O DESAFIO HISTÓRICO E TEÓRICO DO SOCIALISMO


Publicado na Folha de S.Paulo, sábado, 22 de junho de 1991

Em primeira mão, trechos de um debate do Cebrap que reuniu Roberto Schwarz, Maria da Conceição Tavares, José Arthur Giannotti, Paul Singer e outros intelectuais

Fernando de Barros e Silva
Coordenador de Artigos e Eventos

Na noite de 9 de abril, um grupo de intelectuais se reuniu numa das salas do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), em São Paulo, para debater, durante cinco horas ininterruptas, um tema que para muitos já pertence ao lixo da história. Maria da Conceição Tavares, José Arthur Giannotti, Francisco de Oliveira, Paul Singer, Roberto Schwarz e Luiz Felipe de Alencastro, entre outros, expuseram idéias e trocaram farpas sobre "O Desafio Histórico e Teórico do Socialismo".
O "Letras" pubica a seguir, em primeira mão, trechos do que foi discutido. A íntegra do debate será editada no 30º número da revista "Novos Estudos", publicação do Cebrap com lançamento previsto para meados de julho próximo.
Além de ampliar e elevar o nível de uma questão que começa a ocupar partidos, políticos e intelectuais no país, o debate retoma a tradição dos "mesões" que marcou o Cebrap em seus primeiros anos, no início da década de 70.
Mas quais são os desafios do socialismo quando 70 anos de experiência histórica parecem ter desmoronado junto com o Muro de Berlim? Talvez, como diz Roberto Schwarz, "como o capitalismo ficou sozinho em campo, uma teoria crítica do capital volte a estar na ordem do dia". A virtual falta de adversários do capitalismo e da ideologia liberal, tão propalada por uma massa cada vez maior de "Fukuyamas", quem sabe em alguns anos não desemboque numa revitalização do que hoje se imagina enterrado. Em relação à compreensão da obra de Karl Marx, o colapso do chamado socialismo real pode ter efeito saudável. Como fica claro no decorrer do debate, o melhor da obra de Marx não é a descrição sumária do que seria a sociedade comunista, mas antes a crítica ao modo de produção capitalista feita através da exposição de seu funcionamento. Entre os equívocos da tradição marxista está o fato de não ter notado o tom de "meia ironia" de Marx ao descrever a "sociedade do futuro", como assinala Schwarz.
Ao fim de cinco horas, o debate mais dissipou lugares-comuns do que apresentou conclusões. É uma piada, como diz Maria da Conceição Tavares, "se pensar hoje numa sociedade primitiva onde quem quiser caçar, caça e quem quiser pescar, pesca". A idéia de que possa existir uma forma social que prescinda da divisão do trabalho, da subordinação e da hierarquia não passa de um conto de fadas.
Num ensaio sobre o sociólogo alemão Max Weber, o filósofo francês Maurice Merleau-Ponty escreveu que, com Weber, o liberalismo deixava de se ver como única alternativa à história e passava a reconhecer a legitimidade de seus adversários. Quase um século depois da obra weberiana, vale para as correntes socialistas aquilo que o sociólogo reivindicava para o liberalismo: precisam legitimar seus adversários, já que a idéia de um finalismo na história não se sustenta mais. Implícita no debate, a lição de Weber hoje desdenhada pelos arautos mais afoitos do neoliberalismo —serve como luva àqueles que, reconhecendo que o mundo atual está longe de ser "o melhor dos mundos possíveis", não querem reeditar os equívocos e atrocidades cometidos sob a égide do socialismo.




Paul Singer — A meu ver o tema proposto é de uma extrema atualidade. De fato, está na hora de repensar efetivamente o socialismo. Aliás, eu sustento que ele precisa ser permanentemente repensado e reformulado. A título de introdução, eu vou pinçar o que, do meu ponto de vista, não precisa ser repensado e ressaltar um problema, entre muitos outros, que me parece urgente repensar.
O que eu acho que não precisa ser repensado é pelo menos a visão de sociedade ideal que os socialistas têm sustentado ao longo de décadas, desde o século passado. Ou seja, uma sociedade próspera, uma sociedade altamente produtiva e que pode por isso mesmo sustentar altos níveis de satisfação das necessidades. E, decorrente dessa grande prosperidade, uma sociedade em que impera a liberdade, tanto a liberdade política como a individual —uma grande liberdade para que os indivíduos tenham muitas opções por meio das quais encaminhar sua vida profissional, pessoal etc. E, sobretudo, onde impere a igualdade.
Uma sociedade em que a igualdade social é fundamental —embora isso não signifique a exclusão de todo desnível econômico—, igualdade também em termos de ausência de subordinação, quer dizer, a ausência das classes. Eu diria que esse tipo de idealização continua atual e eu não vejo nenhuma necessidade de revê-la. Não é que não possa ser aprofundada em muita coisa, mas não é por aí que a coisa pega.
Na verdade, o problema reside principalmente na questão econômica. Desde Marx —e com grande influência dos resultados concretos da Revolução Russa—, a forma de realizar essa sociedade ideal foi pensada, não digo por todos, evidentemente, nunca houve unanimidade, mas por muitos e pela maioria provavelmente, como sociedade industrializada e central planejada. O planejamento central foi uma espécie de traço comum tanto aos partidários dos diferentes sistemas do socialismo real que foram se criando ao longo dos anos após 1917, quanto aos seus críticos e adversários.
A social-democracia também sustentou, pelo menos por muito tempo e programaticamente, que o socialismo, no final das contas, seria uma economia totalmente planejada. Sempre houve dissidentes em relação a essa posição —a escola do controle operário da produção, da autogestão, que insistia que deveria haver também uma certa margem para a economia de mercado—, mas me parece que o ponto de vista do planejamento central foi dominante. O que se esperava exatamente da economia centralmente planejada? Certamente a prosperidade seria o seu principal resultado.
A economia centralmente planejada deveria evitar as crises periódicas ou cíclicas características do capitalismo e deveria permitir que o desenvolvimento das forças produtivas continuasse além dos limites colocados pelas relações capitalistas, ou seja, pelas relações de mercado. A experiência concreta de diferentes formas de planejamento central mostrou que isso não é verdade. As economias centralmente planejadas não somente não asseguram estabilidade —elas têm a sua própria conjuntura cíclica, provavelmente diferente da capitalista, mas ela existe sobretudo em competição direta com o capitalismo na segunda metade do século 20— como certamente não desenvolveram as forças produtivas mais do que o capitalismo. Provavelmente desenvolveram menos.

Francisco de Oliveira
— Acho que a questão teórica do socialismo se põe com tanto mais pertinência precisamente porque o capitalismo avançou no sentido daquilo que supúnhamos premissas teóricas do socialismo. Entre elas, uma ampla desfetichização, sobretudo no campo do trabalho e no campo da mercadoria em geral. Para mim essa é a razão mais importante, teórica por enquanto, para repensar o socialismo.
De fato, algumas das transformações mais importantes do sistema capitalista vão na direção daquilo que eram supostos da construção do socialismo. Para além da queda do Muro de Berlim, nossa perplexidade decorre do fato de que, pelo processo dinâmico do capitalismo e das forças sociais, chegamos a certos estágios que, nos velhos comícios, deixávamos "para quando o socialismo chegar". Para mim, esse é o desafio teórico mais importante.
Com os novos processos tecnológicos, aquilo que era específico do capital —uma certa forma de produzir valor, ou de produzir excedente econômico baseado na exploração da força de trabalho— praticamente explode. Ora, o sistema capitalista, pelo avanço das lutas sociais, foi capaz de chegar até certos pontos em que algumas das formas de reprodução da sociedade, embora não a totalidade, são claramente antimercantis.
Talvez oportunisticamente a gente pudesse dizer: eis uma vitória do socialismo embutida dentro do capitalismo. Mas é preciso, dentro do meu modo de ver, levar isso a sério, o que obriga a gente a repensar a própria questão do socialismo. Contudo, é preciso levar em conta que o capitalismo é um sistema vitorioso, no máximo, em dez países. O resto é um desastre lamentável. No entanto, guardando todos esses cuidados, é possível dizer que nesses dez países ele foi muito longe.

Maria da Conceição Tavares — Primeiramente, uma breve observação com relação à validade do marxismo como instrumento analítico. Eu considero que a crítica à economia política tem toda validade. Acho que os poucos marxistas que, depois de Marx, trataram da economia política fizeram contribuições absolutamente fundamentais, só que a partir de 30 não houve nenhuma contribuição relevante. Em compensação há importantes historiadores econômicos. Acontece que o marxismo ocidental enveredou pela filosofia —o que supostamente não devia fazer, pois o marxismo era uma crítica à filosofia— e pela "Kulturkritik".
Na "Kulturkritik" até que existem contribuições importantes, embora na verdade não tenham nada a ver com a crítica à economia política, nem com a economia política —e isso é justamente o reconhecimento de que no nível da superestrutura, em que Marx não tratou de coisa nenhuma, há relações mais complicadas. Mas no que diz respeito à mercadoria, à generalização da mercadoria, ao dinheiro, à reprodução do capital, à generalização das relações mercantis, ao mercado como espaço de relações capitalistas tendendo para uma idealização, à questão do desenvolvimento desigual e combinado, em relação a essas questões está tudo lá, nos textos de Marx.
Como dizia o Coletti, azar de quem foi para o materialismo dialético, para a sociologia marxista, para a filosofia, onde meterem todos os pés pelas mãos, pois não há nada a ver com a economia política, e as mediações é que são a lasca. Ninguém manda partir das determinações econômicas para as políticas ou as sociais —isso dá uma trapalhada de fazer gosto. Até porque são as formas historicamente dadas da organização social as que permanecem mais tempo, independentemente da revolução na técnica, independentemente da revolução nos meios de produção— está aí o Japão que não me deixa mentir, está aí a URSS que não me deixa mentir.
Se elas é que são permanentes, em algumas situações, pelo menos nas crises e nas reorganizações, devia-se remeter a elas, e não ao progresso técnico. Em decorrência dessas questões surgem alguns problemas sérios. Marx não falou praticamente nada de democracia, dado que ele estava —nem podia deixar de estar— impregnado da discussão em torno do que era a sociedade civil capitalista e de como mercado, classes e poder estavam ligados. Portanto, no que diz respeito ao poder o velho Marx —salvo em suas análises políticas sobre a França, em que não há nenhuma referência à economia política— só tratou do relativo à sociedade civil, isto é, das classes dominantes. E, quanto às subordinadas, ele assumiu, não sei por que diabo, que as subordinadas alguma vez teriam a possibilidade de deixar de ser subordinadas, e desapareceriam as classes. E deu toda a loucura que a gente conhece: invertem-se as coisas, coloca-se a ditadura do proletariado lá em cima, e depois veremos. Depois veremos, e a ditadura e o proletariado que se lixem! O que eu estou dizendo é que aquilo que Marx fez com a sociedade que ele estava analisando seria um bom critério para a compreensão de outras sociedades. Na verdade, o marxismo é isso.
Mas hoje em dia as contribuições em torno de questões como trabalho e processo de trabalho praticamente não estão sendo dadas pelos marxistas. Quem está discutindo isso a que o Chico de Oliveira se referiu, isto é, novos tipos de cooperação e novas técnicas, novas formas de organização do trabalho, em que cooperação está ligada a subordinação? A subordinação técnica e hierárquica continua. Aqui como em qualquer sociedade complexa imaginável. A idéia de quem quiser caçar, caça, é um completo absurdo. Isso de dizer que não vamos abrir mão da autonomia dos indivíduos não leva a nada.
Enquanto estivermos lidando com esse indivíduo em si e para si, estamos fritos. Evidentemente que em si e para os outros, isto é, debaixo da bota dos outros, também não interessa. É preciso haver cooperação. Não tem jeito, sem cooperação é impossível —quem quiser caçar, caça, é uma piada. Tem que haver cooperação. O que não deve haver é uma jornada de trabalho que permita a exploração da mão-de-obra para além do que ela vale. Então já lá vamos ao que ela vale. É preciso haver subordinação. Lamento muito. Subordinação não quer dizer escravismo. Não há nenhum processo técnico conhecido de divisão do trabalho que prescinda disso. Vocês não vão imaginar que a gente vá regressar a uma sociedade primitiva em que quem quiser caçar, caça, quem quiser pescar, pesca. A complexidade da divisão social do trabalho é crescente e será crescente.
Isto que é sempre citado como uma utopia a perseguir me parece uma bobagem. Aquilo que aparece num dos livros do Gorz, "A Crítica do Capitalismo", essa brincadeirinha do trabalho livre, dá-se um salário permanente para as pessoas, elas trabalham duas horas e o resto do tempo elas fazem o que bem entendem, e dá-lhe intersubjetividade e criatividade... isso é uma piada! A complexidade das sociedades modernas —altamente urbanizadas, altamente complexas e altamente desiguais— não leva a isso. Logo, vai haver subordinação. Ninguém consegue trabalhar num processo moderno sem ter um mínimo de subordinação técnica. E um mínimo de hierarquia.

Flávio Pierucci
— Eu tenho a impressão que vocês não se chocaram muito com a realidade que estamos descobrindo no Leste Europeu. Não sei se eu era muito mal informado e vocês mais informados do que eu, mas a verdade é que o fracasso do chamado socialismo real ou do comunismo é muito maior do que a gente conseguia imaginar. O ideal socialista —mesmo depois do Kruschev, e também para aqueles que eram antisocialistas— continuava a ser algo profundamente esperançoso. No entanto, a dimensão da pobreza que se encontra no Leste Europeu —que era chamado de Segundo Mundo—, pelo que eu pude constatar pessoalmente, é uma coisa que eu jamais podia imaginar.
O grau de deterioração das cidades da ex-República Democrática Alemã (RDA) é impressionante. Elas são verdadeiras ruínas. E é uma sociedade profundamente pobre. A RDA é um país profundamente poluído e as pessoas são profundamente acomodadas. Elas têm os seus direitos, é verdade, há igualdade, há uma série de coisas, mas as pessoas são profundamente acomodadas, e, pior, se submetendo a situações muito abaixo daquilo que nós, ocidentais, mesmo de Terceiro Mundo, chamamos de dignidade. A troco de um pouquinho mais de pão branco, a troco de um iogurte com quark, a troco de qualquer coisa que seja sofisticação de consumo.
E isso tudo em consequências muito sérias. O que é que realmente acabou em 1989? Acabou muita coisa, e é impossível que isso não interfira na utopia. Agora nós não temos mais condições de mentir, de fingir, à maneira do Togliatti, que não sabemos das coisas. Hoje nós sabemos, e sabemos que a coisa é muito feia. As pessoas são muito necessitadas, e necessitadas não só de bens materiais, mas de bens simbólicos, elas querem ver televisão, querem ir ao cinema, querem ver filme pornográfico etc. Numa sociedade que manteve as pessoas sufocadas, onde qualquer gesto de oposição era considerado conspiração, as necessidades são as mais inesperadas. A minha fala vai no sentido de mostrar que a utopia está carregada de mentira. E portanto é preciso repensar uma utopia que foi muito mentirosa o tempo todo.

Conceição Tavares — Não foi mentirosa o tempo todo. Foi, sim, bastante mentirosa.

José Arthur Giannotti — Como é que eu posso manter um pouco o meu ponto de vista da filosofia sem ser tolo, como disse Maria da Conceição...

Conceição Tavares — Eu não disse que isso é tolice. Eu disse que o marxismo não foi pensado para se fazer filosofia.

Giannotti — Vamos ver como eu posso me salvar dessa situação. Em primeiro lugar, é preciso lembrar que se nós estamos aqui pensando o socialismo, nós estamos pensando conceitos. E, do ponto de vista da filosofia, não se faz análise de um conceito só, mas se faz análise da correlação de conceitos. Eu não creio que seja possível pensar o socialismo hoje sem passar pela experiência teórica de Marx. Para negar ou não negar.
A meu ver, há duas correlações do conceito de socialismo em Marx que nós precisamos retomar para que esse conceito baixe do céu para a terra e comece realmente a funcionar. Em primeiro lugar, o conceito de socialismo em Marx está ligado a comunismo. E, no caso do comunismo, é preciso também lembrar que o marxismo sempre foi pensado como escatologia. E é de muito interesse lembrar que a idéia da abolição da propriedade —que é uma idéia tradicional, que vem desde os gregos— foi pensada escatologicamente, de tal forma que nós pudéssemos não só abolir a propriedade mas, com ela, a divisão social do trabalho. Esse é que é o problema. Está evidente que, do ponto de vista dessa correlação, o socialismo não pode ter mais a mesma significação que tinha em Marx.
Em segundo lugar, Marx estava pensando sobre uma oposição entre socialismo utópico e socialismo científico, sem o que não podemos entender também qual foi o seu esforço teórico. Nós sabemos também que esse científico não era a ciência positivista, mas era a "Wissenschaft" alemã. Esse cientificismo, ou essa ciência marxista, se opunha justamente a uma utopia. E nós não podemos esquecer isso. O que me deixa muito espantado na posição que apareceu aqui, pelo menos no início, é que nós retomemos o socialismo utópico...

Conceição Tavares — Com toda a honra. Ninguém manda fazer socialismo científico.

Giannotti — Quando nós falamos numa sociedade ideal, uma sociedade da abundância e assim por diante, nós voltamos simplesmente à utopia, mas sem passar por nada do que significou essa experiência, esta oposição entre socialismo utópico e socialismo científico. Eu tenho a impressão de que nesta oposição entre socialismo utópico e socialismo científico há duas coisas fundamentais que o Marx colocou e, se ele não colocou corretamente, a meu ver nós devemos recolocar.
De saída, é preciso considerar a idéia de que a utopia possa ser realizada assintoticamente. Isso é básico. Não adianta nada nós pensarmos uma sociedade absolutamente produtiva, linda, quando a realização dessa utopia se der através de um processo que pode simplesmente —para usar o termo da Maria da Conceição— lascar o resto dos países. Então, se nós não levarmos em consideração como é que esse ideal se realiza, ou melhor, como esse ideal, na sua forma de realização, embute nele mesmo a maneira de estrepar com os outros, nós não estaremos pensando o que possa vir a ser o socialismo. Há uma questão básica aí, pois a realização desse ideal não é a encarnação de uma idéia platônica qualquer.
Uma outra questão relativa à cientificidade que Marx propunha diz respeito à idéia de que havia uma medida objetiva da exploração. Isso também foi para o espaço. Hoje nós sabemos perfeitamente que não existe uma medida objetiva da exploração. Nós sabemos que existe exploração, nós vemos a exploração na cara, e nós não temos medidas objetivas para essa exploração. Como consequência disso nós nos voltamos para as idéias políticas de poder. E pensamos essa exploração em termos políticos, exclusivamente. Ora, o que acontece? Quando nós começamos a pensar a questão do poder exclusivamente em termos políticos, a tendência é, a meu ver, uma confusão, uma expansão generalizada dos conceitos.

Luiz Felipe de Alencastro — A vinculação do socialismo a Marx tem vários problemas, que é preciso situar historicamente. Marx pensava, quando ele estava vendo a luta de classes na França, quando escreveu o "18 Brumário", que aquela transparência das classes, do enfrentamento entre as classes que estava ocorrendo na França, seria o quadro dominante dali por diante na democracia parlamentar, na República etc. Ele subestimou a capacidade do próprio regime republicano de criar uma ideologia que embaralhasse de novo a noção de classe, e esse é um dado fundamental na historiografia.
Esse livro do Agulhon que acabou de ser traduzido, "1848 — O Aprendizado da República", insiste muito sobre isso, sobre como na revolução de 1848 é cristalino o enfrentamento entre as classes e como isso fundamentou toda a análise de Marx a respeito da luta de classes e como isso se embrulhou em seguida. No "Manifesto Comunista", Marx fala da superação da questão nacional, e é incrível porque nem o capitalismo nem o socialismo real foram por aí. Também em relação à questão do definhamento do Estado é interessante retomar a polêmica —que não houve, mas que estava subjacente— entre Marx e Tocqueville, e aí Tocqueville realmente tinha razão. O Estado estava aumentando, estava se fortalecendo, ao contrário de definhar, como Marx previu.
Há também os problemas sócio-econômicos, que vão nos trazer agora para um outro ponto do socialismo real que não se falou aqui, que o chamado comunismo rural. Porque não são só a URSS ou a Alemanha Oriental que estão dando com os burros n'água. Diga-se de passagem que o mutismo do alemão oriental não é só do comunismo; ele tem nas costas mais 12 anos de nazismo. Chego então à seguinte questão: Marx pressupunha que a penetração do capitalismo no campo se daria muito mais rapidamente do que aconteceu, no que diz respeito às relações de trabalho e sobretudo à mecanização.
A primeira grande colheitadeira apareceu no final do século 19, enquanto a indústria têxtil e a siderúrgica já tinham grandes máquinas trabalhando e a coisa é muito mais rápido na indústria do que foi na agricultura. Esse ponto é importante porque Marx estava pensando no modelo inglês, no modelo de desapropriação do campesinato que tinha acontecido na Inglaterra desde o século 18, e ele é o grande historiador social da Inglaterra. Ora, esse modelo e esse pressuposto vão até em certo sentido deformar a União Soviética, porque a idéia de que a grande propriedade capitalista inglesa era mais produtiva, era mais moderna e era unidade de base vai levar ao leninismo dos sovkoses e dos kolkoses, das grandes unidades agrícolas, onde a agricultura soviética foi à breca.
A essa questão liga-se um outro paradoxo porque não há nada mais aberrante para Marx do que a idéia do camponês revolucionário. Engels ainda tinha alguma tolerância, mas se alguma coisa é inteiramente estranha ao marxismo é essa idéia de que, de repente, se possa chegar ao socialismo através de uma revolução camponesa. Vejam bem, não falo de proletários rurais, mas de camponeses mesmo, como aconteceu na China e na Indochina inteira. Isso de repente virou também patrimônio socialista e rápido todo mundo aceitou esse troço. Esse é um problema real, pois esses países ocupavam os primeiros lugares na galeria socialista e marxista do pós-guerra, sem que se fosse verificar a coisa a fundo.
Esses paradoxos devem ser contrastados com outros dois, num outro oposto, até já meio rebarbativos: o fato de a revolução não ter se dado na Alemanha e o fato de não existir movimento socialista organizado nos Estados Unidos, esse é o grande paradoxo também, curioso. Isto posto, quero reivindicar firmemente como socialista o movimento ao qual pertencem os partidos socialistas ocidentais. A geração de socialistas que chegou ao poder —estou falando de Willy Bandt, de Mitterrand, não de Felipe González, mas da geração mais velha— viu de perto o eco da ruptura da 2ª Internacional com a 3ª, alguns deles andavam perto de gente que participou dessa ruptura, eles sempre acharam que aquilo era uma coisa historicizada. Nunca nenhum europeu culto achou que a Tcheco-Eslováquia ou a Hungria iam ser comunistas pelo resto da vida. Eles sempre acharam aquilo uma consequência do imperialismo soviético. E não estou falando de europeu culto de esquerda, eu estou falando também dos liberais. Os velhos jornalistas do "Le Monde" nunca acreditaram que aquilo ia colar ali, e foi uma aposta que eles ganharam.
Quando Mitterrand ganhou a eleição em 1981, exatamente dez anos atrás, ele disse que a maioria social, pela primeira vez em 200 anos na história da França, tem a maioria política. Eu posso afirmar que não era um blefe. Ele era o continuador da revolução, um progresso social feito dentro do quadro das instituições republicanas pelo movimento da esquerda republicana. E o seu governo está estendendo a previdência social a toda população francesa, o que também não é pouco. E a questão de como financiar esses gastos sociais é debatida por socialistas que de "Welfare State" não sabem nem o nome. Uma coisa é o Keynes e a existência de um vago espectro de movimento social nos Estados Unidos levaram essas medidas de reforma interna, uma outra coisa é uma longa sucessão de lutas de um movimento laico e republicano. São coisas que não podem ser comparadas.

Roberto Schwarz
— Eu sou leigo, não sei economia, e naturalmente fico um pouco intimidado com a companhia. Mas fiquei com a impressão de que talvez tenham facilitado um pouco na crítica quanto à utopia marxista. Faz muito tempo que li "A Ideologia Alemã", posso não lembrar bem, mas eu tenho a idéia de que as passagens sobre o pescador e o caçador sobre o homem não-especializado, são escritas em tom semi-humorístico. Repetem um lugar-comum da reflexão alemã do período anterior, de oposição aos efeitos mutiladores da nova divisão do trabalho. Não penso que esse tipo de idéia se encontre em "O Capital", e acho que é facilitar um pouco as coisas amarrar a utopia socialista a um escrito que é de juventude e nem se destinava à publicação.
Até onde sei, o debate socialista não girou a sério em torno da possibilidade de que todos pudessem alterar a pesca, a caça e a crítica segundo a preferência do momento. Em "O Capital" a questão não é posta desta maneira. A idéia é, singelamente, de que através da expropriação dos meios de produção os trabalhadores teriam a possibilidade de reorganizar a produção e a vida de um modo mais racional e consciente, sem que o livro, "O Capital", diga que este modo seja. Marx sempre foi econômico em matéria de descrições de como as coisas deveriam ser. Mas a noção de que os trabalhadores possam discutir e buscar a melhor maneira de organizar o processo econômico não é uma fantasia rebarbativa ou até regressiva, como foi dito aqui.
Outro ponto: tenho a impressão de que a situação argumentativa com relação ao capitalismo mudou profundamente com o fim do período do chamado socialismo real, sobretudo com o fim da última fase, que foi de decadência - eu não saberia datar, mas evidentemente a experiência socialista não andou sempre tão mal como nestes últimos anos. Mas voltando à situação argumentativa: nos últimos 20 anos, todo intelectual de esquerda teve a experiência de que quando ele tinha alguma crítica a fazer ao capitalismo, alguma objeção, ela era esvaziada a priori pelo fato de que tudo do outro lado era muito pior. Assim, se eu fizesse uma crítica às formas de propriedade capitalista, crítica que eventualmente poderia ter até alguma pertinência, era inevitável, historicamente inevitável, e nem criticável neste sentido, era inevitável que a resposta fosse tática: mas do que é que você está falando, pois se a burocracia dispõe de meios de produção de maneira incomparavelmente mais autoritária e arbitrária, está visto que essa questão da propriedade é irrelevante.
Normalmente, o que aconteceu no debate sobre o capitalismo nesses últimos 20 anos é que as objeções não tinham relevância diante do fato de que do outro lado era pior. Como insistir de boa-fé nas limitações às liberdades no mundo capitalista, se no mundo socialista as limitações eram incomparavelmente maiores? Em consequência, a crítica ao capital e à sociedade capitalista nos últimos anos fez figura de disparate, por mais fundada que fosse.
Essa situação do debate agora acabou. E acho que o estatuto da crítica à sociedade capitalista também vai mudar, ele vai recuperar a relevância. Como o capitalismo ficou sozinho em campo, por assim dizer, imagino que uma teoria crítica do capital volte a estar na ordem do dia. E acho difícil que uma teoria crítica do capital não tenha alguma coisa a ver com suas origens históricas.
Há outro sentido ainda em que o regime da crítica pode mudar. Na quase ausência de socialismo, com o capitalismo ocupando todo o campo, penso que a tendência a analisar sociedades separadamente —essa sociedade capitalista deu certo, aquela não deu— vai ficar em dificuldade. Essa tendência talvez se dissolva, a bem de uma tentativa novamente global. Não que seja a mesma das análises clássicas, mas vai haver motivos para enxergar o capitalismo novamente como uma forma global, como o nexo global do mundo contemporâneo, do qual fazem parte tanto as sociedades que deram certo como as que deram horrorosamente errado. Nós vamos voltar a uma visão de conjunto desse processo, o que, até onde vão minhas luzes, é um modo mais real de encarar a atualidade.


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