por Bernardo Carvalho
"Ao
longo de toda a noite de 24 de dezembro de 1941, longe da guerra
e do resto da humanidade, mas também da família, que
teve de ceiar sem ele, o escritor católico Georges Bernanos
foi visto às gargalhadas no meio do campo perto da fazenda
de Cruz das Almas, repetindo incessantemente e aos berros: 'Satã!
Satã!'"
Na
noite de 24 de dezembro de 1941, o escritor francês Georges
Bernanos, autor de "Sob o Sol de Satã", em que
um padre perdido no campo topava com o diabo em seu caminho, e de
"A Impostura", entre outros, exilado no interior de Minas
Gerais, saiu da fazenda de Cruz das Almas, que lhe pertencia, em
direção ao sítio de um amigo, onde já
o esperavam a mulher e os filhos para a ceia de Natal. Tinha decidido
ir depois, a pé, apesar da doença. Ficou para trás
relendo e dando os últimos retoques em sua célebre
"Carta aos Ingleses", que terminara havia cerca de um
mês e seria publicada em 42, primeiro no Rio de Janeiro e
depois, clandestinamente, na Europa. Saiu sozinho às oito
horas e seguiu pela estradinha de terra diante do imenso horizonte
de morros nus e selvagens que se acavalavam uns sobre os outros
por centenas de quilômetros, para despencarem no mar ao sul
e se perderem ao norte, pouco a pouco, no sertão sem fim,
como escrevera. Passou pela cruz de madeira, a bendita cruz das
almas, que marcava o massacre, havia mais de cem anos, de selvagens
que deceparam e devoraram seus "irmãos batizados",
como escrevera. Ia sob a lua cheia, por onde não podia haver
vivalma, recitando em voz alta, carrancudo e com a indignação
necessária, a sua "Carta aos Ingleses": "Homens
da Europa, que lhes restará de suas experiências atrozes
senão a certeza de terem sido mais ou menos logrados?..."
Já cheio daquela estrada e por causa do atraso, a meio caminho
o escritor católico decidiu tomar um atalho pelo vale, que
seria mais rápido. "Homens da Europa! Homens da Europa!
É verdade que quem não detiver o segredo de sua história
e de seus destinos não os poderá ver sem repugnância
a devorarem uns aos outros... Homens da Europa, vocês escandalizaram
o mundo... Desconfiem da Europa, americanos!", ia dizendo.
E por seguir disperso no texto que declamava, de cor e aos brados,
só depois de uma hora pela mata e os pastos Bernanos compreendeu
que havia muito tinha passado a trilha do sítio do amigo,
estava perdido e ofegante. Tentou correr entre os arbustos, voltar
atrás, mas já não sabia como. Sentiu o corpo
doente, pesado e horrendo. Sentou-se sobre uma pedra e rezou, longe
da guerra e do resto da humanidade, pediu a Deus que lhe mostrasse
o caminho. Passada quase uma hora, ao ouvir um homem que a alguns
metros, de repente e do nada, mascando um cigarro de palha, lhe
perguntava se precisava de ajuda, Bernanos, que estava com o rosto
caído entre as mãos, virou-se com os olhos em chamas
para o caipira e, levantando-se num pulo, abriu os braços
e correu em sua direção, como quem reconhece um amigo.
Diante daquela figura monstruosa, com olhos de fogo, que aos trancos
se aproximava falando uma língua estranha, o jeca arregalou
os olhos e ficou paralisado por um instante para ao final, ao que
parece, correr também, só que para o outro lado, gritando:
"Satã! Satã!". Quando compreendeu o que
dizia o camponês a sua frente, o que lhe custou ainda alguns
metros em desabalada correria, o escritor começou a rir e
teve que parar no meio do pasto, por não poder fazer uma
coisa e outra ao mesmo tempo. Riu sem parar, a noite inteira, e,
de tanto rir, foi arrancando com o calor as próprias roupas,
como quem quer se livrar de alguma coisa que é o próprio
corpo mas ao mesmo tempo já se regozija com sua descoberta.
A família, que de nada soube, em parte por respeito e em
parte pelas dificuldades de explicar-lhes na língua que fosse
cena tão peculiar e complexa, teve que se contentar com a
versão mais simples e incompleta da história, que
tinha se perdido na mata. E não foram poucos os que, tomando
conhecimento do fato, acreditaram que, naquele Natal, o escritor
francês e católico, já tão estranho por
natureza, exilado, taciturno e com olhos de fogo, tivesse enlouquecido
de vez. Outros, no entanto, ao vê-lo sacudindo-se de tanto
rir pelos campos, longe da guerra e do resto da humanidade, ao longo
de toda a noite de Natal, preferiram acreditar que tivesse por fim
conhecido a alegria e dançasse no paraíso.
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