O THEATRO JAPONEZ


Apesar da invasão do cinema e do Theatro occidental, o povo nipponico mantem intacto o seu enthusiasmo pelo velho theatro classico

Publicado na Folha da Manhã, domingo, 21 de janeiro de 1934

Neste texto foi mantida a grafia original

Nos theatros japonezes de Tokio e Osaka consagrados ao culto scenico e tradicional do Kabuki, commemorou-se, nos fins do anno passado, mais um anniversario de Danjuhro IX, o famoso comediante a quem se deve uma efficaz renovação e o resurgimento definitivo desse genero de obras populares e classicas, cujo repertorio pertence, por direito exclusivo, a seus descendentes.
Em alguns paizes da Europa foram representadas, graças à iniciativa da "Nion - Geki-Kjokai" (Associação do Theatro Japonez) algumas dessas obras, de puro estylo classico e historico, contra as quaes se rebellam, inutilmente porém, alguns vanguardistas do "Tsukij", oppondo contra ellas modernismos de indumentaria e decorações occidentaes.
Mas o que interessa pôr em destaque e exaltar é justamente aquelle criterio tradicionalista e aquella condição de exotismo, que fizeram voltar a attenção dos occidentes para actrizes como Kimehachi e Sada Yako, - actores como Danjuhro, cujo anniversario foi comemorado ha pouco, e Tokojiro Tsutsui, Kikoshi Minasu, Koshiro, Uzaemon e Kikugori, interpretes impeccaveis e enthusiastas do "Kabuki-Reki".
O "Kabuki" está mais proximo de nós, no tempo e na sensibilidade do que o "Kabura" primitivo ou os dialogos e recitativos do "No", consequencia daquelle. Enquanto o "No" conserva seu hermetismo altivo e sua aristocratica intransigencia, o "Kabuki" se satura e se empapa de realismo, recebe e transmite paixões e sentimentos humanos, procura incutir as fortes emoções estheticas na alma das multidões, sem abdicar, por isso, da qualidade primordial ao theatro japonez: a poesia heroica, a arrogancia cavalheiresca, - expressas numa linguagem elevada e enscenadas com grande luxo.
Assim como o "No", que tem sua origem nas "pantomimas-bailados" e nos recitativos dos bonzos errabundos, está impregnado de um carater religioso e suas creações são consideradas como ritos e exhortações às divindades sintoistas - o "Kabuki", mais accidentado, mais propicio a evoluções, e no qual a vida se apresenta tal como é, deriva de remotissimas trovas populares de sentido caracteristicamente tragicos. Em outros tempos, esse genero theatral era interpretado por uma só pessoa que, sentada por traz de um pulpito, punha-se a recitar a peça toda, abanando-se com um leque para dar mais emphase a declamação. Depois, juntou-se à voz humana os sons do "samisen" (guitarra japoneza de tres cordas) e a peça preferida pelo publico era uma longa fabula, a "Zoruri-Zinni-dansoci", que descrevia os amores de Yositsuné com a formosa Zoruri.
Mas a fundação do "Kabuki Sibai", a creação do theatro verdadeiramente popular, deve-se a uma mulher dos fins do seculo XVI. Lafcadio Hearn, autor de tantas e tão sugestivas paginas sobre o mysterioso Oriente, relata a vida novellesca da mulher, no seu livro "Glimpses of unfamilier Japan".
Ella chamava-se Okumi. Era sacerdotiza do templo Ydzumo e nenhuma de suas companheiras podia competir com ella em belleza e graça. Apaixonada por Nagoya Sanzaburo, abandonou o templo, certo dia, e fugiu com o seu amado para Kioto. Mas, durante essa travessia, encontraram um homem que, se apaixonou tambem, violentamente, pela bellissima joven. Houve, então, entre os dois rivaes, uma terrivel scena de ciumes, scena que terminou em tragedia, porque Sanzaburo matou o seu rival. E, apesar de tudo, a lembrança dessa morte nunca mais sahiu da imaginação de Okumi.
Faltos de recursos em Kioto, a ex-sacerdotiza resolveu ganhar a vida bailando dansas rituaes, no leito secco do rio Kamo, isto é, no mesmo lugar em que se acha hoje a rua dos theatros. Em pouco tempo ella conseguiu reunir varias discipulas e o publico, que accorria para vêl-as dansar, ia se tornando cada vez mais numeroso. Foi então que Okumi e Nagoya seguiram para Yedo, onde levantaram o primeiro theatro popular do Japão.
Com a morte de seu amante, Okumi abandonou a carreira theatral e voltou para Kidzuki, onde viveu algum tempo leccionando declamação e arte poetica. Mas a recordação daquelle homem que, tempos atrás, morrera tragicamente por ella, a impressionava sériamente e povoava-lhe as noites de pesadellos. Essa obsessão foi mais forte do que tudo: ella cortou os cabellos, e levantou um templo e encerrou-se nelle, acabando ali os seus dias, toda entregue às orações e aos sacrificios physicos.
Esse tempo existiu até a segunda metade do seculo XIX. Hoje delle só resta a estatua mutilada do deus Djizo, que fôra a unica testemunha dos soffrimentos moraes da infortunada sacerdotiza.
Em 1667, um decreto imperial prohibiu que homens e mulheres representassem juntos afim de evitar as licenciosidades que se praticavam nos theatros. Os papeis femininos foram, então, desempenhados por moços que usavam mascaras. E appareceram, tambem, os theatros em que só havia actrizes e cujos papeis masculinos eram encarnados pelas artistas velhas.
Mas este ultimo genero theatral tambem foi prohibido; e, então, surgiu o Ayatsuni-Sibai, o theatro de "marionettes", que ainda conserva todo o seu prestigio. Os bonecos vestiam-se com o mesmo luxo dos artistas e, como estes, traziam nas mãos o leque imprescindivel. E os homens, então, resolveram copiar a machina: os artistas nipponicos passaram a representar com movimentos e gestos rigidos, como se fossem bonecos de molas.
Mas foi aos Danjuhro, essa dynastia de comediantes respeitaveis e respeitados na historia do theatro japonez, que se deveu o renascente esplendor e a definitiva consolidação do "Kabuki", verdadeira expressão da arte japoneza. O repertorio "kabuki", que um Danjuhro restabeleceu durante o reinado do imperador Meiji - e que ainda ha pouco foi representado integralmente nos theatros de Kioto, Tokio e Osaka, com funcções que começavam as 10 horas da manhã e terminavam às 22 horas, em homenagem ao nono representante da dynastia, fallecido em março de 1903 - campõe-se, geralmente, de evocações cavalheirescas, de allusões galantes ao Yoshiwara, de episodios historicos, de apologos lyricos e, tambem, de burlescas e picarescas parodias, intituladas, com singular acerto, de "Kiofén" (palavras malucas). O realismo aspero e violento é alternado com ingenuos symbolismos e delicados episodios espirituaes. Os actores não se detêm ante as scenas exageradamente grotescas ou exageradamente patheticas. Esgrimistas, lutadores, cantores, bailarinas, acrobatas, elles são dotados de uma infinidade de recursos, para interpretar os heroes remotos ou os animaes fabulosos com expressiva realidade. Mas, em meio dessa interpretação energica, vigorosa e realista da vida, surge frequentemente o "além", a Fatalidade que intervém mysteriosamente na vida do homem. É a "sombra" visivel, palpavel e audivel que não se separa do protagonista, que o segue como a sua Consciencia e o precede como o seu Destino. Enlutada e sinistra, o seu rosto é, de vez em quando, illuminado, nos momentos culminantes para que os espectadores não percam nenhuma de suas expressões, principalmente quando chega o instante em que elle pratica o barbaro "hara-kiri".
Uma curiosa personificação dessa sombra negra do "Kurovo" tradicional é, por exemplo, o personagem Enzo do drama "Kagenochi-kara". Sombra viva e magnifica do "espirito vingativo" e que o actor Tokujiro Tsutsui interpreta de um modo insuperavel.
Vario e dynamico como a alma humana e as paixões dos homens através o tempo e da Natureza, o "Kabuki" offerece quadros de plastico e polychromo colorido como o Koi-no Yozakura (O amor quando florescem as cerejeiras), onde vemos dois bravos samuraes em luta pelos encantos de uma cortezã, no bairro galante da velha Kioto; estampas medievaes como Takatoki, onde surge a crueldade tyranica de um senhor feudal de ha seiscentos annos, dissoluto e feroz, rodeado de cães tão sanguinarios como elle; tragedias de alta envergadura theatral como a Kagi-nochi-Kara (A providencia occulta), que faz pensar em Tchikamatsu Monzagemón, o Shakespeare japonez, e na qual sobresáe o impulso combativo, a impetuosidade da celebre vingança dos irmãos Sosa, uma das melhores variantes da famosa hespanhola "Os quarentas capitaes".
E, entre os dramas, as comedias, os quadros de costumes, as dansas de "geishas" e de mascaras, apareceram as dansas lithurgicas, faunescas, burlescas e guerreiras, em que o actor se transforma em bailarino e acrobata, como no caso de Kikugoro, o melhor interprete da rapoza lendaria disfarçada em guerreiro, da obra Michiyuki-Hat-sume-no-tabi que tem eloquente, todo o encanto rythmico e remoto das velhas fantasias orientaes.
A invasão de novos generos do espectaculos, quer theatraes, cinematographicos ou esportivos, não conseguiu matar no publico o gosto por suas obras classicas. Os japonezes vão ao cinema, gostam dos filmes que vêem, accorrem aos theatros modernos e occidentalizados, mas conserva intacta a admiração pelo seu velho theatro.
Bousquet, no seu livro "Le Japon de nos jours", escreve:
"À entrada de seus actores favoritos, a multidão electriza-se. Gritos, que nenhuma combinação de palavras poderia reproduzir, explodem de todos os lados. Embora pertençam às classes mais humildes da sociedade, os admiradores do theatro classico tem por seus artistas uma admiração sem limites e chegam, muitas vezes, a sustentar os mais pobres".
E Jean Dhasp, no "Japão contemporaneo", observa que as mulheres são as assistentes mais enthusiastas:
"É difficil de compreender a admiração louca que a clientela feminina dos theatros dedica aos actores. Estes são venerados, lisongeados, amados, e a sua profissão lhes proporciona, quasi sempre, bem estar e riqueza".
Testemunho insophismavel desta affirmação de Dhasp é o seu numero de estampas populares existentes no Japão, consagradas à morte de Danjuhro VIII - antecessor de Danjuhro IX, cujo aniversario foi celebrado ha pouco - e que se suicidou praticando o hari-kiri no anno de 1853.

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