NOTAS À HISTÓRIA RECENTE


Publicado na Folha da Manhã, domingo, 19 de Novembro de 1944

Neste texto foi mantida a grafia original


O Sr. José Maria dos Santos não é apenas o pensador, sociólogo e historiador que nos deu "A política geral do Brasil", a biografia de Bernardino de Campos e outras obras de tomo. É também, ou antes, é principalmente o jornalista que, num combate de meio século, jamais interrompido, sempre estêve na brecha, em jornais do Rio e de São Paulo, tomando do fato do dia para em torno construir artigos que constituem verdadeiras ensaios.
Alguns desses artigos, escritos de 31 a 35, reuniram-se agora em volume sob o titulo "Notas à história recente". "Notas" que devem ser relidas, pela acuidade com que analisam problemas que ainda estão de pé.
Delas escolhemos uma, que abaixo reproduzimos, para dar ao leitor a medida da obra:

(Julho de 1935) — Os interêsses econômicos e financeiros do Brasil estão sendo agora tratados numa verdadeira atmosfera de catástrofe. Só se ouve falar de remédios extremos e recursos de agonia. O país, em luta com a crise, esgotou toda a sua capacidade de resistência perante o exterior, está literalmente desamparado, só podendo encontrar uma última esperança de salvação no repúdio desesperado e quase feroz de todos os compromissos externos, quer dizer, no abandono intransigente de toda contenção moral que se traduza praticamente num sacrifício qualquer das últimas reservas que lhe restam ainda.
É mais ou menos isso o que se lê nos instantes e pressurosos apelos à suspensão definitiva dos nossos pagamentos no exterior, agora lançados diariamente, sem neles faltar mesmo a veemente menção de que, perante um estado de evidente ruína, não há mais lugar para considerações abstratas sobre cumprimento do dever nem honra nacional...
Não há duvida de que ao devedor insolúvel deve ficar o direito extremo de fugir. A cobrança, quando esta, fora de toda hipótese de eficacia, representar apenas o prazer shylockmano de o torturar. Mas também não deixaria de ser uma insigne imprudencia retirar ao credor todos os meios de verificar se, entre a declaração e o fato de insolvabilidade, não ficaria espaço algum para a má fé...
Ora, ao ouvir aquelas alarmadas asserções, a primeira idéia que ocorre a qualquer um medianamente informado sobre os recursos do Brasil, é a de perguntar qual foi a calamidade publica, qual o imenso desastre que conseguiu reduzir este país a tal situação. A resposta é fácil. Nada no genero lhe aconteceu. Nada, nem peste, nem guerra, nem sêcas, nem inundações, nem mesmo um mencionavel bando de gafanhotos desceu em qualquer ponto do seu vasto território. Impõe-se portanto a conclusão de que, entre uma tão inexplicável declaração de insolvabilidade e um real estado de insolvabilidade, reste um espaço imenso, dentro do qual, com as últimas noções de probidade, bem poderiam também perder-se os ultimos cuidados de decência...
Para as nações como para os indivíduos, o essencial não esta em dever ou não dever, nem em poder ou não poder pagar. Está sobretudo em nunca agir de forma a autorizar uma suspeita qualquer sobre a sua honestidade. Na imprensa especializada dos grandes centros financeiros, ninguém pergunta se o Brasil pode ou não pode pagar. Todo mundo indaga se o Brasil quer ou quer pagar. Esta é que é a questão, por que sobre a nossa verdadeira posição, ante os nossos compromissos externos, ninguem pode têr dúvidas.
O Brasil, levando-se em conta as suas reais condições econômicas, em face da sua população atual, é de todos os países de mais de cinco milhões de habitantes do mundo civilizado aquêle sôbre o qual pesa uma dívida menor. Divida-se o total da divida pública de qualquer daqueles povos pela respectiva cifra demográfica, e ver-se-a que o quociente expressa sempre um encargo individual de pelo menos o dobro daquele que em operação idêntica nos caberia.
Dir-se-á talvez que a capacidade financeira de um povo não se mede pelo número dos seus habitantes, mas sim pelo valor de sua produção. Um povo mais numeroso pode sofrer de problemas econômicos que o coloquem em grau de inferioridade perante outros países de menor população.
Mas nesse caso, a resposta exata é a de que um problema econômico é essencialmente o resultado de uma grande desproporção entre os recursos do solo e as necessidades do meio demográfico. É quando o solo não tem mais condições de alimentar a população que os problemas econômicos começam. Como pode então haver um real problema econômico numa nação de oito milhões e meio de quilômetros quadrados de terras totalmente aráveis e de proverbial fertilidade, reservadas a alimentar e fazer viver apenas quarenta e cinco milhões de habitantes!? Se essa nação se restringe a produzir muitos menos do que outras de muito menores recursos territoriais e demográficos, se por aí ela chega a declarar-se insolvável perante uma divida externa que não é relativamente nem a metade de que pesa sôbre aquelas outras, o seu problema não é mais econômico —é sem dúvida de outra natureza.
O Brasil não sofre verdadeiramente de nenhum problema econômico, sendo portanto falso que esteja em estado real de insolvabilidade. A nossa hoje tão apregoada insolvabilidade só existe em função de certos negócios inviáveis que tendo ate agora vivido sôbre o País e o reduzido ao mais desolado pauperismo, não querem afinal resignar-se à liquidação. A ilusão do país insolúvel nasce apenas da restrição sistemática do horizonte econômico do Brasil ao estreito círculo dêsses negócios.
Desde porém que se queira olhar o nosso grande país tal como êle realmente é, sem reduzi-lo mais à mesquinha e angustiada escala daqueles interêsses, logo se verá que a sua divida externa, nela compreendendo os empréstimos da União, os dos Estados e municípios e os dos negócios do café, não pode representar embaraço à sua vida nem estôrvo algum ao seu progresso.
O Brasil pode quando quiser por em perfeita ordem as contas dos seus empréstimos externos, assegurando-lhes daí por diante, pontual e desafogadamente, o serviço total de juros e amortização, como é de seu dever de honra e seu interesse primordial. Dever de honra, porque ninguém dirá que o não seja o cumprimento de obrigações solene e livremente assumidas para com súditos estrangeiros, segundo princípios de direito que o país adota e certamente desejaria, em condições idênticas, ver fiel e escrupulosamente observados para com os seus nacionais. Interêsse primordial por que, dos atos a praticar para cumprimento eficaz daquelas obrigações o primeiro resultado seria a nossa automática libertação do falso e miserável sistema econômico a que fomos reduzidos, que é a causa única de oferecermos ao mundo o lamentável espetáculo de uma população paupérrima, a viver faminta, descalça e quase nua, sobre um dos mais opulentos domínios territoriais de que há notícia.
Não devemos dar o menor crédito ao argumento de ocasião de que as nossas dificuldades econômicas e financeiras são a consequência inevitável da crise mundial. Antes do mais nada, as nossas dificuldades são originariamente muito anteriores à guerra de 1914, donde procede a chamada crise mundial. Elas tiveram início em 1890, com as leis fiscais e monetárias do Governo Provisório, para virem agravando-se continua e progressivamente, ao sabor das sucessivas modificações naquelas leis introduzidas. Em seguida a crise mundial não pode ter para nós a mesma feição que apresenta aos povos europeus.
Para aquêles países, grandes industriais, de população adensada sôbre pequena superfície de território, a questão se resume em intensificar a produção de manufaturas, de modo a combater simultaneamente o "deficit" econômico e o desemprego, impondo-se daí uma correspondente importação de matérias primas. O desenvolvimento desse programa é porém comprometido pela superprodução que, como limite de escoamento, age de outro lado restringindo a importação de matérias primas, para forçar finalmente a queda da produção. Volta-se assim à cogitação do "deficit" e do e do desemprêgo...
É nas angústias dêsse círculo vicioso que têm prosperado as medidas protecionistas de forma aduaneira e monetária.
Ao Brasil, país necessariamente agrário, de população disseminada sôbre uma imensa superficie de território, a crise apresentaria naturalmente uma face diferente. Caber-nos-ia a faculdade de oferecer, na maior largueza, as nossas matérias primas àqueles prisioneiros da fabricação, escolhendo livremente nas suas manufaturas super produzidas o que melhor nos conviesse e em melhor condições de preço nos fosse apresentado. A crise deixaria de nos atingir como prejuízo, para converter-se em oportunidade de maior desenvolvimento das nossas fontes de produção como recíproca obtenção fácil de tudo quanto faltasse ao nosso equipamento geral de grande nação em crescimento. Aqueles países nos mandariam em especiais condições de intensidade, não somente todos os produtos do seu maravilhoso progresso industrial dos últimos tempos, como, em natural e inevitável correlação, capitais imigração e elementos de cultura, tudo traduzindo-se em maior riqueza e maior civilização para o Brasil.
Assim teríamos não só atendido aos nossos mais naturais e legítimos interêsses, como poderosamente concorrido, em harmonia com as nossas condições, para a mais rápida solução dos grandes problemas gerais que constituem realmente a crise mundial. A todos os respeitos, teríamos cumprido o nosso dever humano.
Mas isto parece simples demais à nossa mentalidade dirigente. Preferimos complicar as coisas, deslocando o Brasil da sua posição econômica natural para inseri-lo artificialmente na ordem dos grandes países manufaturados. Deixamos de ser desses países os clientes privilegiados para que estaríamos preparados como grandes fornecedores de matérias primas, para nos fantasiarmos em seus concorrentes, com a nossa exígua e precária indústria de pacotilha, que, associada a um sistema bancário de quitandeiros, talhado a seu porte, ficou sendo o modelo, a base, a medida obrigatória e intransponível da economia brasileira. É por isso que o standard de vida do nosso povo é um dos mais baixos e miseráveis do mundo civilizado, é por isso que temos um exército desarmado e mal vestido, que temos uma marinha de calhambeques e já significamos tão pouco que não vale mais a pena nos preocuparmos com coisas de cumprimento do dever ou honra nacional.
A questão para nós está toda aí, e não no Brasil colônia de banqueiros, no Brasil país de economia fecham e outros disparates.


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