COM 83 ANOS, MORRE TARSILA DO AMARAL
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Publicado
na Folha de S.Paulo, quinta-feira, 18 de janeiro de 1973
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Vivendo nos ultimos oito anos numa cadeira de rodas e não resistindo
a complicações pós-operatorias, morreu na madrugada
de ontem na Beneficencia Portuguesa e foi sepultada à tarde
no cemiterio da Consolação a pintora Tarsila do Amaral,
de 83 anos. Embora não tenha participado da Semana de 22, pois
estava em Paris, Tarsila representou, ao lado da pioneira Anita Malfati,
a adesão do Brasil aos postulados renovadores e anti-academicistas
em artes plasticas. Segundo Sergio Milliet, "sua obra não
é apenas valiosa como realização artistica das
mais originais que se verificaram no Brasil, mas tambem como realização
poetica e como documentação, por paradoxal que pareça,
da adolescencia de nosso país".
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A
morte de Tarsila do Amaral |
Nogueira Montinho
Em
decorrência de complicações pós-operatorias,
faleceu na madrugada de ontem no Hospital da Beneficencia Portuguesa
a pintora Tarsila do Amaral. Nascida em Capivari em 1890, desaparece
aos oitenta e três anos, havendo sido sepultada ontem às
16 horas, no cemiterio da Consolação. Tarsila, que
passou os ultimos anos de sua vida no apartamento da Albuquerque
Lins, nº 1129, encarnou em São Paulo uma admiravel figura
de artista. Presa desde 1965 a uma cadeira de rodas, não
abandonou um momento sequer os pincéis e as telas; seu ultimo
quadro talvez tenha sido "A Fazenda", preparado especialmente
para uma recente exposição comemorativa do cinquentenario
da Semana de Arte Moderna. A par dessa extraordinaria atividade,
o que sobretudo impressionava na anciã semiparalisada e em
tudo dependente da assistencia de terceiros, era a constante afabilidade,
o sorriso iluminando sem cessar a fisionomia extraordinariamente
repousada. Raras eram suas aparições em publico nestes
ultimos anos. Em todas elas, porém, a artista se via cercada
de manifestações de carinho, de provas de admiração
e de reconhecimento por seu extraordinario valor artistico e humano.
Com Tarsila do Amaral efetivamente desaparece toda uma epoca cultural
de São Paulo. Embora não tenha participado da Semana
de Arte Moderna, pois encontrava-se em Paris em 1922, Tarsila representa,
ao lado da pioneira Anita Malfati, a adesão, entre nós,
aos postulados renovadores e antiacademicistas em artes plasticas.
"Caipirinha paulista vestida por Poiret"... com esse verso
de Oswald de Andrade, escrito em 1925, Tarsila passou à cronica
heróica do Modernismo brasileiro, que teve como um dos principais
epicentros a sua residencia, à epoca de seu casamento com
Oswald, na alameda Barão de Piracicaba. Descendente de um
dos mais velhos troncos do patriciado rural paulista, filha do patriarca
José Estanislau do Amaral Filho e de da. Lidia Dias de Aguiar,
educada no Colegio de Sion, como todas as jovens paulistanas de
sua geração, Tarsila começou a estudar pintura
com Pedro Alexandrino, em 1917. A essa epoca, Anita Malfati já
escandalizava a paulicéia provinciana com sua exposição
expressionista, e Lasar Segall e Di Cavalcanti começavam
a incomodar o conservadorismo vigente. A viagem a Paris em 1920,
porém, é que pode considerar-se como a data capital
de sua carreira. Sergio Milliet, que lá a conheceu em 1923,
encontrou-a seguindo cursos de cubismo com André Lhote, Fernand
Léger e Albert Gleizes. A pintora diria mais tarde que o
cubismo "é o serviço militar da pintura",
significando assim a importancia que o estudo rigoroso da composição
e da forma tem para o artista plastico. Por seu atelier, situado
nas proximidades da avenue de Clichy, desfilou tudo quanto em Paris
contava na epoca: Eric Satie, Jean Cocteau, Blaise Cendras, Léger,
Lhote, Gleizes, o poeta franco-uruguaio Jules Supervielle, o escritor
Valéry Larbaud, o compositor Igor Stravinsky eram lá
encontrados ao lado dos brasileiros Paulo Prado, Oswald de Andrade,
Vila Lobos, Sousa Lima, Di Cavalcanti, Sergio Milliet, Rubens Borba
de Morais, Brecheret, Anita Malfati.
Voltando ao Brasil, mais precisamente a São Paulo, em 1923,
a pintora redescobre sua terra e entra em contacto com a figura
extraordinaria de Mario de Andrade, que iria mais tarde defini-la
esteticamente com uma agudeza que até hoje causa espanto:
"um certo e bem aproveitado caipirismo de formas e cor, uma
sistematização inteligente do mau gosto que é
dum gosto excepcional".
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A
descoberta do Brasil |
Data dos primeiros anos da decada de 20 a sua famosa viagem às
cidades historicas de Minas Gerais, comandada por dona Olivia Guedes
Penteado, admiravel personagem de Marcel Proust ancorada nos Campos
Elisios. Acompanhando dona Olivia a essa verdadeira peregrinação
em busca das raizes, a jovem pintora, Oswald de Andrade, René
Thiollier, Mario de Andrade, Gofredo da Silva Teles, Blaise Cendrars,
mergulham em São João Del Rei, Tiradentes, Congonhas
do Campo, Sabará, Ouro Preto. "Encontrei em Minas - dirá
a pintora - as cores que adorava em criança. Ensinaram-me depois
que eram feias e caipiras. Segui o ramerrão do gosto apurado...
mas vinguei-me da opressão passando-as para as minhas telas;
azul purissimo, rosa violaceo, amarelo vivo, verde cantante, tudo
em gradações mais ou menos fortes, conforme a mistura
de branco." Essa fase da pintura de Tarsila, que parece o comentario
plastico da poesia Pau Brasil de Oswald, precede a eclosão,
em 1929, de uma nova estetica, da maior importancia em nosso Modernismo.
A Antropofagia. Todo o programa da nova escola pode resumir-se numa
unica tela de Tarsila: "O Abaporu", retorno ao indio, à
terra, proclamação de uma independencia intelectual
que Oswald afirmava ser "contra todos os importadores de consciencia
enlatada".
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A
fase social |
Data de 1933 a eclosão da terceira fase de sua pintura, considerada
pela critica como definidora de uma outra especie de visão
do mundo, distante dos rosas e azuis lavados da dita "pintura
de baú". A artista descobre a realidade social em que
vive, penetra com maior acuidade os meios urbanos, citadinos, abandona
o pitoresco, o simplesmente ingenuo. Adere a um desenho forte, de
cunho nitidamente expressionista, linguagem severa em que os tons
de ocre e de roxo servem para acentuar com sobriedade sua nova direção
cromatica. É a fase das grandes telas denominadas "Operarios",
"2a Classe", refletindo um mundo proletario pungentemente
imerso em sombra.
Mais tarde, a pintora retornará ao lirismo espontaneo da fase
Pau Brasil, às pinturas caipiras, às emoções
menineiras de sua sensibilidade. Incorporou para sempre, porém,
o caracteristico do colorido, a solidez da composição,
a limpeza e a sensualidade do desenho.
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Traços
humanos |
Fascinante figura de mulher, Tarsila se tornou famosa por sua excepcional
beleza. Cantada no poema "Nemenis" por Mario de Andrade,
musa inspiradora de Oswald de Andrade, personagem de "A Tormenta",
de Menotti del Picchia, forneceu a Manuel Bandeira ocasião
para afirmar numa cronica: "Nunca vi boniteza tão brasileira
como a da pessoa e dos quadros de Tarsila". Em 1951, ao receber
o Premio de Pintura da I Bienal de São Paulo, a pintora concedeu
ao poeta José Tavares de Miranda uma longa entrevista, publicada
por este mesmo jornal. Falando a respeito da artista, dizia o extraordinario
reporter:
"Tarsila mede 1 metro e 64 centimetros, descalça. Pesa
60 quilos (vestida). Sabe comer muito bem e aprecia a cozinha francesa.
Seu prato predileto é "civet de lapin". Adora os
bons vinhos. Em materia de doces é bem brasileira. Gosta demasiadamente
da cocada à antiga, isto é, com bastante gema de ovo.
Bebe religiosamente seu cafezinho à paulista. Nunca passou
sem possuir uma boa adega em sua casa, mas adora a sua batidinha "Pau
Brasil", bebida de sua criação e servida em suas
festas. Receita: pinga e gim em partes iguais; limão, açucar,
clara de ovo bem batida e gelo. Adora jaboticaba. O primeiro livro
que leu na vida foi o "Tronco do Ipê", de José
de Alencar. Livros de cabeceira: o "Dom Quixote" e a "Odisseia".
Não fuma, é espiritualista, tem horror aos gordos em
geral e às borboletas gordas em particular. Adora jardinagem.
Prefere pintar de noite".
Esse rapido "flash", em sua desconvencionalização
bem humorada reflete com felicidade a extraordinaria personalidade
dessa mulher autenticamente brasileira, dessa grande pintora que foi
Tarsila do Amaral. Dela disse, definitivamente, Sergio Milliet: "Sua
obra não é apenas valiosa como realização
artistica das mais originais que se verificaram no Brasil, mas tambem
como realização poetica e como documentação,
por paradoxal que pareça, da adolescencia de nosso país".
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