Fernando de Barros e Silva
Coordenador de Artigos e Eventos
Na noite de 9 de abril, um grupo de intelectuais se reuniu numa
das salas do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento
(Cebrap), em São Paulo, para debater, durante cinco horas
ininterruptas, um tema que para muitos já pertence ao lixo
da história. Maria da Conceição Tavares, José
Arthur Giannotti, Francisco de Oliveira, Paul Singer, Roberto Schwarz
e Luiz Felipe de Alencastro, entre outros, expuseram idéias
e trocaram farpas sobre "O Desafio Histórico e Teórico
do Socialismo".
O "Letras" pubica a seguir, em primeira mão, trechos
do que foi discutido. A íntegra do debate será editada
no 30º número da revista "Novos Estudos",
publicação do Cebrap com lançamento previsto
para meados de julho próximo.
Além de ampliar e elevar o nível de uma questão
que começa a ocupar partidos, políticos e intelectuais
no país, o debate retoma a tradição dos "mesões"
que marcou o Cebrap em seus primeiros anos, no início da
década de 70.
Mas quais são os desafios do socialismo quando 70 anos de
experiência histórica parecem ter desmoronado junto
com o Muro de Berlim? Talvez, como diz Roberto Schwarz, "como
o capitalismo ficou sozinho em campo, uma teoria crítica
do capital volte a estar na ordem do dia". A virtual falta
de adversários do capitalismo e da ideologia liberal, tão
propalada por uma massa cada vez maior de "Fukuyamas",
quem sabe em alguns anos não desemboque numa revitalização
do que hoje se imagina enterrado. Em relação à
compreensão da obra de Karl Marx, o colapso do chamado socialismo
real pode ter efeito saudável. Como fica claro no decorrer
do debate, o melhor da obra de Marx não é a descrição
sumária do que seria a sociedade comunista, mas antes a crítica
ao modo de produção capitalista feita através
da exposição de seu funcionamento. Entre os equívocos
da tradição marxista está o fato de não
ter notado o tom de "meia ironia" de Marx ao descrever
a "sociedade do futuro", como assinala Schwarz.
Ao fim de cinco horas, o debate mais dissipou lugares-comuns do
que apresentou conclusões. É uma piada, como diz Maria
da Conceição Tavares, "se pensar hoje numa sociedade
primitiva onde quem quiser caçar, caça e quem quiser
pescar, pesca". A idéia de que possa existir uma forma
social que prescinda da divisão do trabalho, da subordinação
e da hierarquia não passa de um conto de fadas.
Num ensaio sobre o sociólogo alemão Max Weber, o filósofo
francês Maurice Merleau-Ponty escreveu que, com Weber, o liberalismo
deixava de se ver como única alternativa à história
e passava a reconhecer a legitimidade de seus adversários.
Quase um século depois da obra weberiana, vale para as correntes
socialistas aquilo que o sociólogo reivindicava para o liberalismo:
precisam legitimar seus adversários, já que a idéia
de um finalismo na história não se sustenta mais.
Implícita no debate, a lição de Weber hoje
desdenhada pelos arautos mais afoitos do neoliberalismo serve
como luva àqueles que, reconhecendo que o mundo atual está
longe de ser "o melhor dos mundos possíveis", não
querem reeditar os equívocos e atrocidades cometidos sob
a égide do socialismo.
Paul
Singer A meu ver o tema proposto é de uma extrema
atualidade. De fato, está na hora de repensar efetivamente
o socialismo. Aliás, eu sustento que ele precisa ser permanentemente
repensado e reformulado. A título de introdução,
eu vou pinçar o que, do meu ponto de vista, não precisa
ser repensado e ressaltar um problema, entre muitos outros, que me
parece urgente repensar.
O que eu acho que não precisa ser repensado é pelo menos
a visão de sociedade ideal que os socialistas têm sustentado
ao longo de décadas, desde o século passado. Ou seja,
uma sociedade próspera, uma sociedade altamente produtiva e
que pode por isso mesmo sustentar altos níveis de satisfação
das necessidades. E, decorrente dessa grande prosperidade, uma sociedade
em que impera a liberdade, tanto a liberdade política como
a individual uma grande liberdade para que os indivíduos
tenham muitas opções por meio das quais encaminhar sua
vida profissional, pessoal etc. E, sobretudo, onde impere a igualdade.
Uma sociedade em que a igualdade social é fundamental embora
isso não signifique a exclusão de todo desnível
econômico, igualdade também em termos de ausência
de subordinação, quer dizer, a ausência das classes.
Eu diria que esse tipo de idealização continua atual
e eu não vejo nenhuma necessidade de revê-la. Não
é que não possa ser aprofundada em muita coisa, mas
não é por aí que a coisa pega.
Na verdade, o problema reside principalmente na questão econômica.
Desde Marx e com grande influência dos resultados concretos
da Revolução Russa, a forma de realizar essa sociedade
ideal foi pensada, não digo por todos, evidentemente, nunca
houve unanimidade, mas por muitos e pela maioria provavelmente, como
sociedade industrializada e central planejada. O planejamento central
foi uma espécie de traço comum tanto aos partidários
dos diferentes sistemas do socialismo real que foram se criando ao
longo dos anos após 1917, quanto aos seus críticos e
adversários.
A
social-democracia também sustentou, pelo menos por muito tempo
e programaticamente, que o socialismo, no final das contas, seria
uma economia totalmente planejada. Sempre houve dissidentes em relação
a essa posição a escola do controle operário
da produção, da autogestão, que insistia que
deveria haver também uma certa margem para a economia de mercado,
mas me parece que o ponto de vista do planejamento central foi dominante.
O que se esperava exatamente da economia centralmente planejada? Certamente
a prosperidade seria o seu principal resultado.
A economia centralmente planejada deveria evitar as crises periódicas
ou cíclicas características do capitalismo e deveria
permitir que o desenvolvimento das forças produtivas continuasse
além dos limites colocados pelas relações capitalistas,
ou seja, pelas relações de mercado. A experiência
concreta de diferentes formas de planejamento central mostrou que
isso não é verdade. As economias centralmente planejadas
não somente não asseguram estabilidade elas têm
a sua própria conjuntura cíclica, provavelmente diferente
da capitalista, mas ela existe sobretudo em competição
direta com o capitalismo na segunda metade do século 20
como certamente não desenvolveram as forças produtivas
mais do que o capitalismo. Provavelmente desenvolveram menos.
Francisco de Oliveira Acho que a questão teórica
do socialismo se põe com tanto mais pertinência precisamente
porque o capitalismo avançou no sentido daquilo que supúnhamos
premissas teóricas do socialismo. Entre elas, uma ampla desfetichização,
sobretudo no campo do trabalho e no campo da mercadoria em geral.
Para mim essa é a razão mais importante, teórica
por enquanto, para repensar o socialismo.
De fato, algumas das transformações mais importantes
do sistema capitalista vão na direção daquilo
que eram supostos da construção do socialismo. Para
além da queda do Muro de Berlim, nossa perplexidade decorre
do fato de que, pelo processo dinâmico do capitalismo e das
forças sociais, chegamos a certos estágios que, nos
velhos comícios, deixávamos "para quando o socialismo
chegar". Para mim, esse é o desafio teórico mais
importante.
Com os novos processos tecnológicos, aquilo que era específico
do capital uma certa forma de produzir valor, ou de produzir
excedente econômico baseado na exploração da força
de trabalho praticamente explode. Ora, o sistema capitalista,
pelo avanço das lutas sociais, foi capaz de chegar até
certos pontos em que algumas das formas de reprodução
da sociedade, embora não a totalidade, são claramente
antimercantis.
Talvez oportunisticamente a gente pudesse dizer: eis uma vitória
do socialismo embutida dentro do capitalismo. Mas é preciso,
dentro do meu modo de ver, levar isso a sério, o que obriga
a gente a repensar a própria questão do socialismo.
Contudo, é preciso levar em conta que o capitalismo é
um sistema vitorioso, no máximo, em dez países. O resto
é um desastre lamentável. No entanto, guardando todos
esses cuidados, é possível dizer que nesses dez países
ele foi muito longe.
Maria da Conceição Tavares Primeiramente,
uma breve observação com relação à
validade do marxismo como instrumento analítico. Eu considero
que a crítica à economia política tem toda validade.
Acho que os poucos marxistas que, depois de Marx, trataram da economia
política fizeram contribuições absolutamente
fundamentais, só que a partir de 30 não houve nenhuma
contribuição relevante. Em compensação
há importantes historiadores econômicos. Acontece que
o marxismo ocidental enveredou pela filosofia o que supostamente
não devia fazer, pois o marxismo era uma crítica à
filosofia e pela "Kulturkritik".
Na "Kulturkritik" até que existem contribuições
importantes, embora na verdade não tenham nada a ver com a
crítica à economia política, nem com a economia
política e isso é justamente o reconhecimento
de que no nível da superestrutura, em que Marx não tratou
de coisa nenhuma, há relações mais complicadas.
Mas no que diz respeito à mercadoria, à generalização
da mercadoria, ao dinheiro, à reprodução do capital,
à generalização das relações mercantis,
ao mercado como espaço de relações capitalistas
tendendo para uma idealização, à questão
do desenvolvimento desigual e combinado, em relação
a essas questões está tudo lá, nos textos de
Marx.
Como dizia o Coletti, azar de quem foi para o materialismo dialético,
para a sociologia marxista, para a filosofia, onde meterem todos os
pés pelas mãos, pois não há nada a ver
com a economia política, e as mediações é
que são a lasca. Ninguém manda partir das determinações
econômicas para as políticas ou as sociais isso
dá uma trapalhada de fazer gosto. Até porque são
as formas historicamente dadas da organização social
as que permanecem mais tempo, independentemente da revolução
na técnica, independentemente da revolução nos
meios de produção está aí o Japão
que não me deixa mentir, está aí a URSS que não
me deixa mentir.
Se elas é que são permanentes, em algumas situações,
pelo menos nas crises e nas reorganizações, devia-se
remeter a elas, e não ao progresso técnico. Em decorrência
dessas questões surgem alguns problemas sérios. Marx
não falou praticamente nada de democracia, dado que ele estava
nem podia deixar de estar impregnado da discussão
em torno do que era a sociedade civil capitalista e de como mercado,
classes e poder estavam ligados. Portanto, no que diz respeito ao
poder o velho Marx salvo em suas análises políticas
sobre a França, em que não há nenhuma referência
à economia política só tratou do relativo
à sociedade civil, isto é, das classes dominantes. E,
quanto às subordinadas, ele assumiu, não sei por que
diabo, que as subordinadas alguma vez teriam a possibilidade de deixar
de ser subordinadas, e desapareceriam as classes. E deu toda a loucura
que a gente conhece: invertem-se as coisas, coloca-se a ditadura do
proletariado lá em cima, e depois veremos. Depois veremos,
e a ditadura e o proletariado que se lixem! O que eu estou dizendo
é que aquilo que Marx fez com a sociedade que ele estava analisando
seria um bom critério para a compreensão de outras sociedades.
Na verdade, o marxismo é isso.
Mas hoje em dia as contribuições em torno de questões
como trabalho e processo de trabalho praticamente não estão
sendo dadas pelos marxistas. Quem está discutindo isso a que
o Chico de Oliveira se referiu, isto é, novos tipos de cooperação
e novas técnicas, novas formas de organização
do trabalho, em que cooperação está ligada a
subordinação? A subordinação técnica
e hierárquica continua. Aqui como em qualquer sociedade complexa
imaginável. A idéia de quem quiser caçar, caça,
é um completo absurdo. Isso de dizer que não vamos abrir
mão da autonomia dos indivíduos não leva a nada.
Enquanto estivermos lidando com esse indivíduo em si e para
si, estamos fritos. Evidentemente que em si e para os outros, isto
é, debaixo da bota dos outros, também não interessa.
É preciso haver cooperação. Não tem jeito,
sem cooperação é impossível quem
quiser caçar, caça, é uma piada. Tem que haver
cooperação. O que não deve haver é uma
jornada de trabalho que permita a exploração da mão-de-obra
para além do que ela vale. Então já lá
vamos ao que ela vale. É preciso haver subordinação.
Lamento muito. Subordinação não quer dizer escravismo.
Não há nenhum processo técnico conhecido de divisão
do trabalho que prescinda disso. Vocês não vão
imaginar que a gente vá regressar a uma sociedade primitiva
em que quem quiser caçar, caça, quem quiser pescar,
pesca. A complexidade da divisão social do trabalho é
crescente e será crescente.
Isto que é sempre citado como uma utopia a perseguir me parece
uma bobagem. Aquilo que aparece num dos livros do Gorz, "A Crítica
do Capitalismo", essa brincadeirinha do trabalho livre, dá-se
um salário permanente para as pessoas, elas trabalham duas
horas e o resto do tempo elas fazem o que bem entendem, e dá-lhe
intersubjetividade e criatividade... isso é uma piada! A complexidade
das sociedades modernas altamente urbanizadas, altamente complexas
e altamente desiguais não leva a isso. Logo, vai haver
subordinação. Ninguém consegue trabalhar num
processo moderno sem ter um mínimo de subordinação
técnica. E um mínimo de hierarquia.
Flávio Pierucci Eu tenho a impressão que
vocês não se chocaram muito com a realidade que estamos
descobrindo no Leste Europeu. Não sei se eu era muito mal informado
e vocês mais informados do que eu, mas a verdade é que
o fracasso do chamado socialismo real ou do comunismo é muito
maior do que a gente conseguia imaginar. O ideal socialista mesmo
depois do Kruschev, e também para aqueles que eram antisocialistas
continuava a ser algo profundamente esperançoso. No entanto,
a dimensão da pobreza que se encontra no Leste Europeu que
era chamado de Segundo Mundo, pelo que eu pude constatar pessoalmente,
é uma coisa que eu jamais podia imaginar.
O grau de deterioração das cidades da ex-República
Democrática Alemã (RDA) é impressionante. Elas
são verdadeiras ruínas. E é uma sociedade profundamente
pobre. A RDA é um país profundamente poluído
e as pessoas são profundamente acomodadas. Elas têm os
seus direitos, é verdade, há igualdade, há uma
série de coisas, mas as pessoas são profundamente acomodadas,
e, pior, se submetendo a situações muito abaixo daquilo
que nós, ocidentais, mesmo de Terceiro Mundo, chamamos de dignidade.
A troco de um pouquinho mais de pão branco, a troco de um iogurte
com quark, a troco de qualquer coisa que seja sofisticação
de consumo.
E isso tudo em consequências muito sérias. O que é
que realmente acabou em 1989? Acabou muita coisa, e é impossível
que isso não interfira na utopia. Agora nós não
temos mais condições de mentir, de fingir, à
maneira do Togliatti, que não sabemos das coisas. Hoje nós
sabemos, e sabemos que a coisa é muito feia. As pessoas são
muito necessitadas, e necessitadas não só de bens materiais,
mas de bens simbólicos, elas querem ver televisão, querem
ir ao cinema, querem ver filme pornográfico etc. Numa sociedade
que manteve as pessoas sufocadas, onde qualquer gesto de oposição
era considerado conspiração, as necessidades são
as mais inesperadas. A minha fala vai no sentido de mostrar que a
utopia está carregada de mentira. E portanto é preciso
repensar uma utopia que foi muito mentirosa o tempo todo.
Conceição Tavares Não foi mentirosa
o tempo todo. Foi, sim, bastante mentirosa.
José Arthur Giannotti Como é que eu posso
manter um pouco o meu ponto de vista da filosofia sem ser tolo, como
disse Maria da Conceição...
Conceição Tavares Eu não disse
que isso é tolice. Eu disse que o marxismo não foi pensado
para se fazer filosofia.
Giannotti Vamos ver como eu posso me salvar dessa situação.
Em primeiro lugar, é preciso lembrar que se nós estamos
aqui pensando o socialismo, nós estamos pensando conceitos.
E, do ponto de vista da filosofia, não se faz análise
de um conceito só, mas se faz análise da correlação
de conceitos. Eu não creio que seja possível pensar
o socialismo hoje sem passar pela experiência teórica
de Marx. Para negar ou não negar.
A meu ver, há duas correlações do conceito de
socialismo em Marx que nós precisamos retomar para que esse
conceito baixe do céu para a terra e comece realmente a funcionar.
Em primeiro lugar, o conceito de socialismo em Marx está ligado
a comunismo. E, no caso do comunismo, é preciso também
lembrar que o marxismo sempre foi pensado como escatologia. E é
de muito interesse lembrar que a idéia da abolição
da propriedade que é uma idéia tradicional, que
vem desde os gregos foi pensada escatologicamente, de tal forma
que nós pudéssemos não só abolir a propriedade
mas, com ela, a divisão social do trabalho. Esse é que
é o problema. Está evidente que, do ponto de vista dessa
correlação, o socialismo não pode ter mais a
mesma significação que tinha em Marx.
Em segundo lugar, Marx estava pensando sobre uma oposição
entre socialismo utópico e socialismo científico, sem
o que não podemos entender também qual foi o seu esforço
teórico. Nós sabemos também que esse científico
não era a ciência positivista, mas era a "Wissenschaft"
alemã. Esse cientificismo, ou essa ciência marxista,
se opunha justamente a uma utopia. E nós não podemos
esquecer isso. O que me deixa muito espantado na posição
que apareceu aqui, pelo menos no início, é que nós
retomemos o socialismo utópico...
Conceição Tavares Com toda a honra. Ninguém
manda fazer socialismo científico.
Giannotti Quando nós falamos numa sociedade ideal,
uma sociedade da abundância e assim por diante, nós voltamos
simplesmente à utopia, mas sem passar por nada do que significou
essa experiência, esta oposição entre socialismo
utópico e socialismo científico. Eu tenho a impressão
de que nesta oposição entre socialismo utópico
e socialismo científico há duas coisas fundamentais
que o Marx colocou e, se ele não colocou corretamente, a meu
ver nós devemos recolocar.
De saída, é preciso considerar a idéia de que
a utopia possa ser realizada assintoticamente. Isso é básico.
Não adianta nada nós pensarmos uma sociedade absolutamente
produtiva, linda, quando a realização dessa utopia se
der através de um processo que pode simplesmente para
usar o termo da Maria da Conceição lascar o resto
dos países. Então, se nós não levarmos
em consideração como é que esse ideal se realiza,
ou melhor, como esse ideal, na sua forma de realização,
embute nele mesmo a maneira de estrepar com os outros, nós
não estaremos pensando o que possa vir a ser o socialismo.
Há uma questão básica aí, pois a realização
desse ideal não é a encarnação de uma
idéia platônica qualquer.
Uma outra questão relativa à cientificidade que Marx
propunha diz respeito à idéia de que havia uma medida
objetiva da exploração. Isso também foi para
o espaço. Hoje nós sabemos perfeitamente que não
existe uma medida objetiva da exploração. Nós
sabemos que existe exploração, nós vemos a exploração
na cara, e nós não temos medidas objetivas para essa
exploração. Como consequência disso nós
nos voltamos para as idéias políticas de poder. E pensamos
essa exploração em termos políticos, exclusivamente.
Ora, o que acontece? Quando nós começamos a pensar a
questão do poder exclusivamente em termos políticos,
a tendência é, a meu ver, uma confusão, uma expansão
generalizada dos conceitos.
Luiz Felipe de Alencastro A vinculação
do socialismo a Marx tem vários problemas, que é preciso
situar historicamente. Marx pensava, quando ele estava vendo a luta
de classes na França, quando escreveu o "18 Brumário",
que aquela transparência das classes, do enfrentamento entre
as classes que estava ocorrendo na França, seria o quadro dominante
dali por diante na democracia parlamentar, na República etc.
Ele subestimou a capacidade do próprio regime republicano de
criar uma ideologia que embaralhasse de novo a noção
de classe, e esse é um dado fundamental na historiografia.
Esse livro do Agulhon que acabou de ser traduzido, "1848
O Aprendizado da República", insiste muito sobre isso,
sobre como na revolução de 1848 é cristalino
o enfrentamento entre as classes e como isso fundamentou toda a análise
de Marx a respeito da luta de classes e como isso se embrulhou em
seguida. No "Manifesto Comunista", Marx fala da superação
da questão nacional, e é incrível porque nem
o capitalismo nem o socialismo real foram por aí. Também
em relação à questão do definhamento do
Estado é interessante retomar a polêmica que não
houve, mas que estava subjacente entre Marx e Tocqueville, e
aí Tocqueville realmente tinha razão. O Estado estava
aumentando, estava se fortalecendo, ao contrário de definhar,
como Marx previu.
Há também os problemas sócio-econômicos,
que vão nos trazer agora para um outro ponto do socialismo
real que não se falou aqui, que o chamado comunismo rural.
Porque não são só a URSS ou a Alemanha Oriental
que estão dando com os burros n'água. Diga-se de passagem
que o mutismo do alemão oriental não é só
do comunismo; ele tem nas costas mais 12 anos de nazismo. Chego então
à seguinte questão: Marx pressupunha que a penetração
do capitalismo no campo se daria muito mais rapidamente do que aconteceu,
no que diz respeito às relações de trabalho e
sobretudo à mecanização.
A primeira grande colheitadeira apareceu no final do século
19, enquanto a indústria têxtil e a siderúrgica
já tinham grandes máquinas trabalhando e a coisa é
muito mais rápido na indústria do que foi na agricultura.
Esse ponto é importante porque Marx estava pensando no modelo
inglês, no modelo de desapropriação do campesinato
que tinha acontecido na Inglaterra desde o século 18, e ele
é o grande historiador social da Inglaterra. Ora, esse modelo
e esse pressuposto vão até em certo sentido deformar
a União Soviética, porque a idéia de que a grande
propriedade capitalista inglesa era mais produtiva, era mais moderna
e era unidade de base vai levar ao leninismo dos sovkoses e dos kolkoses,
das grandes unidades agrícolas, onde a agricultura soviética
foi à breca.
A essa questão liga-se um outro paradoxo porque não
há nada mais aberrante para Marx do que a idéia do camponês
revolucionário. Engels ainda tinha alguma tolerância,
mas se alguma coisa é inteiramente estranha ao marxismo é
essa idéia de que, de repente, se possa chegar ao socialismo
através de uma revolução camponesa. Vejam bem,
não falo de proletários rurais, mas de camponeses mesmo,
como aconteceu na China e na Indochina inteira. Isso de repente virou
também patrimônio socialista e rápido todo mundo
aceitou esse troço. Esse é um problema real, pois esses
países ocupavam os primeiros lugares na galeria socialista
e marxista do pós-guerra, sem que se fosse verificar a coisa
a fundo.
Esses paradoxos devem ser contrastados com outros dois, num outro
oposto, até já meio rebarbativos: o fato de a revolução
não ter se dado na Alemanha e o fato de não existir
movimento socialista organizado nos Estados Unidos, esse é
o grande paradoxo também, curioso. Isto posto, quero reivindicar
firmemente como socialista o movimento ao qual pertencem os partidos
socialistas ocidentais. A geração de socialistas que
chegou ao poder estou falando de Willy Bandt, de Mitterrand,
não de Felipe González, mas da geração
mais velha viu de perto o eco da ruptura da 2ª Internacional
com a 3ª, alguns deles andavam perto de gente que participou
dessa ruptura, eles sempre acharam que aquilo era uma coisa historicizada.
Nunca nenhum europeu culto achou que a Tcheco-Eslováquia ou
a Hungria iam ser comunistas pelo resto da vida. Eles sempre acharam
aquilo uma consequência do imperialismo soviético. E
não estou falando de europeu culto de esquerda, eu estou falando
também dos liberais. Os velhos jornalistas do "Le Monde"
nunca acreditaram que aquilo ia colar ali, e foi uma aposta que eles
ganharam.
Quando Mitterrand ganhou a eleição em 1981, exatamente
dez anos atrás, ele disse que a maioria social, pela primeira
vez em 200 anos na história da França, tem a maioria
política. Eu posso afirmar que não era um blefe. Ele
era o continuador da revolução, um progresso social
feito dentro do quadro das instituições republicanas
pelo movimento da esquerda republicana. E o seu governo está
estendendo a previdência social a toda população
francesa, o que também não é pouco. E a questão
de como financiar esses gastos sociais é debatida por socialistas
que de "Welfare State" não sabem nem o nome. Uma
coisa é o Keynes e a existência de um vago espectro de
movimento social nos Estados Unidos levaram essas medidas de reforma
interna, uma outra coisa é uma longa sucessão de lutas
de um movimento laico e republicano. São coisas que não
podem ser comparadas.
Roberto Schwarz Eu sou leigo, não sei economia,
e naturalmente fico um pouco intimidado com a companhia. Mas fiquei
com a impressão de que talvez tenham facilitado um pouco na
crítica quanto à utopia marxista. Faz muito tempo que
li "A Ideologia Alemã", posso não lembrar
bem, mas eu tenho a idéia de que as passagens sobre o pescador
e o caçador sobre o homem não-especializado, são
escritas em tom semi-humorístico. Repetem um lugar-comum da
reflexão alemã do período anterior, de oposição
aos efeitos mutiladores da nova divisão do trabalho. Não
penso que esse tipo de idéia se encontre em "O Capital",
e acho que é facilitar um pouco as coisas amarrar a utopia
socialista a um escrito que é de juventude e nem se destinava
à publicação.
Até onde sei, o debate socialista não girou a sério
em torno da possibilidade de que todos pudessem alterar a pesca, a
caça e a crítica segundo a preferência do momento.
Em "O Capital" a questão não é posta
desta maneira. A idéia é, singelamente, de que através
da expropriação dos meios de produção
os trabalhadores teriam a possibilidade de reorganizar a produção
e a vida de um modo mais racional e consciente, sem que o livro, "O
Capital", diga que este modo seja. Marx sempre foi econômico
em matéria de descrições de como as coisas deveriam
ser. Mas a noção de que os trabalhadores possam discutir
e buscar a melhor maneira de organizar o processo econômico
não é uma fantasia rebarbativa ou até regressiva,
como foi dito aqui.
Outro ponto: tenho a impressão de que a situação
argumentativa com relação ao capitalismo mudou profundamente
com o fim do período do chamado socialismo real, sobretudo
com o fim da última fase, que foi de decadência - eu
não saberia datar, mas evidentemente a experiência socialista
não andou sempre tão mal como nestes últimos
anos. Mas voltando à situação argumentativa:
nos últimos 20 anos, todo intelectual de esquerda teve a experiência
de que quando ele tinha alguma crítica a fazer ao capitalismo,
alguma objeção, ela era esvaziada a priori pelo fato
de que tudo do outro lado era muito pior. Assim, se eu fizesse uma
crítica às formas de propriedade capitalista, crítica
que eventualmente poderia ter até alguma pertinência,
era inevitável, historicamente inevitável, e nem criticável
neste sentido, era inevitável que a resposta fosse tática:
mas do que é que você está falando, pois se a
burocracia dispõe de meios de produção de maneira
incomparavelmente mais autoritária e arbitrária, está
visto que essa questão da propriedade é irrelevante.
Normalmente, o que aconteceu no debate sobre o capitalismo nesses
últimos 20 anos é que as objeções não
tinham relevância diante do fato de que do outro lado era pior.
Como insistir de boa-fé nas limitações às
liberdades no mundo capitalista, se no mundo socialista as limitações
eram incomparavelmente maiores? Em consequência, a crítica
ao capital e à sociedade capitalista nos últimos anos
fez figura de disparate, por mais fundada que fosse.
Essa situação do debate agora acabou. E acho que o estatuto
da crítica à sociedade capitalista também vai
mudar, ele vai recuperar a relevância. Como o capitalismo ficou
sozinho em campo, por assim dizer, imagino que uma teoria crítica
do capital volte a estar na ordem do dia. E acho difícil que
uma teoria crítica do capital não tenha alguma coisa
a ver com suas origens históricas.
Há outro sentido ainda em que o regime da crítica pode
mudar. Na quase ausência de socialismo, com o capitalismo ocupando
todo o campo, penso que a tendência a analisar sociedades separadamente
essa sociedade capitalista deu certo, aquela não deu
vai ficar em dificuldade. Essa tendência talvez se dissolva,
a bem de uma tentativa novamente global. Não que seja a mesma
das análises clássicas, mas vai haver motivos para enxergar
o capitalismo novamente como uma forma global, como o nexo global
do mundo contemporâneo, do qual fazem parte tanto as sociedades
que deram certo como as que deram horrorosamente errado. Nós
vamos voltar a uma visão de conjunto desse processo, o que,
até onde vão minhas luzes, é um modo mais real
de encarar a atualidade.
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