DEFININDO POSIÇÃO CONTRA O ABSTRACIONISMO


Publicado na Folha da Noite, quinta-feira, 21 de outubro de 1948

Neste texto foi mantida a grafia original

Trinta anos de pintura refletidos numa exposição retrospectiva

Di Cavalcanti, na vespera da inauguração de sua grande mostra de arte, faz afirmações, em entrevista às "Folhas" - "A noção romantica do super-homem ruiu, a noção de uma super-arte há de ruir tambem"- O realismo possui "riqueza historica, segurança da razão e a força da compreensão humana"

Amanhã, no saguão do edificio em construção do Instituto dos Arquitetos, à rua General Jardim, o pintor Di Cavalcanti inaugurará uma exposição retrospectiva de seus trabalhos de pintura e desenhos realizados no decorrer de 30 anos.
O poeta Guilherme de Almeida saudará o pintor.
Di Cavalcanti concedeu às 'Folhas" uma entrevista definindo sua posição contra o abstracionismo atualmente em voga em certos circulos artisticos. Di Cavalcanti afirmou: "A noção romantica do super-homem ruiu, a noção de uma super-arte há de ruir tambem". Ele se manifestou a favor do realismo que possui, "riqueza historica, segurança da razão e a força da compreensão humana."

Nascimento e primeira exposição

Di Cavalcanti nasceu aos 6 de setembro de 1897, à rua do Riachuelo, no Rio de Janeiro, filho de Frederico Augusto Cavalcanti de Albuquerque e Mello e d. Rosalia de Sena. Seu pai era coronel engenheiro do Exercito e professor no colegio Militar do Ceará. Foi transferido para o Rio e no dia de sua chegada à Capital Federal, Emiliano nasceu.
Di Cavalcanti cursou o Colegio Militar e as Faculdades de Direito do Rio e de São Paulo, mas logo desistiu, pois a sua vocação era para as artes plasticas. Em 1918, aos 20 anos de idade, realizou a sua primeira exposição aqui em São Paulo, fazendo-se notar pela originalidade de suas composições.


Em Paris

Depois de 1922, Di instalou-se em Paris, onde foi encontrá-lo Sergio Milliet. Ali esteve em contacto com a fina flor dos renovadores franceses. Sergio Milliet descreve da seguinte forma, aqueles tempos alegres em que o artista passava o dia no atelier de Tarsila do Amaral, "que estudava com Lhote, Gleizes e Leger".
"Reuniam-se alem dos artistas brasileiros e dos mestres de Tarsila, os poetas e escritores Blaises Cendrars, Jean Cocteau, Jules Supervielle, René Maran, o compositor Eric Satie, o "marchand" Ambroise Vollard, o principe negro Tovalu etc. Tarsila entrava na fase "Pau Brasil" após o estagio no cubismo e Di dedicava-se ao estudo da maneira monumental de Picasso que tanto enriqueceu e que foi o primeiro a transpor através de uma originalidade indiscutivel para o assunto brasileiro. (...) Lembro me de certas reuniões, uma em que se serviu feijoada com pinga a Ambroise Vollard, outra em que Satie tocou "Gymnopedie" enquanto Cocteau se deitava debaixo do piano para melhor digerir a musica."
Em 1925, Di voltou ao Brasil, onde começou a desenvolver intensa atuação, ilustrando livros, jornais, escrevendo cronicas de arte, pintando, desenhando. Em 1928 vai à Europa novamente, mas volta logo.

O primeiro mural moderno

Em 1929, a pedido do sr. Antonio Prado Junior, prefeito do Distrito Federal, realizou Di a primeira obra mural moderna no Brasil, decorando o foyer do teatro João Caetano.
Em 1934, faz outra viagem à Europa, em companhia da pintora Noemia, sua esposa, expondo trabalhos nos principais centros do velho mundo.
De volta ao Brasil, em Pernambuco, o então governador Carlos de Lima Cavalcanti, seu parente, convida-o para fazer uns murais no teatro da Brigada Militar. Esses murais foram vergonhosamente destruidos durante a epoca ditatorial.

Ao lado do povo

Di Cavalcanti sempre foi um homem, como grande numero de seus antepassados, que sempre amou seu povo e sua terra. Nunca foi desses demissionarios que por nada participam dos negocios publicos do país. Di sempre teve sua posição. Como outros de outros tempos, e, outros mesmo de hoje, nascidos à sombra das velhas tradições rurais da zona canavieira, colocou-se firmemente ao lado do povo. E por isso, muito tem sofrido.
Depois de 1935, voltou à Europa e só regressou ao Brasil quando a França foi ocupada pelas tropas de Hitler. Nessa nova fase da vida, Di trabalhou intensamente fazendo grandes progressos em sua arte, realizando duas exposições no Brasil, uma no Rio, e outra em São Paulo.
Expôs tambem em Buenos Aires.

Trinta anos de pintura

Os amigos de Di Cavalcanti resolveram agora promover essa exposição retrospectiva de trinta anos de sua pintura. No seu atelier, à rua Sebastião Pereira, fomos encontrá-lo trabalhando nos ultimos quadros. Di Cavalcanti é um homem que tem segurança. Foi logo nos dizendo: "Minha exposição demonstrará plenamente que há, no Brasil, ambiente para o desenvolvimento das artes plasticas, como em qualquer centro civilizado. Nos muros do novo edificio do Instituto Brasileiro de Arquitetura demonstrarei ao publico paulistano o primeiro que me acolheu já em 1918 em que fui fiel a mim mesmo e que tive força de vontade para lutar trinta anos por uma arte independente de capelas e academias.
Lutei sempre para que a sociedade compreendesse o artista e sou daqueles que acham ser toda arte autentica, um patrimonio nacional."

Internacionalismo em arte, coisa vã

E afirmou categorico: "Internacionalismo, em questão de arte e sobretudo arte plastica, é coisa vã. A obra de arte vive perto do instinto racial e do desenvolvimento social do povo, consequentemente da nação. "No Brasil, nossa arte plastica, autenticamente brasileira, é o que possuimos de arte popular: as esculturas toscas do nordeste e outras raras manifestações de primitivismo."

Pintura brasileira

- "Culturamente podemos tambem criar uma pintura brasileira, criando-a paralelamente com a nossa completa independencia social, quando não formos mais uma nação de vida economica precaria, impossibilitada de alimentar seus filhos, de dar a mais rudimentar aprendizagem aos seus trabalhadores.
Todo esforço individual fica como exemplo durante certo espaço e quando perdura é a custa da insistencia lirica de abnegados admiradores nossos."

Abstracionismo

- "Agora ainda aqui em São Paulo um furor abstracionista. Trata-se apenas de um movimento comercial de "marchands" parisienses. Em 1923, eu e Tarsila do Amaral já haviamos penetrado a escola abstracionista, quando conviviamos na França com alguns iniciadores desse movimento. Tarsila chegou mesmo, em 1927, a pintar telas que poderiamos chamar de abstracionistas como o "sono" e outros. Mas, a artista voltando ao Brasil se viu logo arrastada pelas tendencias nacionalistas: Pau-Brasil e antropofagia."

Teoria de fim de guerra

"O que se chama abstracionismo é uma teoria que vem do fim da primeira grande guerra e que se repete no fim desta, agora, conjuntamente com o existencialismo. As caracteristicas "niilistas" dessa já sovada estetica e sua inadaptação social demonstrou o seu fundo morbido e desesperado. É arte de homens vencidos, sobre tudo pela solidão intelectual em que se colocaram.
Eles querem superar a realidade sem alcançar a grandeza total da realidade de nossa epoca, esse majestoso movimento de encontro dos homens comuns para uma comunidade humana, onde a autenticidade do esforço individual não há de ferir a sensibilidade coletiva.
A noção romantica do super-homem ruiu, a noção de uma super-arte há de ruir tambem."

Arte e publico

- "Aqueles que afirmam que a arte viveu sempre divorciada do publico, não conhecem a historia da arte nem historia geral e supõem que a atividade artistica de hoje se assemelha à de outras epocas. Dizer-se que não houve comunicação social entre o artista e o publico em Atenas, em Veneza da Renascença, no periodo das catedrais da Idade Media é nada saber da historia da Arte.
Quando o quadro e a estatua passaram a ser objeto de especulação comercial, logo que se formou o que chamamos a epoca moderna, em historia da arte nasceu o mercantilismo burguês. Com as especiarias do oriente, as obras da arte da Flandres tiveram um valor diferente na ampliação dos mercados. Já não é mais um principe que manda decorar uma Igreja para a gloria de seus santos e grandeza de seu povo. Surge a nova classe dos comerciantes afortunados que desejam se parecer com os principes, então compram o que pertencia aos principes. Mas, nesse momento mesmo, surge uma arte que representa essa classe acendente e a critica - um realismo que aí está na pintura desde o fim do seculo XVII até a metade do seculo XIX, renovando-se sempre com os costumes diante das crises sociais que se avolumam progressivamente."

Realismo

- "A crise social da atualidade dividirá os artistas; de um lado haverá uma arte utopica minoritaria, esterilizada na forma, o abstracionismo. Do outro lado ficará o realismo, e o realismo possui a riqueza historica, a segurança da razão e a força da compreensão humana. Ninguem se ilude muito tempo com os produtos de crise. As orientações murais artisticas e filosoficas, nascidas da genialidade delirante dos pequenos burgueses desesperados, de fato são um entrave na marcha do mundo moderno. Tudo, porem, que tem a marca da agonia está proximo da morte.
Aqui no Brasil há um grupo de artistas dispostos a não se incomodar com o barulho esteril que vem capiciosamente bater à nossa porta: Portinari, Clovis, Graciano, Quirino, Guingard, Rebolo, Djanira, Volpi, Zanini, Pancetti, Gomide e tantos outros continuarão a trabalhar com independencia e senhores do seu trabalho."


Pelo que se vê, a posição de Di Cavalcanti é clara, sem rebuços. Poderão os opositores contradizê-lo, mas ninguem se esquivará da luta por ele aberta.
Hoje, como ontem, é o mesmo homem de vanguarda no ataque contra o que supõe marcos ultrapassados.
A celeuma que se levantou depois da sua conferencia no "Museu de Arte Moderna", sobre os "Mitos do Modernismo" e do seu artigo na revista "Fundamentos", bem demonstra que esse homem de cinquenta anos, ainda é um bom atirador de primeira linha.


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