O PIONEIRO QUE NÃO TINHA MEDO DE SEUS PARADOXOS

Perfil do sociólogo Gilberto Freyre

Publicado na Folha de S.Paulo, domingo, 19 de julho de 1987

O velho solar do século 18, o mais célebre do subúrbio recifense de Santo Antonio dos Apipucos, perdeu sua alma. Ali, no número 320 da rua Dois Irmãos, por mais de quarenta anos, viveu Gilberto Freyre. No casarão cor-de-rosa de janelas verdes ele passava a maior parte de seu tempo: pintava, cozinhava, escrevia e se deliciava com os pratos nordestinos preparados por sua mulher, Magdalena, com quem se casou em 1942 e teve dois filhos, Sonia e Fernando.
Ponto obrigatório para qualquer visitante ilustre que chegasse ao Recife, o solar de Apipucos habituou-se a receber amigos raros, que entre suas paredes - com quadros de Pancetti, Cícero Dias, Di Cavalcanti - desfiavam longas conversas, animadas pelo cobiçado conhaque de pitanga que o próprio Freyre fabricava, sem jamais ter revelado a fórmula. Por ali, num gesto que se tornou um ritual de reverência, passaram artistas, escritores, cientistas. Gente como o romancista José Lins do Rego, o "designer" Aluísio Magalhães ou o pioneiro da pintura modernista Vicente do Rego Monteiro.
As visitas, contudo, nunca aconteciam pelas manhãs. Neste período, Gilberto Freyre transformava-se no "solitário de Apipucos". Alojado em seu gabinete de trabalho, usava o início dos dias para escrever. Escrevia à mão, acomodado numa poltrona, com o papel apoiado no colo sobre pequenas tábuas de pinho de riga.
O solar é indissociável da vida de Gilberto Freyre. Construído originalmente como peça de um engenho de açúcar, ele se transformou numa espécie de alegoria de seu dono, um signo exemplar de sua pernambucanidade.
Gilberto de Mello Freyre nasceu no Recife em 15 de março de 1900. Seu pai, Alfredo Freyre, foi professor de Direito, homem letrado, que matriculou o filho no Colégio Gilreath, mais tarde chamado Colégio Americano Batista. Antes, contudo, de chegar ao Colégio, o pequeno Gilberto inspirou entre a família os cuidados de um menino problemático. Recusou-se, até os oito anos de idade, a ser alfabetizado. Preferia pintar e desenhar. Entregue pelos pais a um preceptor britânico, acabou sendo alfabetizado em inglês. Nesses tempos de infância, sua maior diversão era brincar de ser Deus: do alto de sua onipotência, manipulava sem piedade o destino de seus batalhões de soldadinhos de chumbo.

Soldados

Os soldados de Lênin chegavam ao poder na Rússia quando Gilberto Freyre, em 1917, completou o curso secundário. O Deus dos soldadinhos agora preferia ler a filosofia de Kant. Já tinha rudimentos de grego, mas lamentava que o domínio do idioma não fosse suficiente para conhecer Aristóteles no original. Um ano depois, em 1918, a bordo do vapor "Curvelo", Gilberto Freyre deixava o Brasil para bacharelar-se em Ciências Políticas e Sociais na Universidade de Baylor, no Texas, EUA. Conheceria os EUA, e mais tarde a Europa, antes de conhecer o Rio de Janeiro. Depois de Baylor, Freyre segue para Nova York, onde completa, na Universidade de Columbia, o mestrado em Sociologia e doutorado em Antropologia.
A geração de Gilberto Freyre foi herdeira de um Recife culto e aristocrático, uma cidade que conhecia as ligações diretas com a Europa e os Estados Unidos. As livrarias da capital pernambucana recebiam - frequentemente antes das capitais do Sul - os melhores volumes produzidos no exterior, e pelo teatro Santa Isabel, construído no século 19, em estilo neoclássico francês, passavam as companhias de ópera que depois excursionariam pelo Rio, por São Paulo e chegariam a Buenos Aires. Os usineiros - tradicionais detentores do poderio econômico local - mandavam seus filhos para as melhores escolas do mundo.
A maior parte formava-se em Agronomia na cidade de Baton Rouge, na Lousiana, ao sul dos EUA. Mas havia - como muitos que pertenceram à geração imediatamente anterior à de Freyre, que ele conheceu de perto - quem fosse ao mundo "civilizado" encontrar a Filosofia, a História, o Direito ou a Diplomacia. Gente, por exemplo, como o historiador e engenheiro Alfredo de Carvalho, formado na Alemanha e nos EUA, ou o diplomata Oliveira Lima, paraninfo da turma de Gilberto Freyre no Recife, que ele reencontraria depois em Nova York. Esta particularidade da capital, como observa o sociólogo Vamireh Chacon, professor da Universidade de Brasília, é indispensável para entender a "visão senhoril do mundo" que mais tarde transparece na obra de Freyre, sempre apontada por setores universitários de tradição marxista.
Formado em Nova York, Freyre deixa a metrópole norte-americana em 1921 para viajar pela Europa. Nesta época escreveu: "Das filosofias, cujos diferentes sabores venho experimentando, as que me atraem mais são a de Santo Agostinho, a de Pascal, a de Nietzsche. E agora a de James e Bergson". Com o apetite voraz da juventude passa pela Inglaterra, Alemanha, França e Portugal. Conhece as principais universidades, alimenta seu cristianismo em catedrais históricas e faz contatos com o meio intelectual. Mais do que nunca lê.

De volta à terra

Em 1923 está de volta à cidade natal. Junto aos pesados e elegantes ternos ingleses de "tweed", traz na bagagem sua tese "A Vida Social no Brasil nos Meados do Século 19", a marcante influência da Antropologia de Franz Boas - antropólogo alemão, nacionalizado norte-americano, seu professor em Columbia -, os ensinamentos da Sociologia de Giddings e as idéias da "Action Française" de Charles Maurras.
Em Recife, passa a escrever artigos para a imprensa. Aparece nas páginas do secular "Diário de Pernambuco" e do "A Província", último órgão da República Velha, patrocinado por Estácio Coimbra, governador de Pernambuco que seria deposto pela Revolução de 1930 e arrastaria Freyre - que se tornara seu secretário particular em 1926 - para o exílio. Os artigos causaram reboliço. Acusado de "estrangeirismo", Freyre passaria a ser frequentemente rotulado de arrogante, presunçoso e pedante.
Jogando com a Antropologia Social, com o culturalismo de Simmel e o esteticismo tradicionalista europeu, o recém-chegado tinha ares de iconoclasta aos olhos da reflexão sociológica hegemônica que se praticava no Brasil. Admirador do poeta Frederic Mistral, ligado ao movimento regionalista francês do início do século, Freyre, também em 1926, organizaria o 1º Congresso Regionalista do Recife, de onde surgiu o "Manifesto Regionalista" - que pregava a rigorosa preservação do perfil cultural das diversas regiões do país e insinuava o desejo latente de autonomia do Nordeste.
Então veio a Revolução de 1930. O aristocrático Estácio Coimbra - um dos últimos tradicionais senhores de engenho - é destituído de seu cargo. Gilberto Freyre, perseguido, exila-se em Portugal, onde faz pesquisas em arquivos e bibliotecas. Convidado pela Universidade de Stanford, na Califórnia, EUA, para dar um curso sobre a formação brasileira, o sociólogo deixa Lisboa. As aulas nos EUA servem para sistematizar idéias que ganhavam forma em sua cabeça. São o esboço de um livro, o mais célebre que o mestre pernambucano escreveria em toda sua vida: "Casa-Grande & Senzala". De volta ao Brasil, Freyre finaliza e publica o livro, uma longa e detalhada viagem às matrizes formadoras da sociedade patriarcal brasileira.
O lançamento de "Casa-Grande & Senzala", em 1933, surpreendeu um Brasil que começava a correr, em alta velocidade, pelos trilhos do autoritarismo. As sugestões nazi-fascistas aproximavam-se perigosamente da órbita do poder. Para o Estado Novo de Getulio Vargas, o conservadorismo ditatorial era coisa séria, que fazia de um Charles Maurras - como observou Vamireh Chacon - apenas um representante da "direita festiva". Nessas condições Freyre torna-se um alvo à disposição do obscurantismo. A extrema-direita o toma por subversivo. A simples idéia, manifestada por Freyre, de convidar o escritor Thomas Mann para uma visita ao Brasil é vista com desconfiança, tanto quanto sua sugestão de trocar o nascente entusiasmo de certos políticos e intelectuais com a juventude hitlerista pelos ensinamentos do telúrico padre Ibiapina. A leitura fascista das posições de Freyre acabou levando-o à prisão e provocou a vigilância policial em torno de sua casa. O autor de "Casa-Grande & Senzala" estava condenado a lutar pela redemocratização.
Uma luta que se desenvolveria em várias frentes. Além do Estado, Freyre precisava enfrentar as críticas do neoconservadorismo católico, que apontava em seu livro a decadência dos costumes, pela presença de citações de Freud e de explicações ligadas à sexualidade. Sem falar no terrível estímulo à confrontação social, embutido no reconhecimento da cultura negra. Os cristãos ferrenhos não perdoavam, já antes da publicação de "Casa-Grande & Senzala", o fato de Gilberto Freyre ter reunido um 1º Congresso Afro-Brasileiro. E não faltava quem lembrasse que seu primo e melhor amigo na época, o psiquiatra e pedagogo Ulysses Pernambuco, prestava assistência a cultores das proibidas e perseguidas religiões negras. "Casa-Grande & Senzala" - pode parecer inacreditável - chegou a ser arrancado de prateleiras e incendiado por alguns de seus críticos mais irados.

Tiro na manifestação

Empenhado na luta política contra o Estado Novo, Freyre passa a contar com a simpatia e o apoio dos estudantes. Vive o auge de seu exercício político da cidadania. Empolgando multidões no Recife, Freyre discursava nas passeatas e comícios. Certa vez, no dia 3 de março de 1945, quando falava da sacada da Faculdade de Direito para um grande aglomerado de estudantes, foi alvo de um tiro, interceptado pela fronte de seu discípulo Demócrito de Souza Filho, que morreu em consequência do disparo. O episódio nunca foi oficialmente esclarecido, mas formou-se a opinião - possivelmente correta - de que a polícia estadonovista seria a autora do atentado, que se estendeu, no mesmo dia, ao carvoeiro Manuel Elias, presente à manifestação, também abatido por um tiro. Mas logo o quadro seria outro: a decomposição do Estado Novo levaria Gilberto Freyre ao posto de deputado federal. Amigos próximos registram uma de suas mágoas neste momento: o apoio que lhe foi negado pelo Partido Comunista .
Eleito pela UDN Freyre participou da Assembléia Nacional Constituinte que reorganizou a vida institucional do país e foi vice-presidente da Comissão de Educação e Cultura da Câmara Federal. Em 1948 participou do "Conclave dos Oito", uma reunião de especialistas em ciências humanas realizada em Paris. A seu lado, nomes como Max Horkheimer e Stack Sullivan. Em 1949 foi delegado do Brasil na Assembléia das Nações Unidas. Neste mesmo ano fundou o Instituto Joaquim Nabuco, em Recife, hoje uma fundação. Seu período parlamentar encerrou-se em 1950. Consagrado como intelectual e cidadão engajado, Gilberto Freyre passa a receber convites para reuniões e cursos nos principais centros intelectuais do mundo. Em 1954 recebe o título de doutor "honoris causa" da Universidade de Columbia. A mesma distinção lhe seria ofertada por mais nove instituições universitárias, entre elas a Sorbonne, de Paris, e a Universidade de Coimbra, em Portugal.
O Movimento de 64, contudo, recolocaria Freyre no index das forças intelectuais e políticas progressistas. Seu apoio ao marechal Castelo Branco, que chegou a convidá-lo para o Ministério da Educação, gerou indignação nos círculos liberais. Mesmo que sua ligação com o governo militar - ele foi um dos elaboradores do programa do partido oficial do novo regime, a Aliança Renovadora Nacional - tenha se dado especialmente antes da promulgação do Ato Institucional nº 5, em dezembro de 1968, o mestre de Apipucos caiu em desgraça no meio estudantil e universitário que o apoiara na redemocratização de 45. No final da vida, tentou recuperar-se. Foi um dos primeiros a propor a candidatura de Tancredo Neves para a Presidência da República, e do político mineiro ouviu que, caso de confirmasse a eleição, seria convidado para ser "co-presidente" do Brasil.

Cientista e mago

De qualquer forma as afinidades de Gilberto Freyre com o Movimento de 64 deram aos críticos um argumento forte para as hipóteses de que a Antropologia que praticava era mesmo um artefato ideológico das elites, construído a partir de análises "subjetivas" da História. Atacado, Freyre queixava-se da omissão das universidades brasileiras diante de um trabalho que ele considerava melhor compreendido fora de seu próprio país. Em 1983, por ocasião das comemorações do cinquentenário de "Casa-Grande & Senzala", dizia: "Minha obra nunca foi objeto de estudo em qualquer universidade brasileira".
Já no final da década de 70, com o recrudescimento dos estudos antropológicos no Brasil, especialmente através do Departamento de Antropologia Social do Museu Nacional do Rio de Janeiro, a obra do antropólogo pernambucano passou a ser reconsiderada. O antropólogo Gilberto Velho, um dos expoentes do Museu, dizia num artigo publicado pelo "Jornal do Brasil" em 1980: "Não devemos nos deixar enganar por uma visão apressada e maniqueísta da obra de Gilberto Freyre, autor com quem temos muito a aprender, mesmo que eventualmente possamos discordar de declarações e afirmações menos felizes. Estamos falando de cientistas, e não de magos."
Nem cientista, nem mago. Freyre preferia ser chamado de escritor ou mesmo de doutor. E gostava de se definir como um homem "paradoxal". De fato era. A começar pelas categorias - à altura do humor desconcertante de Nelson Rodrigues - que usava para identificar suas posições ideológicas: "anarquista construtivo" ou "conservador revolucionário".

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