ZEN, A ARTE MILENAR DO JAPÃO


Publicado na Folha de S.Paulo, sexta-feira, 20 de setembro de 1974

O mundo já conhece, a força de um contato mais próximo nas últimas décadas, a variedade e riqueza da arte do Japão. Mas, suas profundezas permanecem envoltas num mistério que vem de milênios, acessivel a uns poucos ocidentais que se aventuraram a conhecê-lo. E essa aventura trouxe-nos de fato, alguns gênios da pintura ocidental, como Van Gogh e Paul Gauguin, o que já é um convite a novos atos de desprendimento em direção ao Oriente.
Sem dúvida, a maior dificuldade dos ocidentais, nessa aventura, é serem precisamente ocidentais. Trata-se de realidades distintas, e no Japão, como em todo o Extremo Oriente, arte é o mais belo exemplo de um casamento perfeito com a realidade. Nessa parte do mundo, arte e realidade estão indissoluvelmente associadas. E a realidade, para o japonês em particular, é profundamente religiosa.
O Ocidente desconhece essa experiência. Sem dúvida, a religião, no Oriente, deixou de governar o mundo, mas a sensibilidade religiosa existe no japonês moderno como já existia no primeiro japonês. Nem o homem medieval do Ocidente conheceu essa experiência, já que as relações entre a religião e a realidade estavam, por assim dizer, viradas pelo avesso, num sistema de dominação do real pela Igreja e pela Corte.
Não haveria lugar, nessa sociedade, para um monge Zen, que no Japão é o seu primeiro mestre, nas artes como na religião. O "mestre da pintura" ocidental, por mais religioso que fossem era igualmente mundano e, com frequência, boêmio. Sua arte deveria, em principio, servir á Igreja e á ordem estabelecida. A relação com a realidade era de subserviência, e quem não seguisse os cânones, mesmo um pintor profundamente religioso como El Greco, deveria enfrentar-se com o Inquisição.
Para o monge Zen, a realidade já é religiosa, e a um só tempo interior. A arte e a reflexão nascem de dentro, e por isso se pode compreender a sua união com o mundo, onde nada interfere, nem a lógica tão cara os ocidentes, nem a emoção. Há, somente, disciplina e transcedência.
A dificuldade do ocidental para chegar perto da arte oriental está precisamente nisso: a sua realidade é pensada segundo uma lógica estrita. A lei se impõe a uma natureza caótica, e isso vale tanto para a ciência como para a arte que só veio descobrir esse absurdo muito tarde.
Van Gogh e Gauguin, que souberam chegar ao Oriente acabaram misticos, loucos e esquecidos. O próprio Gauguin apontava para o Oriente como um caminho. O que viram, poucos sabem ainda. E o ocidental se surpreende mais ainda quando, como turista, descobre que pode frequentar cursos da are milenar do Shodô (caligrafia) em Tóquio.
E que a arte deixou de ser coisa de elite no Japão desde o século XVI, com o "Ukiyoê (a gravura em madeira ou papel com tinta de China). Todos podem ser iniciados, não há segredos ou mistérios. Afinal, a caligrafia do Shodo se faz com um pincel, grosso ou fino, e supõe-se que mesmo um turista possa usá-lo. Para isso, existem os cursos. Mas só o profissional, naturalmente, conseguirá transmitir na escrita toda a espiritualidade que aprendeu com longos anos de meditação Zen, e será preciso compreender em que acreditam para apreciar a totalidade da sua arte, e da arte do Japão.
O Shodô parte de um princípio que alguns ocidentais já aceitam: quando se quer conhecer alguém, talvez, o melhor não seja convidá-lo para um jantar. O japonês acredita que pode conhecê-lo por sua caligrafia: a escrita revela o caráter do homem, seu aspecto físico e seu temperamento, e reflete também seu humor e seus pensamentos no momento.
No Japão, há muitos séculos a caligrafia ocupa um lugar de destaque, como forma de arte original que exige, ao mesmo tempo, espirito de criação estética e uma grande sensibilidade intelectual. Certamente o surgimento do lápis e da caneta esferográfica alterou profundamente esse hábito oriental, pois o Shodô é feito tradicionalmente a pincel, com tinta da China. Mas hoje, essa arte está voltando às escolas do Japão.
Os mestres da caligrafia, espalhados por mais de cem associações de Shodô em Tóquio, dão aulas particulares e cursos livres a crianças, adultos e turistas. E uma vez por ano, no segundo dia do Ano Novo, há o "Kakizome", um acontecimento nacional. Todos os membros da família pegam o seu pincel e dedicam uma frase, geralmente de um pensador Zen famoso, a um amigo. Na praça do Budokan, em Tóquio, milhares de jovens espalham seus papéis pelo chão para fazer o seu Shodô.
Essa arte foi introduzida no Japão por volta do ano 1.300, quando os ideogramas chineses, chamados "Kanji" no Japão, foram adotados para transcrever a língua japonesa. Nessa mesma época, por volta do ano 1.200, os monges Zen descobriram outra forma tradicional da arte japonesa: o Suiboku, ou Sumiê, que nasceu na China durante a Dinastia T'ang, no século oitavo.
O Suiboku também é feito com pincel e tinta preta da China, dando às paisagens e outros temas uma profunda perspectiva pela força do pincel e o uso de vários valores de preto, a única cor usada. Na pintura ocidental, o preto é apenas uma cor entre muitas outras, mas no Suiboku, o pintor - com uma disciplina semelhante à do monge budista - considera que o preto e toda a sua gama de nuances permitem expresar todas as cores da natureza.
Nessa arte, os espaços vazios têm a maior importância ao lado da simplicidade extrema: quanto menos traços e linhas, mais perfeito o Suiboku. Também um simples amador pode fazer o Suiboku, com apenas algumas aulas de um profissional. O que deixa o ocidental ao menos à vontade para desvendar os mistérios da arte Zen.

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