O GENIO DA RUA PERDIDO


Publicado na Folha de S.Paulo, segunda-feira, 22 de março de 1971

Neste texto foi mantida a grafia original


Há quase 71 anos —4 de julho de 1900. Dia da Independencia— quando Louis Armstrong nasceu na rua Perdido, o jazz nem existia. O que havia era apenas uma especie de genero musical primitivo, comandado por Buddy Bolden. Hoje, Armstrong é um classico. Cresceu com o jazz na colorida Nova Orleans, dedicou mais de meio seculo a esse genero, espalhou-o pelo mundo, criando uma arte que hoje ele contempla com seus olhos grandes e seu sorriso largo. Se Armstrong não tivesse existido, o jazz não seria reconhecido como é: um modo universal de expressão musical.
A legenda Louis Armstrong começa em 1913, quando ele decidiu ser notado de alguma maneira e saiu à rua dando tiros para o ar. Foi parar na prisão de Waif's Home. Era o Ano Novo. Detido, Armstrong arrumou um lugar na banda da casa de correção, tocou até sair livre, aos 14 anos. Depois foi perambular pela famosa zona da prostituição de Nova Orleans, a Storyville, onde começou a tocar corneta com musicos conhecidos: Sidney Bechet, Joe Lindsay e outros. Em 1917, o jazz, que começava ali, sofreu seu primeiro golpe: a Storyville foi fechada pela Marinha americana, fato que provocou transformações nos musicos e no genero. Os musicos foram buscar outros empregos em Chicago, e o jazz mudou de capital. Com o exodo, Chicago seria transformada, na decada de 20, na sede jazzistica americana. Armstrong teve de seguir adiante, subir o sonolento Mississipi. Antes, porem, parou, arrumou um emprego na orquestra de Fate Marable, que atuava numa barca da Strekfus Line, subindo e descendo o rio.

A alegria no enterro

Em 1922, Armstrong partiu para Chicago decididamente, para ser o segundo corneta na orquestra de Joe "King" Oliver. Na epoca, "King", era o soberano do jazz. O proprio Luis conta que estava tocando num enterro quando recebeu o telegrama de Papa Joe. E que, esquecendo o defunto, vibrou de alegria, uma alegria que os acordes de sua corneta logo transmitiram.
Satchmo chegou a Chicago a 8 de julho de 22, às 11 horas da noite. Da estação foi direto para o Gardens, onde a orquestra de Papa Joe tocava. No ano seguinte, com a King Oliver's Creole Jazz Band, Armstrong ajudou a gravar alguns dos melhores exemplos do jazz no puro estilo de Nova Orleans. A pianista da orquestra era Lil Hardin, com quem Satchmo se casou em 1924. Era sua segunda mulher, e a que o encorajou a deixar a banda de Papa Joe para organizar um conjunto proprio. Assim, Armstrong deixou a King Oliver's Creole Jazz Band e foi reunir-se a outros grandes musicos no Sunset Cafe: Earl Himes, o pai do jazz-piano, e o clarinetista Jimmy Noone.
Em setembro de 1924, Louis e sua mulher foram para Nova York. Louis juntou-se à orquestra de Fletcher Henderson e com ela começou a ter seu nome anunciado no gás neon do Harlem, junto com os nomes de solistas como Coleman Hawkins e Benny Carter. A experiencia que Satchmo ganhou atuando com Henderson foi importante para a sua carreira. Da corneta para o trompete, Armstrong gravou com varios grupos. Um mês em Nova York já o colocava novamente no disco, com o grupo de Clarence (Cootie) Williams, que passava para o disco a canção "Blue Five". Desde então, até fins de 1925, Armstrong acompanhou as melhores "blues singers" da epoca, como Ma Rainey, Bessie, Trixie e Clara Smith, Eva Taylor, Sippie Wallace.

Um lider

Em novembro de 1925, Satchmo fundou seu proprio grupo, o Hot Five. Nesse mesmo ano, Chaplin rodava "Em Busca do Ouro", Eisenstein dirigia "O Processo", de Kafka. O Hot Five foi formado com o objetivo principal de gravar discos para a empresa gravadora Okeh. Com Armstrong estavam sua esposa Lil, ao piano, Johnny St. Cyr, no banjo, Kid Ory, no trombone e Johnny Dodds, no clarinete. Na epoca em que tocou, o Hot Five só ganhou elogios. O musicologo francês André Rodeir, por exemplo, estudou todas as gravações do grupo e chegou à conclusão de que "a principal caracteristica dele é o triunfo da personalidade sobre a coletividade, do indivíduo sobre o grupo".
Dirigindo o Hot Five, Armstrong gravou "Gut Bucket Blues", "Yes, I'm in the Barrel". Nos seis anos seguintes, o Hot Five mudou de nome, passou a ser Hot Seven, incluindo outros musicos como Fredd Robbinson, Don Redmar, Earl Hines, Zutty Singleton. Para a Okeh, o Hot Seven gravou mais de 200 musicas. Ainda no tempo do Hot Five, Armstrong gravou "Heebie Jeebies", onde introduziu o chamado "scat singing", que teve nele o principal cultor. Era a substituição das palavras originais da composição por sons onomatopaicos. Diz-se que o "scat singing" surgiu no momento que Satchmo deixou cair a partitura, e como não conhecia a letra de "Heebie Jeebies" de cor, passou a improvisar monossilabos. Mas há quem diga que Armstrong conhecia a letra da musica e fingiu esquecê-la.
No ano de 1929, Armstrong voltou a Nova York. Era o ano da grande depressão economica que colocava o país numa situação catastrofica. No interior, Bonnie e Clyde assaltavam bancos. Faulkner escrevia "The Sound and the Fury". E Satchmo regressava já como vedete do jazz. De 1929 a 1935, foi o numero um das maiores orquestras: atuou na de Luís Russel, na de Carroll Dickerson, na do Cocoanut Grove. Nesse periodo foi tambem chamado pelo cinema, começou a aparecer em filmes de Hollywood como "You Rascal You", de 1930, "Rhapsody Black and Blue", de 1932.
Em 31 voltou a Nova Orleans e no ano seguinte viajou pela primeira vez à Europa. Voltou aos Estados Unidos, ficou pouco tempo e retornou à Europa. Ficou lá até janeiro de 35, ano em que George Gershwin apresentava seu "Porgy and Bess", epoca em que Ella Fritzgerald, hoje considerada a primeira dama da canção americana, entrava para a orquestra de Chick Webb como "crooner". Nesse ano, Armstrong assume a direção da orquestra de Luís Russel e inicia um novo periodo em sua carreira: o de showman. Era já uma celebridade.

A revitalização

O jazz teve, em 1940, um movimento de revitalização que ficou conhecido como o New Orleans Revival. Na mesma epoca Armstrong iniciou uma volta às raizes reuniu musicos puros como —Sidney Bechet, Claude Jones, Wellman Braud e Zutty Singleton, formou um pequeno conjunto, uma serie de All Stars. Em 47, formou outro, com Sarl Hines, Jack Teagarden, Barney Biggard, Artie Shaw e Sid Catlett, gravando "Muskrat Ramble", "Black and Blue", "Baby Won't Please Come Home?"
Aos 50 anos de idade, Satchmo há era muito mais do que um jazzman. Marcado pelas experiencias e pela musica, tornava-se um cidadão do mundo, embaixador itinerante do Departamento de Estado na África, Asia e America Latina. E aparecia em rapidas cenas em varios filmes rodados em Hollywood. Em 1950, ao retornar de viagem à Europa, gravou "Cést Bon" e "La Vie en Rose", temas musicais do music-hall. Entre os cultivadores do jazz puro, a repercussão foi a pior possível. Dizia-se, então, que Armstrong traira as suas origens e que havia profanado o tumulo de Budy Bolden, Joe Oliver, Freddie Keppard, Bunk Johnson. O velho Satchmo entregava-se definitivamente ao sistema comercial, diziam os puristas.
Mas essa opinião não foi abençoada por todos. Lucien Malson, por exemplo, achou que "La Vie em Rose", tratada por Satchmo, "adquiriu um peso e uma qualidade que nossas vedetes de music-hall eram totalmente incapazes de dar. Nova prova de que não há tema banal que Armstrong não consiga fazê-lo consistente".
Louis Armstrong, quase 71 anos, mais de meio seculo de dedicação ao jazz. Um embaixador. Poucos norte-americanos são tão conhecidos quanto ele. Recentemente, vendeu mais de 1 milhão e meio de copias de sua gravação de "Hello, Dolly", musica que interpretou no filme do mesmo titulo, tocando e cantando com Barbara Streissand. Segundo muitos, está para o jazz na mesma medida em que Beethoven está para a musica erudita. Foi ele quem deu forma classica e universal ao jazz. Foi ele quem extasiou platéias de todo o mundo e fez criticos rigorosos, como Virgil Thompson, curvarem-se ante um estilo e dizer:
"O seu estilo de improvisação parece ter combinado as maiores alturas do virtuosismo instrumental com a estrutura melodica mais tensamente disciplinada e com a expressão emocional mais espontanea".
Showman, extrovertido, alegre, lírico, patetico, Armstrong não possui pontos fracos. Como jazzman, acompanhando uma definição do pianista Teddy Wilson, "é perfeito".

Louis, seus "blues" e as suas mulheres

· Louis Armstrong apaixonou-se primeiro pela musica. Quando tinha 20 anos é que conheceu uma moça de 16 anos, negra, que foi o seu primeiro amor. Naquela época tocava em Gretnan, uma cidade alem do Mississipi. Tocava no Brick Hall, um lugar de má fama frequentado por trabalhadores do porto, estivadores, carregadores, todos admiradores do alcool e da musica de Armstrong. Na sua noite de estréia uma moça entrou no salão, sentou-se numa mesa, acendeu um cigarro, pediu uma bebida e ficou olhando Armstrong tocar. Ela foi até o pequeno palco e perguntou o nome da musica que ele tocava. Era Basin Street Blues. Ela disse que se chamava Daisy Parker. Quando Armstrong deixou Gretnan, Daisy foi encontra-lo em Nova Orleans. Casaram-se. O ciume de Daisy era grande. E em fevereiro de 1919, durante o carnaval, ele estava com Bela Martin, uma crioula muito bonita. De repente chega Daisy, de navalha na mão. Quis atingir Armstrong, feriu Bela, que foi para o hospital. E Daisy foi presa.

· Em dezembro de 1921, ele tocava em Chicago. A pianista da orquestra era Lil Hardin, uma moça fina, bem educada, elegante. Foi com ela que Luis Armstrong aprendeu realmente musica e boas maneiras. Ela dizia: "Você nunca será ninguém se não aprender a ler musica, como os brancos que estudaram os classicos". E Armstrong estudou musica, divorciou-se da primeira esposa e casou-se com Lil. Começou a sua fama, o seu dinheiro. Os brancos começaram a se interessar pela musica de Louis, o jazz. De Nova Orleans, chegaram noticias desagradaveis, Daisy fôra solta, estava ainda mais apaixonada. Uma noite ela entrou no local onde Luis tocava, perguntando pelo marido. Armou um grande escandalo, até que Armstrong conseguiu acalmá-la. Ela foi embora. Mas logo depois, no bairro dos negros, brigou num café com um desconhecido. Ele dissera que Armstrong não era o melhor musico do mundo. Daisy não teve duvidas. Puxou a navalha e foi esfaqueada. Depois de varios meses num hospital, ela deixou Nova Orleans e a vida de Louis Armstrong.

· A segunda esposa, Lil, era sofisticada. E em Nova York, em 1924, Louis Armstrong apaixonou-se pela terceira vez. Durante um espetaculo, no Teatro Vendome, ele viu uma menina de 15 anos batendo palmas. Era Alpha Smith, e como a mãe de Louis, trabalhava como domestica numa casa de brancos. Ela foi o reencontro de Louis com o seu passado humilde, com sua infancia, Alpha morava no bairro mais pobre de Chicago, com sua mãe. A sua fama aumentava. Divorciou-se de Lil e casou com Alpha, enquanto seus discos eram gravados tambem na Europa, onde intelectuais se interessavam pelo fenomeno jazz. O jazz era chamado de "a mensagem da America ao Mundo".

· Seu quarto casamento foi com Lucille, em 1940. Uma mulher que exigia que ele perdesse 10 quilos. Enquanto todos falavam de sua arte, de sua mensagem, ele dizia: "Não sei se minha musica é uma mensagem; não sei se dei de verdade uma arte à minha raça e uma musica à minha patria."

· Louis Armstrong acha que os melhores momentos de sua carreira foram quando começo, "quando soprava noites inteiras o meu trompete diante de um publico de vagabundos. Foram eles que me amaram primeiro".

· Os seus labios merecem dele o seu maior cuidado: "Antes de cada concerto eu os submeto a uma pomada adocicada, invenção de um trombonetista alemão, fabricada depois em minha homenagem por um laboratorio suiço."

· "Acredito ter buzinado em todos os cantos do mundo: dos bordéis de Storyville à Corte da Inglaterra, das boates de gangsters à Casa Branca, na Africa, na America latina, na União Sovietica."

· "Vou continuar tocando em todo o lado onde me quiserem. E depois, o dia em que o Bom Deus decidir que o good old Satchmo já preencheu seu tempo na terra, farei minhas malas."

· "Esses Beatles são bons e a gente deve gostar dêles."

· Em novembro de 1957, Louis Armstrong almoçou com o ex-presidente Juscelino Kubitschek. Vários compositores brasileiros estiveram no almoço: Lamartine Babo, João de Barro, Ataulfo Alves, Osvaldo Santiago, Pixinguinha, Fernando Lobo, Herivelto Martins, Cristovão de Alencar, Humberto Teixeira, Dorival Caymmi e Ari Barroso. O acordeonista Sivuca —atualmente nos Estados Unidos— tocou para ele.

· Em São Paulo êle estêve com Booker Pittman, a quem não reconheceu logo de inicio porque "estava com uma crise nervosa". Booker tocou com Louis "Pittman desligou-se do nosso conjunto em Paris por sua livre vontade e desgosto nosso".


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