PIRATININGA : 1532 - 1560
Sergio
Buarque de Holanda
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Publicado
na Folha da Manhã, domingo, segunda-feira, 24 e 25
de janeiro de 1954
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Neste texto foi mantida a grafia original
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ROMA, janeiro (Via Panair do Brasil) - A fundação,
há quatrocentos anos, de um povoado de portugueses apartado
doze leguas do litoral atlantico, em sertão quase invio - só
acessivel através de asperas veredas, que até ao seculo
passado seriam o tormento ou o espantalho dos viajantes - sugere problemas
que transcendem o alcance de uma simples historia regional. Em parte
alguma das suas conquistas, certamente em lugar algum do Brasil, tinham
os lusitanos formado um assento urbano tão longe da costa maritima
ou dos rios navegaveis. O principio que, expresso ou não, governa
por essa epoca toda a sua expansão ultramarina, manda que as
regiões de terra a dentro não se povoem antes de assegurado
o povoamento, a defesa e a posse da marinha. O contrario seria desampararem-se,
com funesto efeito, as mesmas conquistas, sobretudo se em sitios infestados
de inimigos e corsarios.
Precisamente no Brasil, aquele principio, ditado pelas condições
especiais de sua metropole européia, que não dispunha
de gente numerosa e nem, por isso mesmo, de poderosa milicia, para
ensaiar em seu longo imperio uma empresa de molde aparatoso, comparavel
à que se vinha realizando nas Indias de Castela, é manifesto
já nas cartas de doação das capitanias, onde
se estipula que aos donatarios será licito erigirem tantas
vilas quantas queiram junto ao mar ou aos rios navegaveis, porem que
pela terra a dentro as não poderão fazer, salvo se entre
uma e outra corra espaço minimo de seis leguas. A idéia
era, claramente, conterem-se os povoadores nas imediações
dos portos de embarque e pontos vulneraveis da costa, pois não
seriam os colonos em tamanho numero que pudessem ser encaminhados
ao sertão sem se despovoarem aqueles sitios. Em resultado de
uma tal providencia, o Brasil quinhentista não abriria exceção
à regra então dominante no mundo português, que
um historiador dos nossos dias definiu sugestivamente dizendo que
constava de "uma linha de fortalezas e feitorias de dez mil milhas
de comprido" (1)
Mas a exceção existe. Existe, paradoxalmente, no ponto
exato onde a barreira das montanhas, que no Brasil acompanham a orla
costeira, parece oferecer maior estorvo ao acesso e penetração
do territorio. Ainda mais: "O empenho de triunfar sobre esse
natural obstaculo e de se instalar serra acima parece perseguir os
colonizadores logo depois de familiarizados com o litoral vicentino.
Nada, ou quase nada, sabemos das entradas daqueles portugueses - reinóis
ou mazombos, brancos e mestiços da terra - que, antes de chegar
a armada de Martim Afonso de Sousa, tinham na ilha de São Vicente
um povoado estavel, onde se dedicavam ao trafico de escravos indigenas.
Mas não foi certamente por acaso que o capitão português,
tendo corrido toda a costa conhecida dos demonios portugueses na America,
elegeu aquele ponto para penetrar o sertão e ali levantar pelourinho
nos campos de Piratininga. Como, por falta de comodidade, logo se
dispersasse essa primeira vila, nem assim esmorece o empenho de povoar
o planalto. Passados quase vinte anos, em 1550, o padre jesuita Leonardo
Nunes escala, por sua vez, a serra fragosa, encontra ali derramados
os cristãos pertencentes ao nucleo disperso, que não
tinham tornado ao litoral, e trata de juntá-los novamente.
Como não pudessem ter vida civil ou religiosa, por falta de
quem curasse disso, fez com que se reunissem todos, desta vez à
borda do campo, em torno da pequena igreja que fizera construir. Com
razões provaveis supõe Serafim Leite que se tratasse
da ermida e povoação, mais tarde vila, de Santo André,
o celebre reduto de João Ramalho e de seus filhos mamelucos
(2).
O nucleo originario da atual São Paulo é notorio que
não foi ali, mas em lugar distante duas leguas para o sertão,
à margem do rio que então se chamava Piratininga e,
de fato, "onde Martim Afonso de Sousa primeiro povoou" (3).
Sabe-se hoje que a fundação dessa nova aldeia, por iniciativa
e esforço de Nobrega, ocorreu no dia 29 de agosto de 1553.
Quando, a 25 de janeiro do ano seguinte, se inaugurou a casa nova,
de taipa, destinada aos irmãos, ainda se conservava no local
a velha cabana em que ficara situada a "escola de meninos"
do irmão Afonso Rodrigues, diferente da "escola de gramatica",
ou de latim, do irmão José de Anchieta. O adjetivo "velhissimo",
expressamente aplicado ao edifício ("pauperrimo et vetustissimo...
tuguriolum") no texto jesuitico onde vêm consignados estes
fatos, não combina facilmente com a suspeita de que datasse
apenas do estabelecimento preliminar dos inacianos anterior de cinco
meses à fundação oficial e ao batismo do povoado.
É perfeitamente natural, por outro lado, a suposição
de que subsistisse ainda em 1554, no local, alguma das taperas da
vila de Martim Afonso de Sousa. Nesse caso não é audacioso
dizer que o povoado de Nobrega se enlaça perfeitamente ao de
Martim Afonso e, assim, que as comemorações atuais se
hão de referir, não tanto à fundação
inicial, como a uma segunda e definitiva fundação. A
primeira dataria, em realidade, de 1532.
Nada disso diminui o papel que coube ao Provincial dos jesuitas nas
origens da atual São Paulo. Melhor do que outros, melhor do
que o primeiro Governador-Geral, soubera ele ver as vantagens, ao
menos para o mister da catequese, de uma entrada e fixação
nas areas de serra-acima. E ainda que essas vantagens parecessem resumir-se,
de inicio, no seu desejo de conservar o gentio da terra livre de contacto
assiduo com os colonos, o interesse que depois mostrou na mudança
para o novo local dos moradores de Santo André da Borda do
Campo - mudança que se fará em 1560 por determinação
de Mem de Sá - indica que tal razão não seria
preponderante em seu pensamento. E em carta de março de 53,
escrita a seu mandado e só agora divulgada por Serafim Leite,
diz-se que já era intenção do Provincial ir pela
terra dentro e fazer entre os gentios "uma cidade" (4).
Contra esse pensamento, as razões opostas por Tomé de
Sóusa, que tratou obstinadamente de embargar o plano de um
novo estabelecimento na boca do sertão, obedecem ainda à
concepção portuguesa tradicional, que só via
em uma tal iniciativa o risco de ficar inteiramente desamparado o
litoral maritimo. Esse risco era particularmente sensível no
momento em que surgia noticia ou esperança de haver ouro e
prata por aquele sertão. À mesma razão alude
Nobrega quando tenta discriminar as causas da resistencia do governador.
"Porque", observa em carta daquele ano de 53, "fôra
abrir as portas a grandes males e a se despovoar esta capitania".
Adiante, na mesma carta, justifica-se mais pormenorizadamente aquela
noticia, ou esperança, com a alegação de se terem
encontrado minas de prata, embora, por falta de quem as fundisse,
não se soubesse ao certo o que fosse, "as quais minas",
diz-se textualmente, "acharam e descobriram os castelhanos do
Paraguai, que estarão daqui desta Capitania (de São
Vicente) 100 leguas e está averiguado estarem na Conquista
de El Rei de Portugal".
É de todo interesse aproximar-se a essa informação
o constante de um documento aparentemente ainda inedito existente
no "Archivo General de Indias de Sevilha", onde o espião
castelhano Martin de Orue relata os resultados da missão secreta
que lhe fora confiada em cedula de sua majestade Catolica, de obter
pessoalmente, com a melhor diligencia, em Lisboa, varias informações
relativas à expedição de Luís de Melo.
Nesse papel, a que tive oportunidade de aludir em outra ocasião
(5), declara Orue que, no mês de setembro de 1553, "veio
um homem da mesma capitania de São Vicente e vizinho dela,
chamado Adão Gonçalves, por parte do capitão
daquela terra, o qual trouxe certos metais que houvera da gente do
Rio (da Prata), que lhe haviam dado os espanhóis que tinham
pousado em sua casa e o que lhes tomou o capitão da terra e
parte desses metais diz que eram da Assunção e parte
do Piquiri". Acrescenta que, chegando a Lisboa, Gonçalves
dera parte do caso a Martins Afonso de Sousa e, feitos dos metais
certos ensaios, acharam que era prata e de boa qualidade (6).
A noticia logo se divulgaria em Lisboa e os mesmos Martim Afonso e
Adão Gonçalves, juntamente com dois mercadores que tinham
seus negocios de açucar em São Vicente, a saber o flamengo
João Benyste (isto é Jan Van Hielst, agente dos Schetz
de Antuerpia) e o genovês Felipe de Adorno, pleitearam de sua
alteza que por nenhum modo permitisse passagem pelo caminho entre
São Vicente e Assunção, caminho este que Tomé
de Sousa mandaria cegar, por assim convir melhor à real fazenda.
Ao mesmo tempo solicitavam lhes fosse autorizado entrar pela terra
a dentro em busca de minas e metais, e que onde os achassem e povoassem,
pagariam os quintos e direitos pertencentes à Coroa. Outrossim,
onde quer que encontrassem os ditos metais, e por espaço de
vinte leguas em torno, nenhuma outra pessoa poderia entrar a buscá-los
ou descobrí-los.
Segundo o mesmo documento, deferiu El Rei ao pedido, dando aos requerentes
o alvará necessario. E seu fim - comenta Martin de Orue - "era
ir às minas do Piquiri, porque dizem que aquela terra e ainda
a Assunção entram na demarcação do rei
de Portugal". Com esse despacho, já em março do
ano seguinte saiam de Lisboa, com destino a São Vicente, os
ditos Gonçalves e Adorno, decididos a pôr o plano em
execução.
Seja qual for a parte de fantasia que possa entrar na relação
de Ourue, entregue ao "Conselho de Sua Majestade o Imperador
em Valadolid" a 5 de setembro de 1554, suas informações
completam e ampliam em partes o que sabemos através das palavras
de Nobrega e de Tomé de Sousa. A noticia da existencia de prata
no Piquiri resultaria sem fundamento após exames mais acurados
do que os que se teriam ensaiado em 1553 no metal ali encontrado.
E quando Felipe de Adorno e Adão Gonçalves partiram
de Lisboa, em março de 1554 já estava fundada, e com
seu nome definitivo, a povoação nova do campo de Piratininga.
Os pretensos achados de minas só indiretamente poderiam ter
influido no bom exito do estabelecimento. E no entanto é de
todo provavel que de algum modo estimulassem a penetração
do territorio. É de crer que a mesma causa tivesse agido vinte
e dois anos antes sobre o animo de Martim Afonso quando decidira criar
um vila no planalto: por isso ficou dito acima que não seria
casual sua decisão de escolher este e não outro ponto
dos dominios portugueses para fundar um primeiro nucleo fixo de moradores
fora da orla maritima. E tambem não terá sido por acaso
- acrescente-se - que, tendo percorrido toda a costa brasileira, foi
em São Vicente que obteve seu quinhão ao instituir-se
o regime das capitanias.
Em realidade, das terras que quase certamente cabiam na demarcação
lusitana da America, era esta, geograficamente, a mais chegada às
regiões platinas, já celebres pelas riquezas fantasticas
que lhe atribuiam os primeiros navegantes. Já ao sul de Cananéia
principiava a area que esses marujos tinham batizado com o nome de
"costa do ouro e da prata". Dali os homens da armada de
d. Nuno Manuel tinham levado, a partir de 1514, noticias da existencia
de um misterioso povo serrano que trazia "ouro batido à
maneira de arnez do peito". Ali, segundo se dizia, fora colhido
o fabuloso machado de prata que tanto trabalho deveria dar às
imaginações quinhentistas. Por ali, conforme tinham
apurado marujos castelhanos e lusitanos entre gente da beira-mar,
ganhava-se facil acesso ao país do lendario Rei Branco. Do
Porto dos Patos, em Santa Catarina, saira o português Aleixo
Garcia, um dos naufragos da expedição de Solis para
a magnifica jornada aos contrafortes andinos, de onde pudera recolher
grande copia de metal precioso antes de ser sacrificado, no caminho
de volta, pelos indios carijós. Dessa expedição
provinham as peças de ouro que outro componente da armada de
Solis, Melchior Ramirez, exibira a Caboto em Santa Catarina. Um companheiro
de Ramirez, Henrique de Montes, tambem conservava, consigo, grande
quantidade de ouro.
E segundo depoimento de uma testemunha, dizia este à gente
da expedição que "nunca ombres fueron tan bien
aventurados como los de la dicha armada, que avia tanta plata y oro
en el Rio de Solis, que todos serian ricos..." (7). Desse mesmo
Henrique de Montes sabe-se que Martim Afonso o levaria consigo como
lingua e pratico da terra e não será de admirar se,
conhecedor da aventura de Garcia, foi um dos animadores da entrada
que o futuro donatario mandou sair de Cananéia rumo ao sertão
longinquo, sob o comando de Pero Lobo. Em reconhecimento pelos seus
prestimos, apesar do malogro da jornada, foi ele recompensado com
uma extensa sesmaria, a mesma que, por sua morte, vitima dos indios,
seria dada a um criado do donatario, Brás Cubas.
Se Martim Afonso fixou sua escolha, para a primeira povoação
sertaneja, no interior das terras de São Vicente, não
no da Cananéia ou de Santa Catarina, a razão estaria
em que a adjudicação destas terras à Coroa lusitana
tinha menos probabilidades de ser contestada por parte dos castelhanos,
inclinados naturalmente a ver ampliadas, tanto quanto possivel as
areas de sua demarcação. Os portugueses, por sua vez,
pagavam em moeda identica, e vimos como bem mais tarde ainda pretendiam
negar os direitos de seus vizinhos sobre Assunção. Contudo
uma prudente cautela aconselhava Martim Afonso a não trocar
o certo pelo duvidoso ou discutivel, sob pena de deitar a perder todo
o seu esforço. Se não faltava entre castelhanos quem
reivindicasse para sua coroa a propria São Vicente, tais pretensões
eram mais indecisas: prova estava no fato de já existir de
longa data no litoral vicentino um povoado de portugueses, e portugueses
que mantinham relações amistosas com o gentio de serra
acima. Tudo isso era de perfeito conhecimento dos marinheiros espanhóis
que frequentavam tais paragens e traficavam com os moradores ou se
utilizavam de seus serviços. A simples presença de um
tal nucleo onde se incluiam, sem duvida, homens longamente habituados
à terra e conhecedores de seus segredos, não era menos,
para Martim Afonso, um motivo de boa esperança. Entre esses
homens poderia ter colhido o capitão informes sobre a possibilidade
de comunicações por terra firme com o Peru ou a Nova
Granada. De tal possibilidade há noticia posterior nos curiosos
"apontamentos oferecidos a d. João III por certo Diogo
Nunes acerca das viagens que realizou em terras peruanas, onde participou
da expedição de Mercadillo ao país dos Omagua.
Nesse texto, que Varnhagen encontrou na Torre de Tombo e foi o primeiro
a divulgar, diz-se como do Peru se poderia chegar ao Brasil pelo Amazonas,
e acrescenta-se: "Tambem poderei ir a São Vicente atravessando
pelas cabeçadas do Brasil..." O proprio Varnhagen tentou
indentificar o redator do papel com certo Diogo Nuñez de Quesada
que em 1544 andou em Lisboa de volta do Peru. Capistrano de Abreu
mostra, no entanto, em nota à História Geral do Brasil,
a improbabilidade de uma tal identificação. E, por sua
vez, associa Diogo Nunes ao mameluco levado do Brasil por Tomé
de Sousa, mencionado em uma carta que o embaixador Luís Sarmiento
de Mendoza escreveu de Lisboa no ano de 1553. Esse mameluco, filho
de um português, tambem fora do Peru ao Brasil levando noticias
de ouro e prata. Como argumento em favor de seu alvitre, observava
Capistrano de Abreu que "é mais facil existir no mesmo
tempo, no mesmo lugar, com os mesmos planos, um só homem do
que dois". E ainda acrescenta: "Se Diogo Nunes descendia
de pai português e mãe india, é provavel que fosse
natural da capitania de São Vicente".
Não obstante tamanhas probabilidades, as conjeturas do grande
historiador são prejudicadas pelo seguinte trecho que se lê
na relação acima citada de Martin de Orue: "Del
peru vyno por el año pasado un pasajero natural português
que se dize domyngo nunez natural de moron ques Junto ala Raya de
Castilla el qual trajo de veynte a treynta myll ducados este andando
persuadiendo al Rey por una conquysta por el (Brasil) para por ally
entrar a las espaldas de cuzco". Essa passagem deixa poucas duvidas
sobre o assunto. A dificuldade principal para a identificação
entre o Nunez natural de Mourão e o dos "Apontamentos",
ou seja a diferença nos prenomes, torna-se de pouca monta quando
ponderamos que "Domingo" e Diego" são palavras
que se podem eventualmente confundir e que, abreviadas, segundo o
uso generalizado na epoca, não apresentam diferença
alguma.
É certo que as comunicações diretas entre São
Vicente e o Paraguai, caminho do Peru, não teriam sido utilizados
entre europeus, muito antes da fundação de São
Paulo. Do contrario explica-se mal a informação escrita
depois de 1554 por d. Mencia Calderon, viuva de Juan de Sanabria,
e publicada pelo historiador chileno Morla Vicuña, de que se
podia ir a Assunção, de São Vicente "por
cierto camiño nuevo que se habia descubierto". Justamente
por esse caminho tinham querido alcançar o Paraguai alguns
dos naufragos da armada de Sanabria. Nos dois anos anteriores tinha
sido ele trilhado por numerosos castelhanos e portugueses que, segundo
parece, iniciaram atraves dele um rendoso comercio. Para os castelhanos
especialmente, era de grande proveito, depois do abandono da primeira
Buenos Aires, por fornecer ocasião de negocios lucrativos com
os moradores. Tanto que Tomé de Sousa, em carta de junho de
1553, observava como, em resultado das comunicações
frequentes entre as duas cidades, a alfandega de São Vicente
rendera, no ano anterior, cem cruzados de coisas que traziam a vender
os castelhanos. Já me ocorreu, em outro escrito, apontar alguns
nomes de viajantes que nos são conhecidos através de
documentos da epoca. Pode-se dizer que essas comunicações
constituem, propriamente, uma pré-historia das bandeiras paulistas,
ainda que fossem feitas nos dois sentidos e mais ativamente, talvez,
por parte dos castelhanos do que dos lusitanos. Contudo, inquieto
com as consequencias possivelmente funestas que podiam resultar de
tais contatos, principalmente depois das noticias das supostas minas
de prata do Piquiri e do Paraguai, o primeiro governador geral ordenou
que cessasse de todo o transito. E a partir de então, apesar
da viagem clandestina, pelo Tietê, de João de Salazar
e seus companheiros - entre eles os dois filhos de Luís de
Gois - e, mais tarde, das lutas de Jeronimo Leitão contra os
carijós do sul, cessam quase de todo, por longo tempo, os contatos
por terra firme com o sul. A propria atração do metal
precioso que por essa epoca seria menos forte entre os moradores da
capitania do que a caça ao gentio da terra, deveria incliná-los
para outras direções. Era esse o resultado das pesquisas
de Luís Martins e Brás Cubas como o seriam tambem os
dois achados dos dois Sardinhas, pai e filho.
Segundo todas as probabilidades, a um parente do primeiro donatario
e do primeiro governador-geral, a d. Francisco de Sousa, se deverá,
já em principios do seculo seguinte, a intensificação
das entradas em outra direção, que já não
será a do Paraguai e do Prata. A bandeira de André Leão,
que data de 1601, dirigiu-se para a região do rio São
Francisco. E o mesmo rumo tomaria a de Nicolau Barreto, segundo os
estudos de Orville Derby, que já hoje nos parecem novamente
os mais convincentes, não obstante as conclusões diferentes
de historiadores recentes, que resultariam no entanto, de um equivoco
na leitura da ata da Camara de São Paulo onde se esclarecem
certos pormenores da expedição. E contudo não
se perde a lembrança do caminho do sul, revivida, ao contrario,
depois que, em 1505, quatro soldados vindos de Vila Rica, provincia
do Paraguai, chegam inesperadamente à terra paulista.
Não é improvavel que o projeto inicial de d. Francisco
visasse, a partir de São Paulo, localizar mais facilmente as
mesmas minas que expedições anteriores tinham procurado
a partir das capitanias do centro. É interessante notar-se
que, justamente durante seu governo, segundo se apura de documentos
existentes no Arquivo Mediceo, de Florença, e ainda mal conhecidos,
o então grão-duque de Toscana, Fernando I, pretendeu
seriamente criar um estabelecimento no litoral do Espirito Santo,
o outro caminho natural para as minas do sertão remoto. E é
significativo o interesse que o mesmo grão-duque, mostrou pelas
coisas do Brasil, na correspondencia mantida com Baccio de Filicaja,
seu sudito, e companheiro de d. Francisco, que o levara a São
Paulo como engenheiro das minas. Quando e se forem encontradas a descrição
e a relação das suas viagens no Brasil que Baccio escreveu
para o grão-duque, é provavel que venham à luz
muitos fatos ainda desconhecidos ou mal explicados acerca desse periodo
(8). É inegavel, contudo, que a partir de d. Francisco de Sousa,
São Paulo estava maduro para a vocação pioneira
dos seus moradores. Vocação que germinara contudo desde
1532, com a chegada de Martim Afonso, firmara-se em 1554, quando Manuel
da Nobrega, contrariando as opiniões mais tradicionalistas,
fundou a Casa de São Paulo - em sitio onde os indios pudessem
ter melhor sustento - e se consolida, definitivamente, a partir de
1560, quando, por ordem de Mem de Sá, são mudados para
o campo os moradores da vila de Santo André.
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Notas
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1. - R.H. Tawney, "Religion and the Rise of Capitalism",
Londres, 1936, pg. 72.
2. - Serafim Leite S.J., "Nobrega e a Fundação
de São Paulo" Lisboa, 1953, pg. 30.
3. - "Cartas de Nobrega" (Rio de Janeiro, 1931), pg. 145.
4. - Serafim Leite, S.J., op. cit., pg. 18.
5. - "Expansão Paulista em fins do seculo XVI e principio
do seculo XVII". Publicação do Instituto de Administração
da Faculdade de Ciencias Economicas e Administrativas da Universidade
de São Paulo (São Paulo, 1948), pg. 11.
6. - MS. do Archivo General de Indias: 25 - 1/14 R.o 22.
7. - Cf R. Diputazione Veneta di Storia Patria, Di Giovanni e Sebastiano
Caboto. Raccolte e Documentate da F. Tarducci (Veneza, 1892), pg.
196, ss.
8. - Carta de Baccio ao Cav. Belisario Vinda, secretario de S. A.
Serenissima, de Lisboa, 5 de janeiro de 1609. MS do Archivo di Stato
di Firenze - Arch. Mediceo - f. 945, c. 60.
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