Da Sucursal do Rio
Audrey
Hepburn foi uma daquelas raras criaturas que jamais imaginaríamos
velha, gorda, feia, deselegante -e muito menos morta por um câncer
no intestino. Nunca houve, e talvez jamais apareça, outra
igual. Mesmo que o gênero "gamine" volte à
moda, será difícil encontrar uma garota com todos
os seus predicados. Não parecia deste mundo, mas do reino
das fadas e dos elfos. Pescoço de cisne, olhos de corça,
sempre me lembrou Bambi, só que pintado por Modigliani. Magérrima
e recatada quando a onda era ter as curvas e o "sex appeal"
de Marilyn Monroe, Audrey conseguiu o impossível: impor-se
como um padrão de beleza invejado por todas as moças
da década de 50.
Alguém já disse que a palavra elegante parecia ter
sido inventada para ela, Grace Kelly, Cary Grant e ninguém
mais. Estava uma graça -ainda enxuta, linda e chiquíssima-
quando a vi pela primeira e única vez pessoalmente, durante
a inauguração dos estúdios MGM-Disney, em Orlando
(Flórida), cinco anos atrás. Acabara de chegar aos
60 e faria só mais uma aparição cinematográfica,
em "Além da Eternidade" (Always), de Steven Spielberg.
Há um ano que se engajara em missões do Unicef pelos
rincões mais miseráveis do planeta. Partiria na semana
seguinte para Bangladesh. Deixara de ser a princesa de Hollywood.
Diante de mim estava uma santa, Saint Audrey, a Madre Teresa vestida
por Givenchy.
Além de dar vazão aos seus sentimentos humanitários,
estava cumprindo uma dívida sentimental. Sem a ajuda do organismo
(Unra) que daria origem ao Unicef, ela talvez tivesse morrido antes
de completar 18 anos. Quando a guerra acabou, em 1945, Audrey, submetida
a cinco anos de má nutrição, era pele e osso.
Na condição de refugiada, trocou a Holanda pela Inglaterra,
onde se curou de uma anemia profunda e se reencontrou com o seu
destino manifesto.
Belga dos arredores de Bruxelas, Audrey Hepburn-Ruston já
nasceu com sangue azul. Sua mãe, de origem holandesa, era
baronesa, e seu nobre avô materno fora governador da Guiana
Holandesa. Abandonada na infância pelo pai - banqueiro londrino
que se filiaria ao partido nazista inglês e prestaria serviços
a Hitler como advogado -, teve de enfrentar a guerra na terra da
mãe, logo ocupada pelas tropas alemãs. Só em
Londres, na escola de Marie Lambert, retomaria as aulas de dança,
seu ganha-pão pelos próximos cinco anos. A partir
do sexto ano, arriscaria algumas pontas em filmes em geral obscuros.
Ao final de "O Mistério da Torre" (The Lavender
Hill Mob), fácil o melhor dessa fase, seu colega de elenco,
Alec Guinness, a recomendou para o papel de Lydia em "Quo Vadis?",
mas o diretor Mervyn LeRoy preferiu Deborah Kerr.
Dois filmes depois, quando rodava uma cena no saguão de um
hotel em Monte Carlo, a escritora francesa Colette a viu e comentou
com o marido: "Aquela ali seria uma Gigi perfeita". E
foi. Entre a temporada na Broadway e a tradicional turnê pelo
interior dos EUA, rodou seu primeiro filme americano: "A Princesa
e o Plebeu" (Roman Holiday), com Gregory Peck, sob a direção
de William Wyler. Num piscar de olhos, o mundo se curvou ao seu
encanto irresistível. E o melhor ainda estava por vir. O
Oscar veio logo. O Tony, o Oscar do teatro, também. Aliás,
chegaram juntos, premiando-a por suas performances em "A Princesa
e o Plebeu" e na peça "Ondine".
Administrando sua carreira com invejável "savoir faire",
Audrey atuou em filmes ruins, mas sempre recusou papéis que
comprometessem sua imagem ou a impedissem de brilhar. Abriu uma
exceção para Mel Ferrer, então seu marido,
cujo desejo de filmar "A Flor que Não Morreu" (Green
Mansions) era maior que a sua habilidade para evitar desastres.
Deu no que deu.
Uma antologia da atriz incluiria, obrigatoriamente, cenas de "Sabrina",
"Cinderela em Paris", "Amor na Tarde", "Bonequinha
de Luxo", My Fair Lady", "Um Caminho Para Dois"
e "Robin e Marian". Foram estas as suas obras-primas.
Sabrina era uma Cinderela moderna, assim como a que se deixou conquistar
por Fred Astaire às margens do Sena. No lubitschiano "Amor
na Tarde", seu segundo filme com Billy Wilder, ela explorou
ao máximo o seu "coté gamine". Não
há dúvida que Marilyn Monroe era mais talhada para
o papel de Holly Golightly, a bonequinha de luxo imaginada por Truman
Capote, mas Audrey poucas vezes esteve tão charmosa e divertida
como em "Breakfast at Tiffanys's".
Mais difícil do que encarnar uma prostituta, mesmo de luxo,
ou uma lésbica (em "Infâmia"), foi dar credibilidade
aos seus "affairs" amorosos. Audrey especializou-se em
contracenar com galãs bem mais velhos do que ela: Gregory
Peck, Humphrey Bogart, William Holden, Henry Fonda, Fred Astaire,
Gary Cooper, Cary Grant, Rex Harrison. Ninguém ligava a mínima.
Pois ninguém conseguia tirar os olhos dela. Nem as mulheres.
(Sérgio Augusto)
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