BERNARD SHAW


Publicado na Folha da Manhã, domingo, 18 de novembro de 1951

Neste texto foi mantida a grafia original


Um dos aspectos mais pitorescos da vida de Bernard Shaw é o das suas relações com as mulheres. Na primeira biografia de Shaw publicada por Hesketh Pearson já encontram episodios curiosos, mas eles aparecem em muito maior numero na nova biografia que aquele amigo de Bernard Shaw escreveu para a editora Collins, de Londres. Aqui estão alguns desses episodios relatados pelo proprio autor de "Pigmalião". A primeira dessas narrativas põe em cena uma das interpretes de Shaw, Mrs. Patrick Campbell, a quem ele chamava de Stella e com quem se ligou amorosamente quando contava 55 anos de idade.
Perguntei um dia a Shaw se, como a Orinthia de "The Apple Cart", Stella tentava às vezes impedi-lo de voltar para junto de sua esposa.
"A cena de "The Apple Cart" em que Orinthia e Magnus rolam no chão foi tomada da realidade. Quando eu me levantava para deixá-la, Stella fazia o que podia para me impedir de chegar à hora em casa. Numa das nossas brigas por esse motivo, vimo-nos ambos literalmente caidos no assoalho, lutando como dois desesperados...
"Aquela mulher era um demonio furioso. Certa vez, durante um ensaio para a "reprise" de "Pigmalião", como ela procurasse me contrariar fazendo exatamente o oposto do que lhe pedia que fizesse, disse-lhe que ela representava como uma atriz amadora de Belzeke Park; em consequencia disso, teve um desmaio, para grande satisfação de Marion Terry. Stella era um monstro! Lembro-me do que ela disse a um rapaz que representava o papel de coronel —homem dos mais distintos, de maneiras perfeitas e ator admiravel— durante um ensaio: "Ponha esta cadeira lá, faça o favor, e como um cavalheiro —se porventura é capaz de agir como um cavalheiro".
"Tenho vontade de saber por que o rapaz não lhe arremessou a cadeira à cabeça: eu teria dado três hurras de alegria!"

XXX

Um dia não pude resistir ao desejo de perguntar a Shaw se Annie Besant tinha exercido alguma atração fisica sobre ele;
— Ela não tinha absolutamente nenhum "sex-appeal" —respondeu-me.
— E Isadora Duncan? Muita gente se obstina ainda em afirmar que ela lhe disse, um dia: "O seu cerebro é o maior do mundo, e o meu corpo é o mais belo: deveriamos produzir o filho perfeito". A sua resposta teria sido: "Sim, mas que será desse filho, se tiver o meu corpo e o seu cerebro?" Sei muito bem que já desmentiu essa lenda...
-Nunca há fumo sem fogo, e devo reconhecer que a historia teve origem numa cena ocorrida durante uma recepção oferecida em casa de Lady Kenet of the Dene. Sentada num divã, sozinha, envolvida em panos pregueados, com a fisionomia um tanto fatigada, estava uma mulher cujo rosto era como se tivesse sido feito de açucar e alguem o tivesse sugado. Era Isadora. Fomos apresentados. Ela se levantou, abriu os braços para mim e exclamou: "Eu o tenho amado toda a minha vida. Venha!"
"Pois bem! Eu fui. Sentamo-nos ambos no divã. Todos os convidados estavam diante de nós como para assistir a uma peça de teatro. Com efeito, durante uma hora executamos para seu divertimento um ato de "Tristão e Isolda". Finalmente, ela me pediu para ir vê-la, declarando-me que dançaria para mim sem véus. Muito sério, tomei nota do encontro, mas esqueci-me de comparecer.

O ODIO DE MRS. BARKER

Shaw, muito contra a sua vontade, teve que se ocupar do divorcio de Granville Barker, que fora um dos seus melhores interpretes e amigos: a sua atitude lhe valeu a hostilidade de Helen Huntingdon, que se tornou a segunda mulher de Barker. Eis o que ele me contou:
"Helen Huntingdon tinha horror da influencia que eu exercia sobre Barker. Como ela mesma nunca tinha ultrapassado, em literatura, o anos de 1865, lançava o anatema sobre todas as obras posteriores a essa data, em particular sobre as minha. Completamente dominado por ela, Barker deixava de ser o homem independente que todos tinham conhecido, e ela o fez abandonar o teatro.
"O odio dessa mulher por mim se manifestou da maneira mais desagradavel. Em maio de 1925, Barker devia fazer uma conferencia sobre o teatro no Kings College. A. J. Balfour presidia; incumbia a Forbes Robertson exprimir agradecimentos, aos quais eu deveria associar-me. Logo que cheguei, fui introduzido no salão verde, onde encontrei Balfour sozinho. Conversamos havia alguns instantes, quando chegou Mrs. Barker, enfeitada com colares de perolas que lhe cobriam o pescoço e o peito. Ela faz parte das pessoas de cujo o rosto sou incapaz de me lembrar. Seu fisico é tão negativo, que cada vez que a vejo tenho a impressão de a ver pela primeira vez, mas desta, reconheci as suas perolas; tudo, portanto, foi muito bem. Eu esperava, naturalmente, vê-la distante, se não, francamente hostil; para minha grande surpresa, veio direto a mim e me falou da maneira mais amistosa. Lembrei-me, então, de que Balfour acabara de ser feito conde, e então tudo se tornou claro. Ela podia engolir-me com Balfour, mas não sozinho.
"Depois que Barker proferiu o seu discurso e Forbes exprimiu os seus agradecimentos, eu me levantei por minha vez. Sentia-me, então, possuido pelo diabo. Estava em plena forma. Levei às nuvens Barker e sua conferencia, e declarei que o seu abandono do teatro pelo professorado era indesculpavel. "Barker professora! - exclamei. Era impensavel. Vejamos, só na sua conferencia há o necessario para fazer vinte professores!" Provoquei uma tempestade de aplausos, dizendo que seu afastamento do teatro era um verdadeiro escandalo. Não havia, para Barker, nenhuma resposta possivel. Balfour salvou as aparencias pondo fim à reunião. Mrs. Barker estava fora de si.
"O que aconteceu, então, foi coisa deveras extraordinaria: no momento em que me levantei para deixar o estrado, tive a impressão de que a minha coluna vertebral se tinha transformado numa barra de ferro enferrujada. A dor que sentia na base da espinha dorsal era tal que não pude inclinar-me para entrar num taxi. Consegui, não sei como, dar comigo em casa. Quando chegou, minha mulher me encontrou no leito, reduzido à impotencia: os medicos não compreendiam nada do que acontecia, e eu me julgava perdido. Levaram-me a Ayot e, ao fim de algum tempo, recomecei a andar, arrastando-me. Não ousava ir alem da grade do jardim, até que, um dia, e graças a um imenso esforço de vontade, aventurei-me a descer até a estrada, acontecesse o que acontecesse. Instantaneamente, miraculosamente, a dor me deixou. Notei que tinha passado um mês exatamente, hora por hora, desde o momento em fui atingido por aquela atroz e inexplicavel enfermidade.
"Alguns dias mais tarde encontrei-me com uma senhora que havia assistido à reunião do Kings College, e relatei-lhe o que me tinha acontecido."
— "Isso, disse ela, se explica facilmente."
"E contou-me que tinha observado Mrs. Barker, que estava sentada exatamente atrás de mim e que, enquanto eu falava, se inclinava para a frente, com todos os musculos do rosto tenso pelo odio.
"Mrs. Barker, pura e simplesmente, me tinha posto um mau olhado..."



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