinha se perdido na mata. E não foram poucos os que, tomando conhecimento do fato, acreditaram que, naquele Natal, o escritor francês e católico, já tão estranho por natureza, exilado, taciturno e com olhos de fogo, tivesse enlouquecido de vez. Outros, no entanto, ao vê-lo sacudindo-se de tanto rir pelos campos, longe da guerra e do resto da humanidade, ao longo de toda a noite de Natal, preferiram acreditar que tivesse por fim conhecido a alegria e dançasse no paraíso.


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