O Sr. José Maria dos Santos não é apenas o
pensador, sociólogo e historiador que nos deu "A política
geral do Brasil", a biografia de Bernardino de Campos e outras
obras de tomo. É também, ou antes, é principalmente
o jornalista que, num combate de meio século, jamais interrompido,
sempre estêve na brecha, em jornais do Rio e de São
Paulo, tomando do fato do dia para em torno construir artigos que
constituem verdadeiras ensaios.
Alguns desses artigos, escritos de 31 a 35, reuniram-se agora em
volume sob o titulo "Notas à história recente".
"Notas" que devem ser relidas, pela acuidade com que analisam
problemas que ainda estão de pé.
Delas escolhemos uma, que abaixo reproduzimos, para dar ao leitor
a medida da obra:
(Julho de 1935) Os interêsses econômicos
e financeiros do Brasil estão sendo agora tratados numa verdadeira
atmosfera de catástrofe. Só se ouve falar de remédios
extremos e recursos de agonia. O país, em luta com a crise,
esgotou toda a sua capacidade de resistência perante o exterior,
está literalmente desamparado, só podendo encontrar
uma última esperança de salvação no
repúdio desesperado e quase feroz de todos os compromissos
externos, quer dizer, no abandono intransigente de toda contenção
moral que se traduza praticamente num sacrifício qualquer
das últimas reservas que lhe restam ainda.
É mais ou menos isso o que se lê nos instantes e pressurosos
apelos à suspensão definitiva dos nossos pagamentos
no exterior, agora lançados diariamente, sem neles faltar
mesmo a veemente menção de que, perante um estado
de evidente ruína, não há mais lugar para considerações
abstratas sobre cumprimento do dever nem honra nacional...
Não há duvida de que ao devedor insolúvel deve
ficar o direito extremo de fugir. A cobrança, quando esta,
fora de toda hipótese de eficacia, representar apenas o prazer
shylockmano de o torturar. Mas também não deixaria
de ser uma insigne imprudencia retirar ao credor todos os meios
de verificar se, entre a declaração e o fato de insolvabilidade,
não ficaria espaço algum para a má fé...
Ora, ao ouvir aquelas alarmadas asserções, a primeira
idéia que ocorre a qualquer um medianamente informado sobre
os recursos do Brasil, é a de perguntar qual foi a calamidade
publica, qual o imenso desastre que conseguiu reduzir este país
a tal situação. A resposta é fácil.
Nada no genero lhe aconteceu. Nada, nem peste, nem guerra, nem sêcas,
nem inundações, nem mesmo um mencionavel bando de
gafanhotos desceu em qualquer ponto do seu vasto território.
Impõe-se portanto a conclusão de que, entre uma tão
inexplicável declaração de insolvabilidade
e um real estado de insolvabilidade, reste um espaço imenso,
dentro do qual, com as últimas noções de probidade,
bem poderiam também perder-se os ultimos cuidados de decência...
Para as nações como para os indivíduos, o essencial
não esta em dever ou não dever, nem em poder ou não
poder pagar. Está sobretudo em nunca agir de forma a autorizar
uma suspeita qualquer sobre a sua honestidade. Na imprensa especializada
dos grandes centros financeiros, ninguém pergunta se o Brasil
pode ou não pode pagar. Todo mundo indaga se o Brasil quer
ou quer pagar. Esta é que é a questão, por
que sobre a nossa verdadeira posição, ante os nossos
compromissos externos, ninguem pode têr dúvidas.
O Brasil, levando-se em conta as suas reais condições
econômicas, em face da sua população atual,
é de todos os países de mais de cinco milhões
de habitantes do mundo civilizado aquêle sôbre o qual
pesa uma dívida menor. Divida-se o total da divida pública
de qualquer daqueles povos pela respectiva cifra demográfica,
e ver-se-a que o quociente expressa sempre um encargo individual
de pelo menos o dobro daquele que em operação idêntica
nos caberia.
Dir-se-á talvez que a capacidade financeira de um povo não
se mede pelo número dos seus habitantes, mas sim pelo valor
de sua produção. Um povo mais numeroso pode sofrer
de problemas econômicos que o coloquem em grau de inferioridade
perante outros países de menor população.
Mas nesse caso, a resposta exata é a de que um problema econômico
é essencialmente o resultado de uma grande desproporção
entre os recursos do solo e as necessidades do meio demográfico.
É quando o solo não tem mais condições
de alimentar a população que os problemas econômicos
começam. Como pode então haver um real problema econômico
numa nação de oito milhões e meio de quilômetros
quadrados de terras totalmente aráveis e de proverbial fertilidade,
reservadas a alimentar e fazer viver apenas quarenta e cinco milhões
de habitantes!? Se essa nação se restringe a produzir
muitos menos do que outras de muito menores recursos territoriais
e demográficos, se por aí ela chega a declarar-se
insolvável perante uma divida externa que não é
relativamente nem a metade de que pesa sôbre aquelas outras,
o seu problema não é mais econômico é
sem dúvida de outra natureza.
O Brasil não sofre verdadeiramente de nenhum problema econômico,
sendo portanto falso que esteja em estado real de insolvabilidade.
A nossa hoje tão apregoada insolvabilidade só existe
em função de certos negócios inviáveis
que tendo ate agora vivido sôbre o País e o reduzido
ao mais desolado pauperismo, não querem afinal resignar-se
à liquidação. A ilusão do país
insolúvel nasce apenas da restrição sistemática
do horizonte econômico do Brasil ao estreito círculo
dêsses negócios.
Desde porém que se queira olhar o nosso grande país
tal como êle realmente é, sem reduzi-lo mais à
mesquinha e angustiada escala daqueles interêsses, logo se
verá que a sua divida externa, nela compreendendo os empréstimos
da União, os dos Estados e municípios e os dos negócios
do café, não pode representar embaraço à
sua vida nem estôrvo algum ao seu progresso.
O Brasil pode quando quiser por em perfeita ordem as contas dos
seus empréstimos externos, assegurando-lhes daí por
diante, pontual e desafogadamente, o serviço total de juros
e amortização, como é de seu dever de honra
e seu interesse primordial. Dever de honra, porque ninguém
dirá que o não seja o cumprimento de obrigações
solene e livremente assumidas para com súditos estrangeiros,
segundo princípios de direito que o país adota e certamente
desejaria, em condições idênticas, ver fiel
e escrupulosamente observados para com os seus nacionais. Interêsse
primordial por que, dos atos a praticar para cumprimento eficaz
daquelas obrigações o primeiro resultado seria a nossa
automática libertação do falso e miserável
sistema econômico a que fomos reduzidos, que é a causa
única de oferecermos ao mundo o lamentável espetáculo
de uma população paupérrima, a viver faminta,
descalça e quase nua, sobre um dos mais opulentos domínios
territoriais de que há notícia.
Não devemos dar o menor crédito ao argumento de ocasião
de que as nossas dificuldades econômicas e financeiras são
a consequência inevitável da crise mundial. Antes do
mais nada, as nossas dificuldades são originariamente muito
anteriores à guerra de 1914, donde procede a chamada crise
mundial. Elas tiveram início em 1890, com as leis fiscais
e monetárias do Governo Provisório, para virem agravando-se
continua e progressivamente, ao sabor das sucessivas modificações
naquelas leis introduzidas. Em seguida a crise mundial não
pode ter para nós a mesma feição que apresenta
aos povos europeus.
Para aquêles países, grandes industriais, de população
adensada sôbre pequena superfície de território,
a questão se resume em intensificar a produção
de manufaturas, de modo a combater simultaneamente o "deficit"
econômico e o desemprego, impondo-se daí uma correspondente
importação de matérias primas. O desenvolvimento
desse programa é porém comprometido pela superprodução
que, como limite de escoamento, age de outro lado restringindo a
importação de matérias primas, para forçar
finalmente a queda da produção. Volta-se assim à
cogitação do "deficit" e do e do desemprêgo...
É nas angústias dêsse círculo vicioso
que têm prosperado as medidas protecionistas de forma aduaneira
e monetária.
Ao Brasil, país necessariamente agrário, de população
disseminada sôbre uma imensa superficie de território,
a crise apresentaria naturalmente uma face diferente. Caber-nos-ia
a faculdade de oferecer, na maior largueza, as nossas matérias
primas àqueles prisioneiros da fabricação,
escolhendo livremente nas suas manufaturas super produzidas o que
melhor nos conviesse e em melhor condições de preço
nos fosse apresentado. A crise deixaria de nos atingir como prejuízo,
para converter-se em oportunidade de maior desenvolvimento das nossas
fontes de produção como recíproca obtenção
fácil de tudo quanto faltasse ao nosso equipamento geral
de grande nação em crescimento. Aqueles países
nos mandariam em especiais condições de intensidade,
não somente todos os produtos do seu maravilhoso progresso
industrial dos últimos tempos, como, em natural e inevitável
correlação, capitais imigração e elementos
de cultura, tudo traduzindo-se em maior riqueza e maior civilização
para o Brasil.
Assim teríamos não só atendido aos nossos mais
naturais e legítimos interêsses, como poderosamente
concorrido, em harmonia com as nossas condições, para
a mais rápida solução dos grandes problemas
gerais que constituem realmente a crise mundial. A todos os respeitos,
teríamos cumprido o nosso dever humano.
Mas isto parece simples demais à nossa mentalidade dirigente.
Preferimos complicar as coisas, deslocando o Brasil da sua posição
econômica natural para inseri-lo artificialmente na ordem
dos grandes países manufaturados. Deixamos de ser desses
países os clientes privilegiados para que estaríamos
preparados como grandes fornecedores de matérias primas,
para nos fantasiarmos em seus concorrentes, com a nossa exígua
e precária indústria de pacotilha, que, associada
a um sistema bancário de quitandeiros, talhado a seu porte,
ficou sendo o modelo, a base, a medida obrigatória e intransponível
da economia brasileira. É por isso que o standard de vida
do nosso povo é um dos mais baixos e miseráveis do
mundo civilizado, é por isso que temos um exército
desarmado e mal vestido, que temos uma marinha de calhambeques e
já significamos tão pouco que não vale mais
a pena nos preocuparmos com coisas de cumprimento do dever ou honra
nacional.
A questão para nós está toda aí, e não
no Brasil colônia de banqueiros, no Brasil país de
economia fecham e outros disparates.
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